sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Viva Santo Antônio


O projeto de cinema já tinha uns cinco anos que acontecia em Florianópolis, quando resolvemos fazer uma sessão na cidade de Laguna, no sul do estado, com o apoio do escritório técnico daquela cidade.
Naquela ocasião o histórico e imponente cinema da cidade estava fechado há alguns anos e era triste para os moradores terem de se deslocar até a cidade vizinha, simplesmente pra poder ir ao cinema, ainda mais tendo uma bela construção daquele porte bem no centro da cidade, porém fora de uso.
Esta foi uma das razões pelas quais tivemos a iniciativa de levar o projeto pra lá. Na verdade a programação não envolvia somente a projeção de um filme, pois era um evento que se estendia além da própria sessão e buscava, ao fim desta, a participação da plateia de modo que ela se sentisse convidada a fazer comentários sobre o filme, em uma espécie de debate, que contava com a ajuda de um mediador.
Já nas primeiras reuniões a gente resolveu mudar o local da projeção. Deixamos de lado o comum e previsível auditório e decidimos usar como tela a parede cega na lateral da igreja matriz, na praça central, que proporcionaria um quadro de grandes dimensões e poderia ser visto de muito longe.
Em seguida, sendo ao ar livre, teríamos de usar uma boa amplificação de som, inclusive com microfones, para que as pessoas pudessem ser ouvidas durante os debates.
E, por fim, a escolha do filme tinha de ser certeira, igualmente atrativa pra todo o público e instigante para os espectadores de primeira viagem, ao menos para que voltassem na próxima sessão. Sendo assim, dentre os filmes sugeridos pelas equipes de Laguna e Floripa, o escolhido foi A Rosa Púrpura do Cairo, do diretor Woody Allen.
A trama é divertida e começa com uma mulher que está no cinema quando, de repente, um dos personagens do filme olha pra ela, ali sentada na plateia, e começa a lhe fazer perguntas, interagindo com ela ante o espanto dos outros personagens do próprio filme. Não satisfeito em apenas falar com a moça o homem resolve sair da tela, se materializa com um corpo físico e desce do palco pra conhecê-la melhor.
Bem, a partir da escolha do filme a gente ficou bem empolgado, imaginando essa cena acontecendo naquele telão enorme na parede da igreja e pensando na reação do público com aquilo. O mediador também foi orientado a provocar na plateia o interesse pelo cinema, pela cultura enfim, fazendo um painel sobre a obra do diretor e sua trajetória, além de dar dicas cinematográficas e citar curiosidades sobre as produções do cinema brasileiro que, certamente, poderiam ser indicadas para as próximas sessões.
No dia marcado, tudo conferido. Som, projetor de DVD, microfones, fios pra todos os lados, caixas, a limpeza do espaço, tudo era passado e repassado desde cedo. O padre veio acompanhar a montagem do equipamento e, elogiando a nossa iniciativa, disse que ia dar tudo certo pois agora era só esperar a noite chegar pra tela se acender.
A gente pegou algumas cadeiras emprestadas do salão paroquial mas elas nem deram pra saída, de tanta gente que chegava. No instante seguinte tinha pessoas sentadas no chão, em lençóis e toalhas, em bancos de todos os tipos e tamanhos, em cadeiras de praia e até nos carros ao fundo da praça. Depois chegaram as carrocinhas de pipoca, o homem do algodão doce e do churros e, a seguir, a água e o refrigerante pra que a sessão começasse.
O som da plateia rindo toda junta, as movimentações e reações das pessoas conforme o filme avançava eram acompanhadas por nós com muita alegria e sentimento de dever cumprido.
Assim, quando o filme terminou, quando a gente estava começando a montar o local pro mediador fazer a introdução aos debates, uma chuva surpreendeu todo mundo e a correria foi enorme. A gente correu pra proteger o equipamento, as cadeiras e o público esvaziou o local com a mesma pressa.
Nenhum de nós queria admitir a frustração pela chuva ter chegado bem na hora da mediação, mas foi visível a melancolia no rosto da equipe, enquanto arrumava tudo pra ir embora. Era a primeira sessão do projeto na cidade e a gente contava com a participação do público, queríamos ter falado do projeto, dos filmes, do cinema, da Cultura. Mas a chuva chegou e estragou tudo.
Enfim, no dia seguinte, no portão do escritório, antes de voltar pra Florianópolis, a gente estava meio cabisbaixo, meio sem jeito nas despedias, com receio de aumentar o já grande desalento do grupo, quando um senhor, morador local, passando do outro lado da praça nos viu e acenou, vindo até nós.
Ele era conhecido dos funcionários do escritório e quando chegou perto já foi cumprimentando todo mundo:
– Olha, vocês estão de parabéns, meninos. Que belo trabalho vocês fizeram para a nossa cidade aqui na noite de ontem. Um filme belíssimo. Uma tela gigante daquela, com qualidade melhor do que muito cinema por aí.
– Obrigado – murmurou timidamente uma das meninas.
E o velhinho continuou:
– Vocês sabem que essa nossa igreja aqui é de Santo Antônio dos Anjos, né? E vocês, além do trabalho realizado, também tiveram muita sorte, vocês sabem? Claro, foi muita sorte de todos nós que a chuva só chegou quando o filme terminou. Parece que estava tudo combinado. Nem uma gota durante o filme. E foi só ele acabar pra Santo Antônio então deixar a chuva cair. Sorte a nossa. Sorte de vocês. Então eu repito com muito orgulho: parabéns a vocês todos. E não se esqueçam de agradecer sempre ao nosso Santo Antônio.
De repente o que era tristeza se transformou em alegria. Em cada um surgiu um contentamento sem tamanho que nenhum de nós tinha se dado conta até aquele momento. A gente só estava lamentando a chuva no final do filme e foi exatamente por aquilo, pela chuva só ter caído no final da sessão, que o velhinho estava contente, dizendo que tudo tinha dado certo e que a gente teve sorte, muita sorte.
Então, todos nós nos abraçamos novamente, agora com grandes e fraternos sorrisos nos rostos, trocando parabéns entre todos, com a alegria de termos feito um trabalho legal e com ânimo pra continuar o nosso projeto de cinema.
Quando entramos no carro e abrimos o vidro pra dar adeus, alguém gritou “Viva Santo Antônio”.
E todos respondemos: – Viva Santo Antônio!


quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A Escada


Já tem um tempo que eu venho me cobrando caminhar mais, pedalar sempre que puder e, enfim, fazer exercícios regulares, estendendo as atividades físicas a algo mais do que o ansiado jogo de tênis nos finais de semana.
Então, algumas vezes eu pensava em subir pelas escadas no meu prédio, ao invés de ficar esperando o elevador. De frente pro espelho, na portaria, eu me pegava indeciso, dizendo mentalmente que minha preguiça era mato e que se Deus desse uma mãozinha, aí sim, eu poderia desenvolver uma rotina tal e fazer os exercícios que tanto queria, combatendo o meu princípio de sedentarismo barrigulático sorrelfo.
Um dia eu cheguei em casa na hora do almoço e encontrei o prédio sem luz. Tudo às escuras, entrei pela portaria, não vi ninguém e, automaticamente, passei pela porta corta-fogo que dá acesso às escadas. Subi os cinco andares, dois de garagem e três de apartamentos, até chegar ao meu, que é o terceiro.
Quando estava acabando de esquentar um breve alimento regenerativo, qual um papalvo, a luz voltou. E foi aí que eu me dei conta de que a falta de energia ocorreu exatamente no espaço de tempo de eu subir as escadas, e que, se o problema era contar com a ajudinha de Deus, pronto, ela tinha vindo ao meu encalço naquele dia.
Todo contente com a coincidência divina, eu terminei o meu almoço e voltei pro trabalho pensando seriamente que, amanhã, mesmo tendo luz, eu bem que poderia subir de escada novamente. Deste modo eu nem precisaria da ajudinha de Deus, pois eu mesmo seria a minha própria ajuda pra colaborar com o fim do tal sintoma barrigulático.
Decidido a ir pelas escadas, no dia seguinte eu cheguei na portaria e, que estranho, tudo escuro de novo. Olha Deus, hoje nem precisava, eu pensei. Eu ia de escada de qualquer maneira, o senhor nem precisava se preocupar comigo. E fui subindo novamente os cinco andares como já explicado, dois de garagem e três de apartamentos.
Minha surpresa foi constatar que, de novo, dali a uns 15 minutos a luz voltou. Eu até me assustei porque estava perto da geladeira e ela tocou um bipe longo quando ligou e começou a acender umas luzinhas de controle, fazendo um monte de outros bipinhos. Bem, pelo menos dessa vez eu ia poder esquentar a comida no microondas, ao contrário do dia anterior, quando a luz só voltou depois de tudo ter sido feito no fogão mesmo.
No terceiro dia eu confesso que, na hora em que cheguei pro almoço, já tinha até esquecido o compromisso de subir pelas escadas. Na verdade, antes eu tinha passado na lavanderia pra buscar o edredom e o saco que eu trazia comigo era enorme. Não era pesado, mas se existe um troço difícil de carregar é um saco com um edredom. Bate nas pernas quando a gente anda, arrasta no chão se a gente estica muito o braço. Ele é motivo suficiente pra o cabra que sofre do conhecido sedentarismo barrigulático localizado rejeitar qualquer esforço a mais em prol da sua cura episódica. Então, com o advento do edredom eu tinha dito pra mim mesmo, no caminho pra casa, que não ia de escada dessa vez, de jeito nenhum, aconteça o que acontecer.
Acontece que não tinha luz no prédio pelo terceiro dia consecutivo e eu pensei logo: mas assim não dá. Assim Deus já está extrapolando. Até Deus, como deus, tem lá os seus direitos, ok, mas isso já é demais.
Lembrando que nos dias anteriores a luz voltava logo assim que eu chegava em casa, resolvi enganar Deus dessa vez e fiquei ali na portaria esperando pelo seu retorno. Não o retorno de Deus, mas da energia no prédio!
Deu uns 10 minutos, nada. Decorreram uns 15 e o porteiro passou por mim. Me cumprimentou ali no corredor da entrada, foi até a sua mesa, titubeou – os porteiros sabem titubear como poucos –, me olhou de novo lá de longe e veio até mim.
– O senhor vai subir?
– Sim, estou esperando a luz voltar.
– Mas é que ela não vai voltar, não.
– Como assim? Todo dia eu subo de escada e assim que eu chego em casa a luz volta. É só o tempo de eu chegar mesmo. Então, hoje eu não vou cair nessa de novo. Vou esperar aqui – disse com decisão.
– Mas é que hoje eles estão trocando a caixa de luz da Garagem 1. Tem três dias que eles estão aí mexendo nela. Só que hoje vai ser a troca final mesmo. Por isso a luz só vai normalizar às 16 horas, 4 da tarde, quando eles terminarem tudo.
– Tem certeza? E como é que nos outros dias tinha luz?
– Sim, tinha mesmo. Mas é que o síndico combinou com a empresa de deixar o prédio com energia no horário de almoço, para o pessoal que vem almoçar em casa, sabe? Mas foi só nos dois primeiros dias. Hoje eles não vão parar até terminar todo o trabalho. Por isso só vão religar a luz às 16 horas.
Enquanto eu ia subindo as escadas com o saco do edredom na mão, vencendo os cinco andares, dois de gara... – acho que já escrevi isso –, só me vinha à cabeça que nos outros dias eu poderia, simplesmente, ter esperado dar meio-dia pra luz voltar e teria subido de elevador. Ademais, definitivamente, aquilo não tinha nada a ver com Deus e, sim, com os eletricistas que estavam no prédio.
Deixei o edredom em casa e saí pra almoçar na esquina mesmo. Quando passava pelo Emerson de novo, na portaria, ele veio todo solene me dizer que tinha um quadro bem grande no elevador, avisando dos serviços elétricos e os horários que o prédio ia ficar sem luz.
– Eu até vi o senhor chegar ontem e antes de ontem. Notei que faltavam cinco minutos pra eles ligarem a luz. Ia dizer pra o senhor esperar um pouco. Mas como o senhor passava sempre com pressa e ia direto pra escada, aí eu não falava nada. Achei que o senhor sabia.
Deus está em tudo, é verdade. Ele nos ajuda aqui e ali, sempre que pode. Pelo menos a gente acredita nisso. Mas um pouco de atitude da nossa parte, de vez em quando, não faria mal algum.
Então, de hoje em diante, eu vou voltar a pedalar, caminhar mais, subir as escadas, jogar tênis com mais frequência, enfim, até comer menos doce.
Humm... Pois é, comer menos doce já é um pouco demais, né?
Tem coisas que se pode negociar.
Outras, não!