quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A Escada


Já tem um tempo que eu venho me cobrando caminhar mais, pedalar sempre que puder e, enfim, fazer exercícios regulares, estendendo as atividades físicas a algo mais do que o ansiado jogo de tênis nos finais de semana.
Então, algumas vezes eu pensava em subir pelas escadas no meu prédio, ao invés de ficar esperando o elevador. De frente pro espelho, na portaria, eu me pegava indeciso, dizendo mentalmente que minha preguiça era mato e que se Deus desse uma mãozinha, aí sim, eu poderia desenvolver uma rotina tal e fazer os exercícios que tanto queria, combatendo o meu princípio de sedentarismo barrigulático sorrelfo.
Um dia eu cheguei em casa na hora do almoço e encontrei o prédio sem luz. Tudo às escuras, entrei pela portaria, não vi ninguém e, automaticamente, passei pela porta corta-fogo que dá acesso às escadas. Subi os cinco andares, dois de garagem e três de apartamentos, até chegar ao meu, que é o terceiro.
Quando estava acabando de esquentar um breve alimento regenerativo, qual um papalvo, a luz voltou. E foi aí que eu me dei conta de que a falta de energia ocorreu exatamente no espaço de tempo de eu subir as escadas, e que, se o problema era contar com a ajudinha de Deus, pronto, ela tinha vindo ao meu encalço naquele dia.
Todo contente com a coincidência divina, eu terminei o meu almoço e voltei pro trabalho pensando seriamente que, amanhã, mesmo tendo luz, eu bem que poderia subir de escada novamente. Deste modo eu nem precisaria da ajudinha de Deus, pois eu mesmo seria a minha própria ajuda pra colaborar com o fim do tal sintoma barrigulático.
Decidido a ir pelas escadas, no dia seguinte eu cheguei na portaria e, que estranho, tudo escuro de novo. Olha Deus, hoje nem precisava, eu pensei. Eu ia de escada de qualquer maneira, o senhor nem precisava se preocupar comigo. E fui subindo novamente os cinco andares como já explicado, dois de garagem e três de apartamentos.
Minha surpresa foi constatar que, de novo, dali a uns 15 minutos a luz voltou. Eu até me assustei porque estava perto da geladeira e ela tocou um bipe longo quando ligou e começou a acender umas luzinhas de controle, fazendo um monte de outros bipinhos. Bem, pelo menos dessa vez eu ia poder esquentar a comida no microondas, ao contrário do dia anterior, quando a luz só voltou depois de tudo ter sido feito no fogão mesmo.
No terceiro dia eu confesso que, na hora em que cheguei pro almoço, já tinha até esquecido o compromisso de subir pelas escadas. Na verdade, antes eu tinha passado na lavanderia pra buscar o edredom e o saco que eu trazia comigo era enorme. Não era pesado, mas se existe um troço difícil de carregar é um saco com um edredom. Bate nas pernas quando a gente anda, arrasta no chão se a gente estica muito o braço. Ele é motivo suficiente pra o cabra que sofre do conhecido sedentarismo barrigulático localizado rejeitar qualquer esforço a mais em prol da sua cura episódica. Então, com o advento do edredom eu tinha dito pra mim mesmo, no caminho pra casa, que não ia de escada dessa vez, de jeito nenhum, aconteça o que acontecer.
Acontece que não tinha luz no prédio pelo terceiro dia consecutivo e eu pensei logo: mas assim não dá. Assim Deus já está extrapolando. Até Deus, como deus, tem lá os seus direitos, ok, mas isso já é demais.
Lembrando que nos dias anteriores a luz voltava logo assim que eu chegava em casa, resolvi enganar Deus dessa vez e fiquei ali na portaria esperando pelo seu retorno. Não o retorno de Deus, mas da energia no prédio!
Deu uns 10 minutos, nada. Decorreram uns 15 e o porteiro passou por mim. Me cumprimentou ali no corredor da entrada, foi até a sua mesa, titubeou – os porteiros sabem titubear como poucos –, me olhou de novo lá de longe e veio até mim.
– O senhor vai subir?
– Sim, estou esperando a luz voltar.
– Mas é que ela não vai voltar, não.
– Como assim? Todo dia eu subo de escada e assim que eu chego em casa a luz volta. É só o tempo de eu chegar mesmo. Então, hoje eu não vou cair nessa de novo. Vou esperar aqui – disse com decisão.
– Mas é que hoje eles estão trocando a caixa de luz da Garagem 1. Tem três dias que eles estão aí mexendo nela. Só que hoje vai ser a troca final mesmo. Por isso a luz só vai normalizar às 16 horas, 4 da tarde, quando eles terminarem tudo.
– Tem certeza? E como é que nos outros dias tinha luz?
– Sim, tinha mesmo. Mas é que o síndico combinou com a empresa de deixar o prédio com energia no horário de almoço, para o pessoal que vem almoçar em casa, sabe? Mas foi só nos dois primeiros dias. Hoje eles não vão parar até terminar todo o trabalho. Por isso só vão religar a luz às 16 horas.
Enquanto eu ia subindo as escadas com o saco do edredom na mão, vencendo os cinco andares, dois de gara... – acho que já escrevi isso –, só me vinha à cabeça que nos outros dias eu poderia, simplesmente, ter esperado dar meio-dia pra luz voltar e teria subido de elevador. Ademais, definitivamente, aquilo não tinha nada a ver com Deus e, sim, com os eletricistas que estavam no prédio.
Deixei o edredom em casa e saí pra almoçar na esquina mesmo. Quando passava pelo Emerson de novo, na portaria, ele veio todo solene me dizer que tinha um quadro bem grande no elevador, avisando dos serviços elétricos e os horários que o prédio ia ficar sem luz.
– Eu até vi o senhor chegar ontem e antes de ontem. Notei que faltavam cinco minutos pra eles ligarem a luz. Ia dizer pra o senhor esperar um pouco. Mas como o senhor passava sempre com pressa e ia direto pra escada, aí eu não falava nada. Achei que o senhor sabia.
Deus está em tudo, é verdade. Ele nos ajuda aqui e ali, sempre que pode. Pelo menos a gente acredita nisso. Mas um pouco de atitude da nossa parte, de vez em quando, não faria mal algum.
Então, de hoje em diante, eu vou voltar a pedalar, caminhar mais, subir as escadas, jogar tênis com mais frequência, enfim, até comer menos doce.
Humm... Pois é, comer menos doce já é um pouco demais, né?
Tem coisas que se pode negociar.
Outras, não!