Da sacada do meu apartamento dava pra ver um
pedaço das hastes azuis de concreto que seguravam a cobertura do Maracanã,
então o maior estádio do mundo.
Eu morava na Rua São Francisco Xavier há quase
dois anos e, por muitas vezes, ficava olhando aquele detalhe da construção,
enquanto ouvia o jogo no rádio. Dali dava pra ouvir os gritos de gol, as vaias,
a entrada dos times. Nesses momentos, meu ímpeto de ir ver o Flamengo lá dentro
era enorme, a ponto de eu questionar seriamente a minha fobia de aglomerações e
de lugares fechados ou com saídas restritas.
Só de começar a me imaginar lá na arquibancada,
com aqueles milhares de compatriotas – sim porque trata-se de uma mesma nação
–, e pensando naquelas saídas mínimas de escoamento da torcida, já dava um suor
nas mãos, o coração acelerava e eu dizia pra mim mesmo que era melhor não
arriscar. A ideia de todo aquele mundo de gente saindo ao mesmo tempo, pelo
mesmo lugar, era um terror intransponível pra minha cabeça ressabiada e sempre
receosa.
Ouvindo o jogo naquela tarde, entretanto, algo
em mim estava diferente. O contexto era por demais convidativo, a esperança
francamente possível e, enfim, eu repassava a todo momento o conflito entre a
minha fobia e a minha herança rubro-negra que, afinal de contas, era legítima
mesmo ou ia permanecer covarde, ali na sacada, acuada e roendo as unhas?
Durante boa parte do primeiro tempo eu ia
avaliando, ponto por ponto, pensando nas reais possibilidades. O jogo era
difícil, claro, como todos. Era Final de Copa Libertadores, sim e daí? O nosso
ataque tinha Romário, Sávio e Edmundo, o ataque dos sonhos. A gente precisava
vencer por 2 gols de diferença. Mas o Maraca devia estar o máximo, com mais de
100 mil pessoas e, enfim, antes de ser algo perigoso, aquilo devia estar prá lá
de lindo.
Acabou o primeiro tempo e eu fui trocar de
roupa. Definitivamente eu ia ter um troço se ficasse em casa. Aí, logo no
início do segundo tempo, gol do Romário. Uau, agora falta só mais um pra levar
pros pênaltis ou, se fizermos dois, a gente levanta essa taça de vez e eu tenho
logo um infarto bem no meio do Maracanã.
Saí de casa convicto de que aquele gol era um
chamado. O chamado que meu time estava fazendo, dizendo que precisava de mim
torcendo lá dentro.
Quando cheguei nas bilheterias, tudo fechado. Só
tinha um rapaz numa janelinha e ele me explicou que só se vende ingressos até o
fim do primeiro tempo. Depois, fecha tudo pra contabilizar. No tempo em que eu
fiquei ali, uns 30 segundos, medindo o tamanho da grade que eu ia pular, sem
saber o que fazer pra conseguir um jeito de entrar, o rapaz arrumava as suas
coisas e só me olhava enviesado. No final, fechou tudo ali, apagou as luzes e
veio falar comigo de novo.
– Amigo, nem tem mais como eu te vender ingresso
agora. Você perdeu a hora do jogo? Ficou preso no engarrafamento?
– Cara, eu moro aqui do lado, na rua de trás.
Não vim antes porque tenho medo que me pelo de lugar cheio. Estava até ouvindo o
jogo no rádio, em casa. Quando ouvi o gol do Baixinho não resisti, tomei a decisão
e pronto, deu tudo errado.
– Faz o seguinte: vai até ali do lado, no portão
do estacionamento. Eu te encontro lá.
Nos encontramos no tal portão e eu entrei com
ele pelo pátio. Atravessamos apressados o estacionamento e parecia que ele era
o dono da parada toda ali. Até que, na entrada das rampas, um segurança nos
parou e perguntou aonde a gente ia.
– Ô parceiro, a gente saiu pra comer no
intervalo. Eu trabalho na bilheteria. Descemos um andar de escada e nos
perdemos, até que chegamos aqui no estacionamento. Agora não sei mais nem onde
eu estava.
– Mermão, entra por aqui mesmo. Tu sobe essa
rampa aqui até o final e tu vai sair lá nas cadeiras. Já tá rolando o segundo
tempo. Vai lá, corre!
Só mesmo quem já viu sabe o que é chegar ao fim
daquela rampa e dar de cara com o campo do Maracanã, iluminado pelos
refletores. O coração veio na boca. Eu sentia os batimentos cardíacos no
pescoço e nem queria saber se aquilo era infarto ou sei lá o quê.
Sentamos nas primeiras duas cadeiras que vimos
vazias e eu já ia propor bater as palmas das mãos com o meu guia e salvador,
quando ele disse que ia embora.
– Como assim, vai embora?
– Só vim te deixar aqui e te dar boa sorte. Eu
nem sou Flamengo, cara. Vou buscar minha filha na casa da avó e vou pra casa.
De lá vou ver a festa de vocês, valeu?
A surpresa por ele não ser rubro-negro foi tanta
que eu fiquei vendo ele descendo e nem tive tino de dizer nada. Nem consegui
agradecer direito o tanto que ele merecia. Foi tudo muito rápido.
Bem, a torcida deu um show. O Maraca estava demais
de lindo. O time jogou muito. O ataque sobrou. Mas o segundo gol não saiu de
jeito nenhum. E o Independiente foi o campeão.
Muitas coisas daquele jogo, no longínquo mês de
dezembro de 1995, eu jamais vou esquecer. A maior delas é a lembrança de um
sentimento. Nas rampas de saída do estádio, lembro muito bem das milhares de
pessoas indo no mesmo sentido, sem dizer uma só palavra. Ninguém ousava
falar. Pairava um silêncio pleno, arrasador, de pura desolação que só era
quebrado pelo som tenebroso dos passos e do arrastar dos calçados dos milhares
de torcedores nos corredores e rampas intermináveis, por onde saíamos todos
nós.
Era uma orquestra sinistra, que tocava uma
música compassada, de ritmo fúnebre, vindo do fundo da alma rubro-negra, abalada
por uma batalha perdida e que ecoava no concreto dos próprios corredores de
saída. Aturdidos, todos ali só queriam achar o caminho para casa, o mais rápido
possível.
De repente, surge uma voz forte e um tanto rouca.
Uma voz gasta, mas cheia de emoção. Ninguém sabia ao certo de onde ela vinha.
– Estamos todos mortos! Parece que estamos
caminhando para o nosso próprio funeral!
Ninguém respondeu!
Assim que acabou o corredor sinistro, tão logo cessou
aquele incômodo som dos passos e quando finalmente ganhamos a rua de novo, uma surpreendente
celebração nos aguardava, coisa de arrepiar, um delirante coro surgido como que
para nos reviver.
Mengooooo! Mengooooo!
Muitos de nós choraram.
De tristeza, sim.
De alegria, até morrer!