quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A Virose


O grupo de funcionários do supermercado chegou do almoço e todos foram, em fila, um a um, até a área administrativa pra registrar o retorno ao trabalho no ponto eletrônico instalado na parede.
Reclamando do calor em Florianópolis e da falta de disposição que ele provoca, a moça do caixa ia, aos poucos, se instalando no seu posto, manuseando os seus apetrechos, as chaves e a bolsinha com moedas, as notas miúdas para o troco etc. Em seguida, já ajeitada na sua cadeira e, vendo que a supervisora se aproxima, ela pergunta sobre a Val.
– A Valdirene não vem hoje – responde a chefe. Ela ligou e avisou que o filho ainda está doente. Eu mesma falei com ela no telefone hoje cedo.
Sem dizer nada a caixa fechou a cara e puxou os lábios pro lado do rosto, em claro sinal de descontentamento. Depois suspirou forte, contrariada, e pediu que a chefe pusesse a senha na máquina pra que ela começasse a atender os clientes.
Passaram-se alguns minutos e de novo a supervisora veio até a caixa tentando explicar:
– Você não sabe o que é ter um filho doente. Isso porque você não tem filho, é muito nova. Quando você tiver filho você vai entender. O menino dela está com uma virose e ela tem que ficar com ele. Natural.
– Mas eu não disse nada. Só que conheço muita gente que teve virose e não ficou em casa – replicou a moça.
Os outros caixas apitando suas luzes, chamando a supervisora aqui e ali e, mesmo assim, sempre que podia ela passava pela moça e trocava algumas palavras, buscando a sua compreensão para com o problema de saúde que, afinal, se referia ao filho de uma colega sua de trabalho.
– Olha, vou te explicar mais uma vez. Não é qualquer virose que o menino da Val pegou não. Eu falei com ela pelo celular hoje de manhã. Ele está com uma virose complicada. É uma virose bacteriológica. Você nem sabe o que é isso, menina.
A moça do caixa ficou passada com a explicação. Reprovando a sua própria conduta em desconfiar da colega, ela ficou remoendo aquela tal virose bacteriológica e, pior, pra cada colega que ela falava sobre a doença, e o nome complicado, este fazia uma associação ainda pior, no universo das desgraças alheias que pegam qualquer um a qualquer hora.
E a notícia só crescia.
Um dos repositores do supermercado, passando pela caixa algum tempo depois, perguntou a ela:
– Você soube da Val? Caramba, o filho dela pegou uma virose parasita que vai comendo o intestino todo. É uma bactéria que também fica no pulmão e vai enfraquecendo o garoto e parece que o coitado nem consegue respirar direito.
– Não sabia disso não. Só sabia que era, como é mesmo?, virose bacteriológica, coisa de um vírus que vai crescendo e mudando de formato e nenhum remédio consegue matar os bichos. Coitada da Val.
Por todo o período do almoço, quando os funcionários vão ao refeitório em turmas, revezando as equipes de trabalho do supermercado, o assunto era um só: o filho da Valdirene.
E cada um que passava pela frente da loja comentava alguma coisa com a pobre caixa.
– Gente, quando eu soube que era virose eu já fiquei doida. Ainda mais sendo bacteriológica? Aí só rezando pra Val mesmo. Dizem que aquele Marcelo Rezende, da Record, morreu dessa virose. Ele era até fortinho, mas ficou fraco de repente e dali só piorou. E os médicos não divulgam porque não têm nenhum remédio. Ainda estão fazendo pesquisas, sei lá, e até agora nem vacina nem nada.
– É o leite. O vizinho do meu cunhado teve isso e era o leite. O leite de caixinha. Aquilo ali é um veneno, de tanta química que tem dentro.
E eu que estava ali só fugindo do calor.
Eu tinha um compromisso depois do almoço e cheguei cedo. Aí, entrei no supermercado, fresquinho, só pra comprar um docinho básico, mas acho que fiz a compra rápido demais e quando passei pelo caixa ainda tinha muito tempo pra ficar andando na rua, naquele calorão todo. Foi então que decidi ficar ali na entrada mesmo, no cantinho esquerdo, claro, fazendo hora. Eu estava justamente em frente ao relógio de ponto e bem do lado da tal moça do caixa, que tinha voltado do almoço há pouco. Enfim, estava de camarote vendo e ouvindo tudo.
Decidido a ir embora e já pensando que aquilo viraria uma crônica, eu só quis esclarecer pra moça do caixa algo bem básico que tinha sido falado e que estava grotescamente errado, no meio de todo aquele furdunço, regado a exageros e mal-entendidos de toda ordem e pra todos os gostos, desde o começo.
– Moça, moça – comecei eu, baixinho. Eu só queria dizer que virose bacteriológica não pode ser. Uma coisa é o vírus e outra, a bactéria, portanto...
– O senhor é médico?
– Sou jornalista.
– Ah, então tá!
E eu fui saindo de fininho, com o meu doce na mão e muitas ideias na cabeça.


quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Seu Menoti


Ramos era um lugar peculiar, no finalzinho da década de 1960, porque tinha tudo. Quase nunca era preciso sair do bairro pra se conseguir o que queria. Padaria, açougue, armarinho, secos e molhados, tudo pertinho. Mas um bom exemplo dessa peculiaridade era justamente e existência de um bar ao lado de uma farmácia. O bar era o Bar do Araújo e, bem ao lado, coladinho, tinha a farmácia do Seu Menoti.
As pessoas brincavam que a tal proximidade era auspiciosa, pois o sujeito ia pro bar beber e quando ficava ruim era só ir na farmácia, ao lado, e ficava bom de novo.
Visualmente, aquela farmácia está intacta nas minhas lembranças, a começar pelo balcão, indo até as prateleiras cheias de frascos e vidros de todos os tipos, formatos e tamanhos, com suas cores variadas e seus rótulos preenchidos à mão, numa caligrafia que só mesmo o Seu Menoti era capaz de decifrar.
Farmacêutico de formação, uma obrigatoriedade nas farmácias de há algum tempo, ele era uma figura. Quase um médico da família, atendia a muita gente nas suas próprias casas, levando o remédio e aplicando as injeções, infusões ou manipulações que ele mesmo preparava, pois conhecia bem a sua clientela, todos vizinhos de muito tempo, sendo que alguns viraram amigos de frequentar a casa.
Sempre vestindo o seu enorme jaleco, que ia até o joelho, Seu Menoti era um sujeito alto, de quase dois metros. Usava um fino, mas vistoso, bigode que emoldurava a boca, e levava um indefectível óculos na ponta do nariz, seguro por um fio que ia até o pescoço. Ele olhava a gente sempre por cima dos óculos, o que normalmente nos dava a impressão de cuidado pois, como curvava a cabeça na nossa direção, parecia se aproximar como se fosse contar um segredo qualquer.
Numa bela tarde de inverno, quando todas as crianças do bairro saíam pra andar de bicicleta, de roupa nova e cabelos impecáveis, lá estava eu com a minha Monark pra aproveitar o sábado de sol e friozinho. A gente se encontrava com os amigos do bairro, os da escola e ainda tinha alguns meninos que vinham das outras ruas próximas só pra andar ali por entre o conjunto de prédios, com suas calçadas perfeitas e passagens estreitas entre as quadras. Cruzar estes becos pra ir de uma quadra a outra sempre trazia uma surpresa por quem vinha no sentido contrário e a gente sempre gritava um pro outro pra alertar e não bater de frente. Uma adrenalina, sem dúvida, das melhores.
Bem, só que neste sábado surgiu um buraco, não sei de onde, e eu passei por ele com boa velocidade. O resultado foi que subimos, eu, meus óculos e a Monark, e depois descemos a Monark primeiro, meus óculos em seguida e, por fim, a minha testa, bem em cima das lentes já quebradas no chão.
Meu pai chegou bem rápido e alguém botou um pano na minha testa pra conter o sangue. Nós fomos direto pra farmácia do Seu Menoti, claro, e eu, sem óculos, mal conseguia enxergar o caminho. Com nitidez mesmo eu só vi o rosto do farmacêutico bem grande na minha frente, olhando o corte e botando e tirando várias vezes os seus óculos de pendurar.
Com relação a procedimentos médicos, derivados e afins, o meu medo nesta vida sempre foi tomar ponto. Qualquer coisa de corte que me acontecia eu só me preocupava em não tomar ponto. Era uma coisa que me doía só de ver nas outras pessoas. Imagine em mim? Então eu estava esperando um momento de o Seu Menoti parar de falar um pouco, uma brecha mínima, pra eu poder dizer pra minha mãe, que acabava de chegar, que eu não queria levar ponto na testa de jeito nenhum.
Foi aí que veio a surpresa. Do nada o Seu Menoti disse pro meu pai que se fosse dar ponto ali ia ficar muito marcado, muito visível. Então ele queria mostrar um produto novo, recém-chegado, que estava em teste ainda, com sucesso ­– ele sublinhou ­–, que ele queria experimentar em mim.
– É um produto americano de última geração, que eles estão usando lá e ainda não está à venda no Brasil. É uma cola que é ótima pra esse tipo de ferimento, superficial, mas que pelo local é indicada pra não deixar uma cicatriz extensa.
Quando ele finalizou a explicação e disse que era um procedimento sem a necessidade de dar ponto, a minha mãe me olhou instantaneamente, como se já soubesse que aquela seria a minha súplica derradeira antes da morte que não tardava. Ela sabia desse meu medo há muito tempo e, mesmo com todo o sangue daquela cena, aquilo era definitivamente um alívio pra mim e pra ela.
Meu pai ainda ficou na dúvida, fez mais algumas perguntas ao Seu Menoti mas, no final, todos concordamos em aplicar a tal cola. Ele preparou lá a sua beberagem farmacológica basófica e trouxe até onde eu estava deitado, uma maca azul no quartinho nos fundos da farmácia.
Eu juro que quando ele chegou perto de mim com a sua mistura colante eu percebi uns tons azuis e arroxeados saindo do entorno do seu rosto e umas luzes vermelhas e rosas esfumaçadas que efluíam dos seus cabelos. A princípio atônito, comecei a achar que aquilo podia ser um tipo de alucinação pelo sangue que eu tinha perdido e busquei algum raciocínio. Mas logo veio a incerteza de que ou era isso ou eu estava mesmo a caminho do paraíso e que minha miopia me guie até os céus, porque no buraco eu já caí e deu nisso.
Enfim, só tinha um jeito de eu me tranquilizar. E foi justamente quando minha mãe me estendeu a sua mão que eu entendi que o paraíso ia esperar um bocado ainda.
Prendi a respiração e só senti o Seu Menoti puxando a pele dolorida da minha testa. Não sei qual pele tinha ali, mas ele puxou. Esticou para as laterais e depois fez um movimento juntando tudo dos dois lados do corte. Aí, com uma haste de madeira, passou a tal pasta, que era a cola, cuidando pra que cobrisse todo o ferimento. Ficou segurando por mais alguns minutos, me olhando por cima dos óculos, e depois botou duas fitas de esparadrapo feito de tecido tapando tudo para a pele não ceder.
Muitos anos depois eu li uma matéria sobre uma cola que estava sendo usada em larga escala em cirurgias específicas, como alternativas ao ponto interno em tecidos sensíveis. De cara eu me imaginei sendo a cobaia do Seu Menoti e seus cabelos bruxuleantes. Enfim, fiquei com a cola e o curativo apertado daquele jeito por longos três dias e sem poder molhar.
Naquela época eu e meu irmão usávamos a tática de molhar só a franja do cabelo pra correr do banho, principalmente nas noites de frio. A gente ligava o chuveiro, ficava fora do box, dava um tempo, molhava a franja e saía como se tivesse tomado o melhor banho do mundo.
Durante os três dias a minha mãe fez de tudo pra que eu não desconfiasse que ela sabia da nossa armação e mesmo com o cabelo seco na franja ela acreditava que eu tinha tomado banho de noite.
Aquele tipo de carinho era típico da minha mãe. Um deles.
Ao seu Menoti eu agradeço pela não cicatriz na minha testa e pela solução rápida, e sem pontos, no meu corte.
À minha mãe eu agradeço eternamente a sua mão.
Sempre que esteve comigo.
Sempre que está comigo.
Sempre que estará comigo.