Depois de rodar literalmente todo o Centro da
cidade por dois dias seguidos, em busca de um especialista em eletrônica e som,
me lembrei de uma loja de materiais elétricos que tinha uma oficina ótima e o
pessoal era bem bacana e competente.
Era um pouco fora de mão, afastada do centrão
mais acessível, mas era lá que eu ia quando morava lá por perto e agora, pra
resolver mesmo o que eu queria, só lá. Ao menos era isso que minha cabeça
repetia a cada segundo e a cada vez que eu não obtinha uma resposta segura para
o meu problema de som.
Não era nada assim muito grave. Eu queria saber
se poderia instalar uma caixa de som auxiliar no meu home theater e como fazer
isso. Esse equipamento de nome pomposo é somente um amplificador metido a besta,
dotado de várias caixas de som na frente do espectador e outras atrás dele, as
quais se habilitam a reproduzir diversos efeitos sonoros, todos de nomes
igualmente pomposos como Surround, Dolby Digital, Dolby Pro Logic e DTS 5.1.
Agora, eu apenas queria botar uma caixa de som adicional
mais perto do computador, coisa bem simples e que, com certeza, era o seu Edson
que ia me salvar, com toda a certeza. Mesmo depois de ouvir várias opiniões
contraditórias, descabidas, escalafobéticas até pra um leigo como eu, a
decisão, a solucionática efetiva tinha lugar e nome: Seu Edson.
De longe, antes mesmo de atravessar a rua, eu já
me alegrei ao ver, imponente, o mesmo e tradicional balcão antigo de fórmica e,
em cima dele, vários aparelhos de som e tevês, ferros de solda, voltímetro,
tomadas, capacitores e um sem número de ferramentas, todas arrumadinhas no lado
direito.
Estranho foi não ver nenhum dos clientes sendo
atendidos pelo seu Edson, pois que todos preferiam ele. Os outros técnicos só
atendiam alguém se o titular estivesse ocupado.
Claro que tem mesmo muito tempo que eu não venho
aqui, pensei eu, e pode ser que nesse horário ele não atenda ou não esteja na
loja. Conferi que a esposa dele continuava no caixa e o filho, Edinho, que me
reconheceu e veio me cumprimentar, me indicou onde pegar a senha de
atendimento, pois que havia mudado de local.
Foi aí que eu me dei conta de um grande retrato
do seu Edson no alto do estabelecimento. Ao fundo, na parede central, estava lá
ele, altivo, mais jovem, sorrindo para a câmera e meu coração deu uma gelada
repentina. Passei então a observar tudo em volta pra ver se tinha alguma pista na
loja, algo pra que eu, definitivamente, não tivesse que perguntar pra alguém e
esse alguém simplesmente apontasse, constrangido, o quadro no alto. Já estava
até vendo a cena descabida.
Comecei então a me lembrar das vezes que eu fui
lá levando algo complicado e ele sempre dava um jeito em dois tempos, sempre
rindo e contando suas histórias. Na verdade, ele só tinha muitas e boas
histórias pra contar porque, justamente, também ouvia fartos e hilários
causos de toda ordem, de quase todos os clientes. Ninguém ficava impassível
naquele balcão, esperando por exemplo a sua solda ficar pronta, sem prosear com
o seu Edson e deixar com ele novas anedotas do mundo dos consertos elétricos,
da vida e da morte.
Morte. Mas será que tinha passado muito tempo do
acontecido? Eu nem lembrava direito qual a última vez que eu estive ali, mas
nessa hora o tempo se embaralha todo, nos embaralha a todos e a gente não sabe
o que dizer, mal conseguindo articular o pensamento, em respeito aos familiares
e a todos, enfim, que trabalharam com ele naquela eletrônica.
Até que um dos atendentes disse pro cliente da
vez que, naquele serviço, era necessário blindar o fio e que só o seu Edson
sabia fazer. E soltou um famigerado “infelizmente” pra fechar a frase.
Imediatamente aquilo me fez olhar direto pra esposa em busca de uma reação dela.
Nada, acho que ela não ouviu ou fez que não ouviu, sabe-se lá.
Imaginei então quantas vezes ela teve de contar
os detalhes da morte do marido, quantos clientes a dar os pêsames com aquela
tristeza que ia além da própria vida, ou morte, chegando ao cúmulo de especular
se a loja iria funcionar a contento, sem o talento e a sabedoria do seu Edson.
Definitivamente, eu estava ficando cada vez mais
triste. Lia e relia a minha senha e pensava que eu queria mesmo era ir embora
ali. Não tinha nenhum cabimento voltar ao assunto doloroso dentro daquele
ambiente. As pessoas ali, falando sobre o dono ausente com o maior respeito, já
deviam ter tudo sedimentado nos seus corações acalmados, resignados. Eu pensava
nisso e ao mesmo tempo disfarçava, olhando pro retrato lá no céu da loja. Ele
sorridente, aquele riso congelado, mortificado.
De repente alguém abre a porta do fundo da
oficina e vem o seu Edson, todo ativo, ocupadíssimo com uma enorme televisão na
mão e, por trás dela, os indefectíveis óculos na testa, atestando a sua total
vitalidade. Eu, surpreso, estático e, por certo, lívido, tentei disfarçar o
mais que pude. Mas quando ele cruzou o olhar comigo, me reconheceu e disse um
rápido “tá sumido, rapaz” que eu nem tive tempo de responder.
Os minutos seguintes eu passei revendo toda a
minha certeza das ocorrências e intercorrências relativas ao morto e a cada uma
eu dava uma nova interpretação. Desde a resposta dando conta de que só o seu
Edson resolveria tal coisa, até a suposta tristeza fúnebre da esposa no caixa,
tudo não passava de conjectura minha que, no instante seguinte, já tinham todas
as referências de vida e não de morte.
Dali a mais uns minutos, quando ele então
retornou ao balcão, mais tranquilo e sem a enorme tevê nas mãos, brincou comigo
dizendo que, há pouco, eu parecia ter visto um fantasma. De pronto, ainda na
sua espantosa velocidade, regada de vitalidade, nem me deixou responder e já
foi dizendo pra mulher:
– Ô Charlote, tem que tirar esse quadro meu daí
de cima. Isso parece quadro de morto. Já falei disso um monte de vezes. Tudo
bem que o cliente fez na maior boa vontade, nos deu de presente e tudo, mas
tenha paciência. Olha, faz assim, guarda ele em algum canto aí e quando eu
morrer, de verdade, você coloca ele ali em cima, põe umas flores e pronto. Mas
por enquanto vamos tirar ele dali, tá? Que coisa!
Eu ia até me explicar. Mas pra quê eu ia
responder alguma coisa naquela altura?
Tratei de fazer a minha consulta eletrônica,
sobre o som do meu computador ligado ao home theater, falei das caixas, os
canais Dolby 5.1 e todos aqueles nomes e suas firulas adjacentes.
No final, me despedi com a mais sincera alegria.
– Até qualquer dia, seu Edson. Que bom vê-lo
vivo!
Ele riu e ergueu as sobrancelhas por cima dos
óculos.
– Apareça, viu?