quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A Contratação


No final da década de 1980 eu fui designado, pelo diretor do órgão público onde eu trabalhava, pra contratar um arquiteto. O órgão mantinha convênio com muitas creches no estado do Rio de Janeiro e a direção pediu um estudo geral da qualidade das instalações que abrigavam as crianças, pois era grande a preocupação com a falta de recursos que ocorria em quase todas as unidades de atendimento.
A realidade era que a manutenção das creches era bem precária desde sempre e o novo projeto vinha justamente propor uma verba especial, ao menos para sanar os casos mais urgentes, como infiltrações, recuperação de telhados, portas e janelas e, claro, as instalações hidráulicas e elétricas que tiravam o sono do diretor e nosso também, como subordinados chefes de Seção.
Falei com alguns colegas da área pra me ajudar e eles tabularam algumas questões específicas pra que eu pudesse entrevistar os postulantes ao cargo. Achei aquilo ótimo porque eu fazia as mesmas perguntas a todos e ia anotando as respostas pra poder avaliar, junto com a comissão, os melhores candidatos.
Logo de cara me surpreendi com uma menina, muito jovem, que sabia muito de tudo. Se fosse o Tom Jobim o avaliador, diria que aquela arquiteta era uma craque. Muito segura, ela contou que foi até visitar algumas creches pra saber realmente do que se tratava e pra poder ter uma ideia de grandeza do problema. Eu gostei da palavra grandeza que ela usou, até porque definia especificamente que era muita coisa a ser feita, ao contrário do que supunha o nosso pobre e preocupado diretor.
O último candidato que eu entrevistei também foi curioso, mas, digamos, por um motivo diferente. Seu nome era Cássio e possuía mais cursos de especialização do que todos os outros concorrentes. Disse que a faculdade sozinha não formava ninguém e que o bom profissional tinha que procurar sempre melhorar, o que causou uma boa impressão logo de cara. Algum tempo depois, pensando nas duas entrevistas, eu fiz um paralelo entre a grandeza da nossa necessidade, mencionada pela menina arquiteta, e a grandeza do ego do Cássio. O que foi uma pena.
Voltando à entrevista, eu ia lendo cada questão, comum a todos. Por exemplo, se o candidato sabia fazer uma planta do local visitado e indicar nela os problemas encontrados. Ao que ele respondeu:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer. Mas hoje em dia, com uma boa foto a gente resolve isso.
Depois eu perguntei se ele podia estimar o material a ser usado e o custo para a gente conseguir verba para a obra, detalhando a execução das etapas. E ele respondeu:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer. Mas a gente pode dar um chute, assim por cima, que aí não vai faltar verba, né? O problema seria faltar. Se sobrar, tá tranquilo.
Rapidamente eu passei pra outra e outra questão e todas iam cumprindo a estranha sequência do “puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer”, seguidas por uma esdrúxula observação sobre a sua solução. Se fosse o Dadá Maravilha, o Dario Peito de Aço, ele diria que o problema daquele candidato era a sua nenhuma aptidão para a solucionática diante da problemática. E olha que o Dadá sempre sabia muito bem do que estava falando.
Ao final eu olhei os meus papéis com as perguntas e conferi nele todas as vezes que eu anotei “tá aí uma coisa que ele não sabe fazer”, embaixo de cada uma delas. Depois passei pra ele as informações de praxe sobre o prazo de análise e a data do resultado das entrevistas, enumerei os documentos necessários à contratação e quando ia dar por encerrada a sessão ele me interrompeu:
– Então, pelas entrevistas que você fez, do pessoal que foi avaliado, esse monte de cursos que eu tenho, será que você pode dar uma forcinha pra eu ser o contratado?
Então eu nem precisei pensar muito numa resposta, porque a frase me veio fácil como se ela estivesse escrita num quadro atrás da minha mesa. Eu só a li:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não vou poder fazer – disse como se fosse o meu professor Záulio, de Antropologia, com a prova corrigida na mão, diante do aluno a pedir nota maior pra passar de fase.
Então, deu um estalo em mim e eu parei tudo. Me sentei de novo e fiquei conversando com o Cássio um bom tempo ali na sala. Na verdade eu estava preocupado de ter soado grosseiro a minha resposta e expliquei que o modo como ele se comportou não me dava alternativa em relação a sua contratação.
No final demos boas risadas e até a secretária Ana, que era formada em filosofia, ao entrar na sala pra me avisar que ia sair pro almoço, deu o seu pitaco, batendo no ombro dele:
– Menino, como tu faz uma entrevista dessas? Só falou das coisas que tu não sabia, rapaz!
Aquele bordão do Cássio esteve presente por muito tempo na Seção de Patrimônio daquele órgão. Cada um que tomava conhecimento da história o adotava pra si, principalmente quando queria negar alguma coisa pra alguém, em tom jocoso. Era só um servidor pedir um favor ou mesmo uma tarefa de trabalho, que logo o outro respondia: “tá aí uma coisa que eu não sei fazer”, e todos riam juntos.
Mas me lembro bem que, naquele dia, a minha maior preocupação, no momento seguinte que eu respondi ao Cássio, foi que ele não ficasse magoado comigo. Vá lá que ele até merecia a resposta, mas senti que peguei pesado com o rapaz. Ainda bem que a conversa que tivemos depois, que era pra ele não ficar mal, serviu ainda mais pra mim.