Ramos
era um lugar peculiar, no finalzinho da década de 1960, porque tinha tudo.
Quase nunca era preciso sair do bairro pra se conseguir o que queria. Padaria,
açougue, armarinho, secos e molhados, tudo pertinho. Mas um bom exemplo dessa
peculiaridade era justamente e existência de um bar ao lado de uma farmácia. O
bar era o Bar do Araújo e, bem ao lado, coladinho, tinha a farmácia do Seu
Menoti.
As
pessoas brincavam que a tal proximidade era auspiciosa, pois o sujeito ia pro
bar beber e quando ficava ruim era só ir na farmácia, ao lado, e ficava bom de
novo.
Visualmente,
aquela farmácia está intacta nas minhas lembranças, a começar pelo balcão, indo
até as prateleiras cheias de frascos e vidros de todos os tipos, formatos e
tamanhos, com suas cores variadas e seus rótulos preenchidos à mão, numa
caligrafia que só mesmo o Seu Menoti era capaz de decifrar.
Farmacêutico de
formação, uma obrigatoriedade nas farmácias de há algum tempo, ele era uma
figura. Quase um médico da família, atendia a muita gente nas suas próprias
casas, levando o remédio e aplicando as injeções, infusões ou manipulações que
ele mesmo preparava, pois conhecia bem a sua clientela, todos vizinhos de muito
tempo, sendo que alguns viraram amigos de frequentar a casa.
Sempre
vestindo o seu enorme jaleco, que ia até o joelho, Seu Menoti era um sujeito
alto, de quase dois metros. Usava um fino, mas vistoso, bigode que emoldurava a
boca, e levava um indefectível óculos na ponta do nariz, seguro por um fio que
ia até o pescoço. Ele olhava a gente sempre por cima dos óculos, o que
normalmente nos dava a impressão de cuidado pois, como curvava a cabeça na
nossa direção, parecia se aproximar como se fosse contar um segredo qualquer.
Numa
bela tarde de inverno, quando todas as crianças do bairro saíam pra andar de
bicicleta, de roupa nova e cabelos impecáveis, lá estava eu com a minha Monark
pra aproveitar o sábado de sol e friozinho. A gente se encontrava com os amigos
do bairro, os da escola e ainda tinha alguns meninos que vinham das outras ruas
próximas só pra andar ali por entre o conjunto de prédios, com suas calçadas
perfeitas e passagens estreitas entre as quadras. Cruzar estes becos pra ir de
uma quadra a outra sempre trazia uma surpresa por quem vinha no sentido
contrário e a gente sempre gritava um pro outro pra alertar e não bater de
frente. Uma adrenalina, sem dúvida, das melhores.
Bem,
só que neste sábado surgiu um buraco, não sei de onde, e eu passei por ele com
boa velocidade. O resultado foi que subimos, eu, meus óculos e a Monark, e
depois descemos a Monark primeiro, meus óculos em seguida e, por fim, a minha
testa, bem em cima das lentes já quebradas no chão.
Meu
pai chegou bem rápido e alguém botou um pano na minha testa pra conter o sangue.
Nós fomos direto pra farmácia do Seu Menoti, claro, e eu, sem óculos, mal
conseguia enxergar o caminho. Com nitidez mesmo eu só vi o rosto do
farmacêutico bem grande na minha frente, olhando o corte e botando e tirando
várias vezes os seus óculos de pendurar.
Com
relação a procedimentos médicos, derivados e afins, o meu medo nesta vida
sempre foi tomar ponto. Qualquer coisa de corte que me acontecia eu só me
preocupava em não tomar ponto. Era uma coisa que me doía só de ver nas outras
pessoas. Imagine em mim? Então eu estava esperando um momento de o Seu Menoti
parar de falar um pouco, uma brecha mínima, pra eu poder dizer pra minha mãe,
que acabava de chegar, que eu não queria levar ponto na testa de jeito nenhum.
Foi
aí que veio a surpresa. Do nada o Seu Menoti disse pro meu pai que se fosse dar
ponto ali ia ficar muito marcado, muito visível. Então ele queria mostrar um
produto novo, recém-chegado, que estava em teste ainda, com sucesso – ele
sublinhou –, que ele queria experimentar em mim.
–
É um produto americano de última geração, que eles estão usando lá e ainda não
está à venda no Brasil. É uma cola que é ótima pra esse tipo de ferimento,
superficial, mas que pelo local é indicada pra não deixar uma cicatriz extensa.
Quando
ele finalizou a explicação e disse que era um procedimento sem a necessidade de
dar ponto, a minha mãe me olhou instantaneamente, como se já soubesse que
aquela seria a minha súplica derradeira antes da morte que não tardava. Ela
sabia desse meu medo há muito tempo e, mesmo com todo o sangue daquela cena,
aquilo era definitivamente um alívio pra mim e pra ela.
Meu
pai ainda ficou na dúvida, fez mais algumas perguntas ao Seu Menoti mas, no
final, todos concordamos em aplicar a tal cola. Ele preparou lá a sua beberagem
farmacológica basófica e trouxe até onde eu estava deitado, uma maca azul no
quartinho nos fundos da farmácia.
Eu
juro que quando ele chegou perto de mim com a sua mistura colante eu percebi
uns tons azuis e arroxeados saindo do entorno do seu rosto e umas luzes vermelhas
e rosas esfumaçadas que efluíam dos seus cabelos. A princípio atônito, comecei
a achar que aquilo podia ser um tipo de alucinação pelo sangue que eu tinha
perdido e busquei algum raciocínio. Mas logo veio a incerteza de que ou era
isso ou eu estava mesmo a caminho do paraíso e que minha miopia me guie até os
céus, porque no buraco eu já caí e deu nisso.
Enfim,
só tinha um jeito de eu me tranquilizar. E foi justamente quando minha mãe me
estendeu a sua mão que eu entendi que o paraíso ia esperar um bocado ainda.
Prendi
a respiração e só senti o Seu Menoti puxando a pele dolorida da minha testa.
Não sei qual pele tinha ali, mas ele puxou. Esticou para as laterais e depois
fez um movimento juntando tudo dos dois lados do corte. Aí, com uma haste de madeira,
passou a tal pasta, que era a cola, cuidando pra que cobrisse todo o ferimento.
Ficou segurando por mais alguns minutos, me olhando por cima dos óculos, e
depois botou duas fitas de esparadrapo feito de tecido tapando tudo para a pele
não ceder.
Muitos
anos depois eu li uma matéria sobre uma cola que estava sendo usada em larga
escala em cirurgias específicas, como alternativas ao ponto interno em tecidos
sensíveis. De cara eu me imaginei sendo a cobaia do Seu Menoti e seus cabelos
bruxuleantes. Enfim, fiquei com a cola e o curativo apertado daquele jeito por
longos três dias e sem poder molhar.
Naquela
época eu e meu irmão usávamos a tática de molhar só a franja do cabelo pra
correr do banho, principalmente nas noites de frio. A gente ligava o chuveiro,
ficava fora do box, dava um tempo, molhava a franja e saía como se tivesse
tomado o melhor banho do mundo.
Durante
os três dias a minha mãe fez de tudo pra que eu não desconfiasse que ela sabia
da nossa armação e mesmo com o cabelo seco na franja ela acreditava que eu
tinha tomado banho de noite.
Aquele
tipo de carinho era típico da minha mãe. Um deles.
Ao seu Menoti eu agradeço pela não cicatriz na minha testa e pela
solução rápida, e sem pontos, no meu corte.
À minha mãe eu agradeço eternamente a sua mão.
Sempre que esteve comigo.
Sempre que está comigo.
Sempre que estará
comigo.