segunda-feira, 29 de abril de 2019

O Morto


Depois de rodar literalmente todo o Centro da cidade por dois dias seguidos, em busca de um especialista em eletrônica e som, me lembrei de uma loja de materiais elétricos que tinha uma oficina ótima e o pessoal era bem bacana e competente.
Era um pouco fora de mão, afastada do centrão mais acessível, mas era lá que eu ia quando morava lá por perto e agora, pra resolver mesmo o que eu queria, só lá. Ao menos era isso que minha cabeça repetia a cada segundo e a cada vez que eu não obtinha uma resposta segura para o meu problema de som.
Não era nada assim muito grave. Eu queria saber se poderia instalar uma caixa de som auxiliar no meu home theater e como fazer isso. Esse equipamento de nome pomposo é somente um amplificador metido a besta, dotado de várias caixas de som na frente do espectador e outras atrás dele, as quais se habilitam a reproduzir diversos efeitos sonoros, todos de nomes igualmente pomposos como Surround, Dolby Digital, Dolby Pro Logic e DTS 5.1.
Agora, eu apenas queria botar uma caixa de som adicional mais perto do computador, coisa bem simples e que, com certeza, era o seu Edson que ia me salvar, com toda a certeza. Mesmo depois de ouvir várias opiniões contraditórias, descabidas, escalafobéticas até pra um leigo como eu, a decisão, a solucionática efetiva tinha lugar e nome: Seu Edson.
De longe, antes mesmo de atravessar a rua, eu já me alegrei ao ver, imponente, o mesmo e tradicional balcão antigo de fórmica e, em cima dele, vários aparelhos de som e tevês, ferros de solda, voltímetro, tomadas, capacitores e um sem número de ferramentas, todas arrumadinhas no lado direito.
Estranho foi não ver nenhum dos clientes sendo atendidos pelo seu Edson, pois que todos preferiam ele. Os outros técnicos só atendiam alguém se o titular estivesse ocupado.
Claro que tem mesmo muito tempo que eu não venho aqui, pensei eu, e pode ser que nesse horário ele não atenda ou não esteja na loja. Conferi que a esposa dele continuava no caixa e o filho, Edinho, que me reconheceu e veio me cumprimentar, me indicou onde pegar a senha de atendimento, pois que havia mudado de local.
Foi aí que eu me dei conta de um grande retrato do seu Edson no alto do estabelecimento. Ao fundo, na parede central, estava lá ele, altivo, mais jovem, sorrindo para a câmera e meu coração deu uma gelada repentina. Passei então a observar tudo em volta pra ver se tinha alguma pista na loja, algo pra que eu, definitivamente, não tivesse que perguntar pra alguém e esse alguém simplesmente apontasse, constrangido, o quadro no alto. Já estava até vendo a cena descabida.
Comecei então a me lembrar das vezes que eu fui lá levando algo complicado e ele sempre dava um jeito em dois tempos, sempre rindo e contando suas histórias. Na verdade, ele só tinha muitas e boas histórias pra contar porque, justamente, também ouvia fartos e hilários causos de toda ordem, de quase todos os clientes. Ninguém ficava impassível naquele balcão, esperando por exemplo a sua solda ficar pronta, sem prosear com o seu Edson e deixar com ele novas anedotas do mundo dos consertos elétricos, da vida e da morte.
Morte. Mas será que tinha passado muito tempo do acontecido? Eu nem lembrava direito qual a última vez que eu estive ali, mas nessa hora o tempo se embaralha todo, nos embaralha a todos e a gente não sabe o que dizer, mal conseguindo articular o pensamento, em respeito aos familiares e a todos, enfim, que trabalharam com ele naquela eletrônica.
Até que um dos atendentes disse pro cliente da vez que, naquele serviço, era necessário blindar o fio e que só o seu Edson sabia fazer. E soltou um famigerado “infelizmente” pra fechar a frase. Imediatamente aquilo me fez olhar direto pra esposa em busca de uma reação dela. Nada, acho que ela não ouviu ou fez que não ouviu, sabe-se lá.
Imaginei então quantas vezes ela teve de contar os detalhes da morte do marido, quantos clientes a dar os pêsames com aquela tristeza que ia além da própria vida, ou morte, chegando ao cúmulo de especular se a loja iria funcionar a contento, sem o talento e a sabedoria do seu Edson.
Definitivamente, eu estava ficando cada vez mais triste. Lia e relia a minha senha e pensava que eu queria mesmo era ir embora ali. Não tinha nenhum cabimento voltar ao assunto doloroso dentro daquele ambiente. As pessoas ali, falando sobre o dono ausente com o maior respeito, já deviam ter tudo sedimentado nos seus corações acalmados, resignados. Eu pensava nisso e ao mesmo tempo disfarçava, olhando pro retrato lá no céu da loja. Ele sorridente, aquele riso congelado, mortificado.
De repente alguém abre a porta do fundo da oficina e vem o seu Edson, todo ativo, ocupadíssimo com uma enorme televisão na mão e, por trás dela, os indefectíveis óculos na testa, atestando a sua total vitalidade. Eu, surpreso, estático e, por certo, lívido, tentei disfarçar o mais que pude. Mas quando ele cruzou o olhar comigo, me reconheceu e disse um rápido “tá sumido, rapaz” que eu nem tive tempo de responder.
Os minutos seguintes eu passei revendo toda a minha certeza das ocorrências e intercorrências relativas ao morto e a cada uma eu dava uma nova interpretação. Desde a resposta dando conta de que só o seu Edson resolveria tal coisa, até a suposta tristeza fúnebre da esposa no caixa, tudo não passava de conjectura minha que, no instante seguinte, já tinham todas as referências de vida e não de morte.
Dali a mais uns minutos, quando ele então retornou ao balcão, mais tranquilo e sem a enorme tevê nas mãos, brincou comigo dizendo que, há pouco, eu parecia ter visto um fantasma. De pronto, ainda na sua espantosa velocidade, regada de vitalidade, nem me deixou responder e já foi dizendo pra mulher:
– Ô Charlote, tem que tirar esse quadro meu daí de cima. Isso parece quadro de morto. Já falei disso um monte de vezes. Tudo bem que o cliente fez na maior boa vontade, nos deu de presente e tudo, mas tenha paciência. Olha, faz assim, guarda ele em algum canto aí e quando eu morrer, de verdade, você coloca ele ali em cima, põe umas flores e pronto. Mas por enquanto vamos tirar ele dali, tá? Que coisa!
Eu ia até me explicar. Mas pra quê eu ia responder alguma coisa naquela altura?
Tratei de fazer a minha consulta eletrônica, sobre o som do meu computador ligado ao home theater, falei das caixas, os canais Dolby 5.1 e todos aqueles nomes e suas firulas adjacentes.
No final, me despedi com a mais sincera alegria.
– Até qualquer dia, seu Edson. Que bom vê-lo vivo!
Ele riu e ergueu as sobrancelhas por cima dos óculos.
– Apareça, viu?


terça-feira, 16 de abril de 2019

O Passageiro

por André Loureiro

Como de costume, fui um dos últimos a embarcar e, após passar pelo portão do saguão do aeroporto de Congonhas, estava esperando, ainda a alguns metros da porta do avião, os últimos passageiros se acomodarem para que eu pudesse entrar.
Havia mais ou menos três pessoas entre eu e a porta de entrada do avião quando, de repente, um dos passageiros que já havia se acomodado na primeira fileira levantou e passou, se apertando entre malas e comissários, para usar o banheiro que ficava na parte da frente do avião.
Apesar de minha visão estar bem encoberta e o tal passageiro ter passado praticamente de costas pra mim, alguma coisa nele me chamou atenção naquele segundo. Eu pensei na hora: “Nossa! Esse cara parece o Djavan!”  Mas no segundo depois voltei à realidade e pensei: “Mas eu nem vi direito, ele estava de costas, não deve ser.”
A fila andava lentamente. Eu seguia em conflito comigo mesmo tentando raciocinar se poderia ser ele e torcendo pro tal passageiro voltar logo enquanto eu estava ali perto, para acabar com a minha dúvida. Mas continuava repetindo pra mim mesmo: “Era o Djavan! Era ele com certeza!” E ao mesmo tempo pensava: “E se for ele? O que eu vou fazer?”. Enquanto a fila andava, peguei o celular e fui pesquisar nas redes sociais. Vi que o Djavan, o próprio, havia feito um show na noite anterior, em Santos. Era a estreia da nova turnê. A probabilidade de ser ele era maior. Meu nervosismo aumentou consideravelmente.
Fui entrando no avião e andando para a minha poltrona, tradicionalmente a última. Andava para frente no estreito corredor, parava e olhava para trás, torcendo para que o homem de óculos escuros e casaco roxo saísse do banheiro e eu tirasse essa ideia maluca de que o Djavan estava no mesmo voo que eu. Mesmo com o corredor livre à minha frente continuei andando devagar e olhando pra trás. Olhei uma, duas, muitas vezes até chegar no final do avião, e nada.
Cheguei na última fileira, me acomodei e estiquei o pescoço o máximo que pude para tentar enxergar quando o passageiro da primeira fileira voltasse ao seu assento. Segundos depois, ele voltou. E apesar dos quase 30 metros de distância entre as poltronas, os óculos escuros e meu astigmatismo recém diagnosticado, tive uma certeza apavorante: ERA O DJAVAN!
Sentei no meu lugar sem acreditar no que tinha acabado de ver. O cara que eu mais gosto na música brasileira estava ali, a poucos metros de mim. Senti um misto de euforia enorme (de querer tomar alguma atitude, para não deixar passar a oportunidade de falar com ele) com uma incerteza frustrante. Percebi que todos os passageiros já haviam sentado, o avião estava se preparando para decolar e não tinha nada que eu pudesse fazer para chegar até a primeira fileira. Simular um infarto funcionaria? Funcionaria! Valeria a pena? Sem dúvidas! Mas eu preferi raciocinar um pouco mais antes dessa medida drástica...
O avião começou a andar pela pista e eu só pensava em como conseguiria falar com ele. E o mais importante: O QUE eu falaria. Passei o voo inteiro, INTEIRO, pensando em tudo que eu queria falar pra ele. (E foi ótimo, porque nem eu tinha me dado conta que era tanta coisa.)
Queria contar pra ele que eu toco violão desde os meus 9 anos de idade e que passei minha vida inteira ouvindo e tocando quase todas as músicas dele. Que as músicas dele eram sempre desafiantes enquanto eu estava aprendendo a tocar, que ele me ensinou muito com os arranjos, os acordes e as batidas diferentes que ele sempre usou. Que no mesmo dia, horas antes, quando eu estava indo para o aeroporto de São Paulo, de carona com um amigo que também toca violão, comentei o quanto era fã dele! O quanto ele era o artista que eu mais tocava no violão.
Que dois dias antes, meu pai tinha me mandado por e-mail a cifra da música Meu Romance/Esplendor, que ele canta no álbum novo, com o Jorge Drexler. Que sempre que nos reunimos é uma infinidade de músicas dele pra todo lado. Que meu avô TODA VEZ pedia pra gente tocar “Retrato da Vida” e se emocionava enquanto cantava.
Que eu e meu pai ficamos brincando que se, um dia no show, ele perguntar se alguém quer subir e tocar uma música com ele a gente vai levantar a mão e pedir pra tocar. Que conheci o filho dele, Max Viana, uma vez na Lapa, no Rio, em um evento em que a banda em que ele tocava recebia algumas pessoas que quisessem cantar com eles. Que acompanho o neto dele, o Thomas Boljover, pelo Instagram e que eu sou muito fã! Que ele tem um talento absurdo também!
Que ele não tem ideia de quantos momentos a arte dele me fez bem. Que pra mim ele é um ídolo em um nível muito além da musicalidade. Que tudo que ele escreveu, cantou e tocou, me ajudou a ser, além de um melhor violonista, um ser humano melhor.
Que toda a poesia e sensibilidade por trás de cada verso dele foram fundamentais pra eu construir a minha forma (nem tão poética, nem tão brilhante), de enxergar a vida. Era muita coisa pra falar, e eu não sabia nem se conseguiria chegar perto dele.
Eis que o avião pousou. Eu tentei levantar e andar um pouco mais para frente, mas sem muito sucesso. O pessoal começou a tirar as bagagens, aqueles procedimentos todos de segurança, demorados. E eu percebi que eu só teria uma chance: Era torcer pra que ele tivesse despachado alguma bagagem e eu conseguisse chegar até a sala das esteiras antes da bagagem dele aparecer. Era isso ou nada. Se ele tivesse só com uma mala de mão, dentro do avião, sairia logo pela porta da frente, iria embora e, até eu sair, já seria tarde.
Assim que a porta abriu ele foi um dos primeiros a sair. Eu já não tinha mais nada mesmo a fazer. Só torcer. Minha vontade era gritar: “Galera! O Djavan está logo ali! Vocês já se deram conta disso???”
Esperei o pessoal todo sair e a cada minuto, eu já desacreditado, pensava que talvez a simulação do infarto não teria sido uma ideia tão ruim assim e que um bom advogado talvez pudesse me conseguir alguma pena alternativa por crime contra a segurança da aviação civil.
Enfim, consegui sair do avião e fui correndo, literalmente, pelo saguão, descendo as escadas rolantes que nem louco até a sala onde estariam as malas. Olhei no painel e vi que era na última esteira, da última sala do aeroporto. Pensei: “Bom, eu imagino que o Djavan não tenha saído correndo pra buscar a bagagem. Então, quanto mais longe, melhor pra mim”.
Quando cheguei finalmente na tal sala, olhei logo pra quem estava no entorno da esteira e não vi nada. Ainda de longe, procurei com mais calma por toda a sala e lá estava ele! Djavan, o próprio! Um pouco afastado dos demais passageiros, próximo a porta de saída, olhando para a esteira à espera da bagagem e sozinho.
Meu coração disparou absurdamente. Mas eu não podia pensar, não tinha tempo a perder. Precisava logo tomar alguma atitude. Respirei fundo, lembrei dos 10 segundos de coragem que às vezes precisamos usar na vida, e fui falar com ele.
O que aconteceu a partir daí foi uma coisa inédita na minha vida. Simplesmente uma impossibilidade de raciocinar. Não consegui falar praticamente nada do que eu tinha ensaiado! Comecei falando uma coisa, aí falava outra, e não terminava a frase, e meu coração acelerava, e os olhos cheios d´água...
A cada frase que eu não conseguia completar, e ele tentava responder com aquela voz de Djavan, eu ficava mais nervoso! Ele perguntou meu nome, falou do violão, do Max, demonstrou surpresa quando eu disse que era fã do Thomas, comentou da nova turnê... Depois de alguns longos segundos, percebi que eu era realmente incapaz de me comunicar com alguma dignidade. Que é humanamente impossível se manter civilizado quando se dá de cara com um ídolo dessa magnitude.
Minha vontade era falar: “Cara, tá indo pra onde? Vai fazer o que hoje? Vamos marcar de tocar um violão? Eu chamo uns amigos, você chama uns outros... quero ver em que tom você toca Flor de Lis! E Outono? Cara, essa música é um absurdo! Foi você mesmo que escreveu? De onde você tirou? E “açaí guardiã”? De onde veio? E “Delírio dos Mortais”?! Essa música deveria ser o hino do Rio de Janeiro!! É linda demais! E “Solitude”?!? Aquilo é uma obra de arte! Orquídea?! Do álbum Vesúvio! É impossível de cantar aquilo! PESSOAL!!! Esse cara aqui é o Djavan! Vocês têm noção??? Podem vir aqui, um por um, dar um abraço nele e agradecer por ele existir!”
Mas me mantive civilizado e pedi apenas uma foto mesmo. Agradeci muito muito. Apertei a mão dele 12 vezes em 2 minutos e saí andando completamente desorientado. Nem vi se a foto tinha ficado boa, não conseguia me comunicar com ninguém, nem pra contar o que tinha acontecido. Fiquei andando em círculos no aeroporto, tentando me recuperar. Passei dois dias em estado de choque repetindo: “Eu encontrei o Djavan! Eu falei com ele! Ele sabe meu nome!” E prometi que, um dia, com calma, contaria essa história e tudo mais que não consegui falar pra ele.


Agora, além de todas as lembranças que eu já tinha quando tocava as suas músicas, tenho mais essa. Só fica faltando subir no palco e tocarmos uma música juntos. E pode deixar que eu não tentarei falar nada dessa vez.
Eu juro!