sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O Futebol


Uma coisa que me faz ser saudosista é o tal do futebol. No meu tempo de adolescente me lembro que no rádio todo jogo era um jogão. E depois, quando a gente via os jogos, em reprises que passava no final da programação da tevê, que se chamava videotape, a gente só confirmava que aquelas 150 mil pessoas do Maracanã tinham ido assistir um futebol de alto nível.
Mas ouvir o jogo, direto, pelo rádio, era muito bom. Acho que hoje a crueza das imagens, capazes de constatar a pouca qualidade dos jogadores, não deixa qualquer dúvida no espectador. Se fosse transmitido pelo rádio talvez o narrador pudesse produzir alguma emoção, à revelia do próprio jogo.
Na minha casa todo mundo é Flamengo. Aos domingos, depois do almoço meu pai dormia com o radinho ligado debaixo do travesseiro. A gente ouvia o som de longe, as musiquinhas dos anúncios comerciais, as vinhetas e até, claro, os gritos do narrador. A gente tinha certeza de que meu pai estava dormindo, só que de repente ele soltava um palavrão, xingando um jogador qualquer, ou um bandeirinha desqualificado ou mesmo o juiz, sempre o personagem preferido.
Uma hora a gente ouvia o ronco alto dele, daqueles que quase assobia no final, de tão profundo. Dali a pouco ele falava, resmungava e soltava o palavrão. Nessa hora, na sala, a minha mãe logo levantava o dedo pra gente e dizia “eu não disse que ele não estava dormindo?”. E todo mundo caía na risada.
Os locutores que meu pai me ensinou a gostar foram Valdir Amaral e Jorge Curi. Este último era um flamenguista fanático e não escondia a sua tendência narrativa quando saía gol. Pelo grito e pela verve, de longe eu já sabia que era gol do Flamengo. Na verdade, com aquele meio campo com Andrade, Adílio e Zico os gols eram sempre uma sequência lógica, quase matemática, metafísica, tipo metafórica, metagaláctica, metalônima, enfim.
Na telinha o nosso ídolo era Januário de Oliveira, da TV Educativa, a tevê pública do Rio de Janeiro. O jogo principal do domingo passava sempre à meia-noite em VT, com narração dele. Eu e meu pai combinávamos de ver o jogo juntos, mesmo com a promessa de sonolência na segunda-feira, e minha mãe sempre preparava algum petisco de surpresa pra vir ver o Mengão com a gente.
Aqui cabe um parêntesis bem marcado. Minha mãe sabia muito de futebol. Sabia mais do que eu e meu pai. Muito mais. Ela percebia as táticas, os deslocamentos e as infiltrações dos jogadores, as tabelas pra avançar nas linhas de defesa, as viradas de jogo e até as trocas de posições que os jogadores faziam durante a partida pra confundir a marcação.
Muitas vezes ela nos chamava a atenção apontando pra tela e dizendo “olha só como o Lico saiu da esquerda pra receber no meio”, ou então “tá vendo como o Júnior prendeu a bola pra esperar a entrada do Nunes?”. Era tão rápido que a gente corria o olho pra ver o jogador no campo e tentar entender o que ela dizia.
Quando tinha jogo importante, decisão ou eliminatório, meu pai tinha um ritual todo especial. Ele comprava barbante virgem e dava um nó pra cada jogador do time adversário. Dizia que era pra amarrar o jogo dele, o mardito. O goleiro ganhava três nós por segurança e, algumas vezes, esse barbante cheio de nós ia pra baixo do pé do sofá, onde a gente sentava, ou ia direto pro congelador.
Duas coisas engraçadas que eu me lembro dessa liturgia futebolística lá de casa. Uma era quando ia entrar um jogador do banco que não tinha sido amarrado. Meu pai corria no congelador e acrescentava o novo nó, falando o nome do atleta que ia entrar. E a outra era quando o nome do jogador era muito complicado, jogador do exterior por exemplo, aí ele preparava o nó e me chamava:
– Fala esse nome aí pra mim, que eu vou amarrar esse sacana.
Aí eu lia o nome e ele apertava o nó com toda a força.
Um dia desses eu estava vendo um jogo do campeonato brasileiro, desses que a gente fica 90 minutos e não vê uma única jogada bonita ou de craque, o chamado futebol moderno. Eu estava assistindo em Floripa, meu irmão em Campo Grande/MS e meu filho no Rio. Os dois assistindo também e teclando no celular comigo. O jogo prestes a acabar, o Flamengo precisando de um gol, o tempo passando e, de repente, gol do Flamengo no último minuto.
Acabou o jogo em seguida e eu não me contive. Fiquei de pé na frente da tevê, mostrando a mão fechada na direção da imagem, encolhendo e esticando o braço quase de joelho, com o corpo todo curvado. Aí, disse “pronto, agora vou ligar pros dois”.
Quando meu irmão atendeu passou logo pra minha cunhada.
– Cunhado, o cara ficou louco aqui com o gol. Foi pra frente da tevê, ficou em pé mostrando o braço esticado, com os punhos fechados, parecia que ia entrar televisão adentro. Tá doido o bicho aqui.
Mandei beijos e parabéns e corri pra ligar pro Deco.
– Fala flamenguista sofredor – disse eu já quase rouco.
– Pai, eu não tenho saúde pra esses jogos não! Fiquei elétrico aqui, torcendo quietinho até o gol. Aí depois não consegui nem ficar sentado. Fui pra frente da tevê e fiquei chamando todo mundo pra porrada, levantei o mãozão fechado aqui que eles merecem, rapaz, e estiquei os braços pra mostrar onde corre o sangue rubro-negro. Que jogo!
Meu irmão. Meu filho. Eu. O Flamengo.
E a saudade do meu pai.
Acho que o velho nos ensinou tudo direitinho...


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A Contratação


No final da década de 1980 eu fui designado, pelo diretor do órgão público onde eu trabalhava, pra contratar um arquiteto. O órgão mantinha convênio com muitas creches no estado do Rio de Janeiro e a direção pediu um estudo geral da qualidade das instalações que abrigavam as crianças, pois era grande a preocupação com a falta de recursos que ocorria em quase todas as unidades de atendimento.
A realidade era que a manutenção das creches era bem precária desde sempre e o novo projeto vinha justamente propor uma verba especial, ao menos para sanar os casos mais urgentes, como infiltrações, recuperação de telhados, portas e janelas e, claro, as instalações hidráulicas e elétricas que tiravam o sono do diretor e nosso também, como subordinados chefes de Seção.
Falei com alguns colegas da área pra me ajudar e eles tabularam algumas questões específicas pra que eu pudesse entrevistar os postulantes ao cargo. Achei aquilo ótimo porque eu fazia as mesmas perguntas a todos e ia anotando as respostas pra poder avaliar, junto com a comissão, os melhores candidatos.
Logo de cara me surpreendi com uma menina, muito jovem, que sabia muito de tudo. Se fosse o Tom Jobim o avaliador, diria que aquela arquiteta era uma craque. Muito segura, ela contou que foi até visitar algumas creches pra saber realmente do que se tratava e pra poder ter uma ideia de grandeza do problema. Eu gostei da palavra grandeza que ela usou, até porque definia especificamente que era muita coisa a ser feita, ao contrário do que supunha o nosso pobre e preocupado diretor.
O último candidato que eu entrevistei também foi curioso, mas, digamos, por um motivo diferente. Seu nome era Cássio e possuía mais cursos de especialização do que todos os outros concorrentes. Disse que a faculdade sozinha não formava ninguém e que o bom profissional tinha que procurar sempre melhorar, o que causou uma boa impressão logo de cara. Algum tempo depois, pensando nas duas entrevistas, eu fiz um paralelo entre a grandeza da nossa necessidade, mencionada pela menina arquiteta, e a grandeza do ego do Cássio. O que foi uma pena.
Voltando à entrevista, eu ia lendo cada questão, comum a todos. Por exemplo, se o candidato sabia fazer uma planta do local visitado e indicar nela os problemas encontrados. Ao que ele respondeu:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer. Mas hoje em dia, com uma boa foto a gente resolve isso.
Depois eu perguntei se ele podia estimar o material a ser usado e o custo para a gente conseguir verba para a obra, detalhando a execução das etapas. E ele respondeu:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer. Mas a gente pode dar um chute, assim por cima, que aí não vai faltar verba, né? O problema seria faltar. Se sobrar, tá tranquilo.
Rapidamente eu passei pra outra e outra questão e todas iam cumprindo a estranha sequência do “puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer”, seguidas por uma esdrúxula observação sobre a sua solução. Se fosse o Dadá Maravilha, o Dario Peito de Aço, ele diria que o problema daquele candidato era a sua nenhuma aptidão para a solucionática diante da problemática. E olha que o Dadá sempre sabia muito bem do que estava falando.
Ao final eu olhei os meus papéis com as perguntas e conferi nele todas as vezes que eu anotei “tá aí uma coisa que ele não sabe fazer”, embaixo de cada uma delas. Depois passei pra ele as informações de praxe sobre o prazo de análise e a data do resultado das entrevistas, enumerei os documentos necessários à contratação e quando ia dar por encerrada a sessão ele me interrompeu:
– Então, pelas entrevistas que você fez, do pessoal que foi avaliado, esse monte de cursos que eu tenho, será que você pode dar uma forcinha pra eu ser o contratado?
Então eu nem precisei pensar muito numa resposta, porque a frase me veio fácil como se ela estivesse escrita num quadro atrás da minha mesa. Eu só a li:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não vou poder fazer – disse como se fosse o meu professor Záulio, de Antropologia, com a prova corrigida na mão, diante do aluno a pedir nota maior pra passar de fase.
Então, deu um estalo em mim e eu parei tudo. Me sentei de novo e fiquei conversando com o Cássio um bom tempo ali na sala. Na verdade eu estava preocupado de ter soado grosseiro a minha resposta e expliquei que o modo como ele se comportou não me dava alternativa em relação a sua contratação.
No final demos boas risadas e até a secretária Ana, que era formada em filosofia, ao entrar na sala pra me avisar que ia sair pro almoço, deu o seu pitaco, batendo no ombro dele:
– Menino, como tu faz uma entrevista dessas? Só falou das coisas que tu não sabia, rapaz!
Aquele bordão do Cássio esteve presente por muito tempo na Seção de Patrimônio daquele órgão. Cada um que tomava conhecimento da história o adotava pra si, principalmente quando queria negar alguma coisa pra alguém, em tom jocoso. Era só um servidor pedir um favor ou mesmo uma tarefa de trabalho, que logo o outro respondia: “tá aí uma coisa que eu não sei fazer”, e todos riam juntos.
Mas me lembro bem que, naquele dia, a minha maior preocupação, no momento seguinte que eu respondi ao Cássio, foi que ele não ficasse magoado comigo. Vá lá que ele até merecia a resposta, mas senti que peguei pesado com o rapaz. Ainda bem que a conversa que tivemos depois, que era pra ele não ficar mal, serviu ainda mais pra mim.