Uma coisa que me faz ser saudosista é o tal do
futebol. No meu tempo de adolescente me lembro que no rádio todo jogo era um
jogão. E depois, quando a gente via os jogos, em reprises que passava no final
da programação da tevê, que se chamava videotape, a gente só confirmava que
aquelas 150 mil pessoas do Maracanã tinham ido assistir um futebol de alto
nível.
Mas ouvir o jogo, direto, pelo rádio, era muito
bom. Acho que hoje a crueza das imagens, capazes de constatar a pouca qualidade
dos jogadores, não deixa qualquer dúvida no espectador. Se fosse transmitido
pelo rádio talvez o narrador pudesse produzir alguma emoção, à revelia do
próprio jogo.
Na minha casa todo mundo é Flamengo. Aos
domingos, depois do almoço meu pai dormia com o radinho ligado debaixo do
travesseiro. A gente ouvia o som de longe, as musiquinhas dos anúncios
comerciais, as vinhetas e até, claro, os gritos do narrador. A gente tinha
certeza de que meu pai estava dormindo, só que de repente ele soltava um
palavrão, xingando um jogador qualquer, ou um bandeirinha desqualificado ou
mesmo o juiz, sempre o personagem preferido.
Uma hora a gente ouvia o ronco alto dele,
daqueles que quase assobia no final, de tão profundo. Dali a pouco ele falava,
resmungava e soltava o palavrão. Nessa hora, na sala, a minha mãe logo
levantava o dedo pra gente e dizia “eu não disse que ele não estava dormindo?”.
E todo mundo caía na risada.
Os locutores que meu pai me ensinou a gostar
foram Valdir Amaral e Jorge Curi. Este último era um flamenguista fanático e
não escondia a sua tendência narrativa quando saía gol. Pelo grito e pela
verve, de longe eu já sabia que era gol do Flamengo. Na verdade, com aquele
meio campo com Andrade, Adílio e Zico os gols eram sempre uma sequência lógica,
quase matemática, metafísica, tipo metafórica, metagaláctica, metalônima,
enfim.
Na telinha o nosso ídolo era Januário de
Oliveira, da TV Educativa, a tevê pública do Rio de Janeiro. O jogo principal
do domingo passava sempre à meia-noite em VT, com narração dele. Eu e meu pai
combinávamos de ver o jogo juntos, mesmo com a promessa de sonolência na
segunda-feira, e minha mãe sempre preparava algum petisco de surpresa pra vir ver
o Mengão com a gente.
Aqui cabe um parêntesis bem marcado. Minha mãe
sabia muito de futebol. Sabia mais do que eu e meu pai. Muito mais. Ela
percebia as táticas, os deslocamentos e as infiltrações dos jogadores, as
tabelas pra avançar nas linhas de defesa, as viradas de jogo e até as trocas de
posições que os jogadores faziam durante a partida pra confundir a marcação.
Muitas vezes ela nos chamava a atenção apontando
pra tela e dizendo “olha só como o Lico saiu da esquerda pra receber no meio”,
ou então “tá vendo como o Júnior prendeu a bola pra esperar a entrada do
Nunes?”. Era tão rápido que a gente corria o olho pra ver o jogador no campo e
tentar entender o que ela dizia.
Quando tinha jogo importante, decisão ou
eliminatório, meu pai tinha um ritual todo especial. Ele comprava barbante
virgem e dava um nó pra cada jogador do time adversário. Dizia que era pra
amarrar o jogo dele, o mardito. O goleiro ganhava três nós por segurança e,
algumas vezes, esse barbante cheio de nós ia pra baixo do pé do sofá, onde a
gente sentava, ou ia direto pro congelador.
Duas coisas engraçadas que eu me lembro dessa
liturgia futebolística lá de casa. Uma era quando ia entrar um jogador do banco
que não tinha sido amarrado. Meu pai corria no congelador e acrescentava o novo
nó, falando o nome do atleta que ia entrar. E a outra era quando o nome do
jogador era muito complicado, jogador do exterior por exemplo, aí ele preparava
o nó e me chamava:
– Fala esse nome aí pra mim, que eu vou amarrar
esse sacana.
Aí eu lia o nome e ele apertava o nó com toda a
força.
Um dia desses eu estava vendo um jogo do
campeonato brasileiro, desses que a gente fica 90 minutos e não vê uma única
jogada bonita ou de craque, o chamado futebol moderno. Eu estava assistindo em
Floripa, meu irmão em Campo Grande/MS e meu filho no Rio. Os dois assistindo
também e teclando no celular comigo. O jogo prestes a acabar, o Flamengo
precisando de um gol, o tempo passando e, de repente, gol do Flamengo no último
minuto.
Acabou o jogo em seguida e eu não me contive. Fiquei
de pé na frente da tevê, mostrando a mão fechada na direção da imagem,
encolhendo e esticando o braço quase de joelho, com o corpo todo curvado. Aí,
disse “pronto, agora vou ligar pros dois”.
Quando meu irmão atendeu passou logo pra minha
cunhada.
– Cunhado, o cara ficou louco aqui com o gol.
Foi pra frente da tevê, ficou em pé mostrando o braço esticado, com os punhos
fechados, parecia que ia entrar televisão adentro. Tá doido o bicho aqui.
Mandei beijos e parabéns e corri pra ligar pro
Deco.
– Fala flamenguista sofredor – disse eu já quase
rouco.
– Pai, eu não tenho saúde pra esses jogos não!
Fiquei elétrico aqui, torcendo quietinho até o gol. Aí depois não consegui nem
ficar sentado. Fui pra frente da tevê e fiquei chamando todo mundo pra porrada,
levantei o mãozão fechado aqui que eles merecem, rapaz, e estiquei os braços pra
mostrar onde corre o sangue rubro-negro. Que jogo!
Meu irmão. Meu filho. Eu. O Flamengo.
E a saudade do meu pai.
Acho que o velho nos ensinou tudo direitinho...