terça-feira, 28 de maio de 2019

O Caminho Para Casa


Da sacada do meu apartamento dava pra ver um pedaço das hastes azuis de concreto que seguravam a cobertura do Maracanã, então o maior estádio do mundo.
Eu morava na Rua São Francisco Xavier há quase dois anos e, por muitas vezes, ficava olhando aquele detalhe da construção, enquanto ouvia o jogo no rádio. Dali dava pra ouvir os gritos de gol, as vaias, a entrada dos times. Nesses momentos, meu ímpeto de ir ver o Flamengo lá dentro era enorme, a ponto de eu questionar seriamente a minha fobia de aglomerações e de lugares fechados ou com saídas restritas.
Só de começar a me imaginar lá na arquibancada, com aqueles milhares de compatriotas – sim porque trata-se de uma mesma nação –, e pensando naquelas saídas mínimas de escoamento da torcida, já dava um suor nas mãos, o coração acelerava e eu dizia pra mim mesmo que era melhor não arriscar. A ideia de todo aquele mundo de gente saindo ao mesmo tempo, pelo mesmo lugar, era um terror intransponível pra minha cabeça ressabiada e sempre receosa.
Ouvindo o jogo naquela tarde, entretanto, algo em mim estava diferente. O contexto era por demais convidativo, a esperança francamente possível e, enfim, eu repassava a todo momento o conflito entre a minha fobia e a minha herança rubro-negra que, afinal de contas, era legítima mesmo ou ia permanecer covarde, ali na sacada, acuada e roendo as unhas?
Durante boa parte do primeiro tempo eu ia avaliando, ponto por ponto, pensando nas reais possibilidades. O jogo era difícil, claro, como todos. Era Final de Copa Libertadores, sim e daí? O nosso ataque tinha Romário, Sávio e Edmundo, o ataque dos sonhos. A gente precisava vencer por 2 gols de diferença. Mas o Maraca devia estar o máximo, com mais de 100 mil pessoas e, enfim, antes de ser algo perigoso, aquilo devia estar prá lá de lindo.
Acabou o primeiro tempo e eu fui trocar de roupa. Definitivamente eu ia ter um troço se ficasse em casa. Aí, logo no início do segundo tempo, gol do Romário. Uau, agora falta só mais um pra levar pros pênaltis ou, se fizermos dois, a gente levanta essa taça de vez e eu tenho logo um infarto bem no meio do Maracanã.
Saí de casa convicto de que aquele gol era um chamado. O chamado que meu time estava fazendo, dizendo que precisava de mim torcendo lá dentro.
Quando cheguei nas bilheterias, tudo fechado. Só tinha um rapaz numa janelinha e ele me explicou que só se vende ingressos até o fim do primeiro tempo. Depois, fecha tudo pra contabilizar. No tempo em que eu fiquei ali, uns 30 segundos, medindo o tamanho da grade que eu ia pular, sem saber o que fazer pra conseguir um jeito de entrar, o rapaz arrumava as suas coisas e só me olhava enviesado. No final, fechou tudo ali, apagou as luzes e veio falar comigo de novo.
– Amigo, nem tem mais como eu te vender ingresso agora. Você perdeu a hora do jogo? Ficou preso no engarrafamento?
– Cara, eu moro aqui do lado, na rua de trás. Não vim antes porque tenho medo que me pelo de lugar cheio. Estava até ouvindo o jogo no rádio, em casa. Quando ouvi o gol do Baixinho não resisti, tomei a decisão e pronto, deu tudo errado.
– Faz o seguinte: vai até ali do lado, no portão do estacionamento. Eu te encontro lá.
Nos encontramos no tal portão e eu entrei com ele pelo pátio. Atravessamos apressados o estacionamento e parecia que ele era o dono da parada toda ali. Até que, na entrada das rampas, um segurança nos parou e perguntou aonde a gente ia.
– Ô parceiro, a gente saiu pra comer no intervalo. Eu trabalho na bilheteria. Descemos um andar de escada e nos perdemos, até que chegamos aqui no estacionamento. Agora não sei mais nem onde eu estava.
– Mermão, entra por aqui mesmo. Tu sobe essa rampa aqui até o final e tu vai sair lá nas cadeiras. Já tá rolando o segundo tempo. Vai lá, corre!
Só mesmo quem já viu sabe o que é chegar ao fim daquela rampa e dar de cara com o campo do Maracanã, iluminado pelos refletores. O coração veio na boca. Eu sentia os batimentos cardíacos no pescoço e nem queria saber se aquilo era infarto ou sei lá o quê.
Sentamos nas primeiras duas cadeiras que vimos vazias e eu já ia propor bater as palmas das mãos com o meu guia e salvador, quando ele disse que ia embora.
– Como assim, vai embora?
– Só vim te deixar aqui e te dar boa sorte. Eu nem sou Flamengo, cara. Vou buscar minha filha na casa da avó e vou pra casa. De lá vou ver a festa de vocês, valeu?
A surpresa por ele não ser rubro-negro foi tanta que eu fiquei vendo ele descendo e nem tive tino de dizer nada. Nem consegui agradecer direito o tanto que ele merecia. Foi tudo muito rápido.
Bem, a torcida deu um show. O Maraca estava demais de lindo. O time jogou muito. O ataque sobrou. Mas o segundo gol não saiu de jeito nenhum. E o Independiente foi o campeão.
Muitas coisas daquele jogo, no longínquo mês de dezembro de 1995, eu jamais vou esquecer. A maior delas é a lembrança de um sentimento. Nas rampas de saída do estádio, lembro muito bem das milhares de pessoas indo no mesmo sentido, sem dizer uma só palavra. Ninguém ousava falar. Pairava um silêncio pleno, arrasador, de pura desolação que só era quebrado pelo som tenebroso dos passos e do arrastar dos calçados dos milhares de torcedores nos corredores e rampas intermináveis, por onde saíamos todos nós.
Era uma orquestra sinistra, que tocava uma música compassada, de ritmo fúnebre, vindo do fundo da alma rubro-negra, abalada por uma batalha perdida e que ecoava no concreto dos próprios corredores de saída. Aturdidos, todos ali só queriam achar o caminho para casa, o mais rápido possível.
De repente, surge uma voz forte e um tanto rouca. Uma voz gasta, mas cheia de emoção. Ninguém sabia ao certo de onde ela vinha.
– Estamos todos mortos! Parece que estamos caminhando para o nosso próprio funeral!
Ninguém respondeu!
Assim que acabou o corredor sinistro, tão logo cessou aquele incômodo som dos passos e quando finalmente ganhamos a rua de novo, uma surpreendente celebração nos aguardava, coisa de arrepiar, um delirante coro surgido como que para nos reviver.
Mengooooo! Mengooooo!
Muitos de nós choraram.
De tristeza, sim.
De alegria, até morrer!


sexta-feira, 10 de maio de 2019

A Professora


Assim que eu passei pro curso ginasial muitas mudanças aconteceram. De cara eu mudei de colégio e isso significava ter de pegar ônibus e sair de Ramos para a Ilha do Governador, coisa que eu jamais tinha feito sozinho. Era uma viagem que durava cerca de 40 minutos pra ir pra escola, bem diferente do que eu estava acostumado.
Durante o primário o meu colégio ficava praticamente na esquina de casa, pertinho da padaria que eu ia todas as tardes pra minha mãe. Agora eu tinha de pegar ônibus, ficar ligado no trajeto pra saltar no ponto certo e na volta ter a mesma atenção. Foi uma aventura diária que demorou muito pra deixar de ser aventura, mas que me deu a sensação de estar ficando adulto, afinal eu estava indo pro ginásio!
O novo colégio era lindo, bem grande, tinha campo de futebol e quadra, laboratório e teatro, era uma coisa que eu jamais tinha visto na minha escola do bairro. Muitos professores dessa época eu lembro até hoje do nome, do jeito de dar aulas e os melhores que eu tive são dessa escola.
Me lembro também das provas que eu e alguns colegas fizemos pra conseguir vaga pra lá. Em uma delas, eu fui de carona com o pai de uma amiga do primário, num carro DKV bege, novinho, e que tinha uma porta na mala que parecia uma porta de geladeira. Eu e alguns colegas fomos pro local da prova ali.
Na primeira semana de aula a gente tinha uma apresentação dos professores e eles falavam do programa do ano, discorriam sobre as temáticas das suas disciplinas, algumas também novas pra mim, e iam se apresentando, ao mesmo tempo em que buscavam conhecer os novos alunos.
Dona Camille era a professora de Desenho e Artes. Levava para as suas aulas uns livros grandes, de grandes pintores, que tinham fotos grandes dos seus trabalhos. Ela carregava o livro nos braços até as nossas mesas, indicando as páginas pra gente olhar e seguia falando, enquanto o livro circulava pela turma.
Mas a professora Camille tinha uma coisa peculiar. Pelo menos comigo. Na primeira chamada que fez na intenção de conhecer os alunos, ela procurou se esgueirar entre nós pra ver a fisionomia daquele a quem estava chamando. E fez isso com todos, dizendo o nome e levantando os olhos pra ver quem era. Quando ela chamou o meu nome pela primeira vez, olhou pra mim e disse:
– Nossa, você não tem cara de Anderson não! Tem cara de Leonardo.
A turma riu, ela riu e eu ri, achando aquilo, no mínimo, pitoresco.
Daquele dia em diante, não só nas chamadas, mas também durante as aulas, quando a participação da turma era bem efetiva, sempre que ela podia me chamava de Leonardo e me olhava de um jeito como se quisesse dar a mesma explicação do primeiro dia, ou seja, que eu tinha cara de Leonardo. Isso acontecia muitas vezes durante as aulas, já que os assuntos eram sempre instigantes e nós, alunos, éramos incentivados a pensar, avaliar e refletir sobre quase tudo no mundo das Artes.
Muitos colegas me perguntavam se eu não ficava chateado com a troca do meu nome, mas eu não via, sinceramente, nenhum problema com aquilo, muito menos com uma professora competente e simpática, que só achava que eu tinha cara de Leonardo, ora. Muitas vezes a gente caía na risada quando ela lia a chamada e parecia se esquecer quem era aquele tal de Anderson que estava escrito na pauta. Aí ela esticava o pescoço pra conseguir me ver e dizia baixinho:
– Ah, é o Leonardo – e a gente ria com ela de novo.
Uma vez teve uma feira de ciências na escola. Uma escola grande daquela, dá pra imaginar que a feira era enorme também. Tinha muitas turmas, muitas barraquinhas, muitos palcos com demonstrações diversas e as cantinas funcionavam também em apoio à festa. As turmas faziam exposições mostrando as suas pesquisas, os livros e os autores e, além de muita inventividade, também tinham muitos cartazes feitos com cartolina, muitas fotos e muitos desenhos.
Todos os professores participavam também e circulavam com suas famílias entre os alunos e seus pais, assim como os inspetores, assistentes e os outros trabalhadores da escola. Visitando as barraquinhas da feira, de repente a professora Camille surge com o marido diante da barraca da minha turma. Eu estava longe, mas vi a aproximação dela e fiquei ali olhando ela e o marido conversando com as pessoas e com os pais dos alunos que estavam por perto.
Notei que ela estava se virando, como se procurasse alguém ou alguma coisa. Olhava para fora do estande, para o corredor, o pátio e depois voltava a conversar e ler os cartazes. Numa dessas viradas ela cruzou o olhar comigo e me fez um sinal pra ir até lá.
Quando cheguei perto ela me cumprimentou, elogiou o nosso trabalho e me apresentou ao marido:
– Esse é meu aluno também. Bom aluno. O tal, que eu digo que tem cara de Leonardo.
Fez uma pausa, olhou pra mim e continuou:
– Mas eu sei que o nome dele é Anderson. Anderson Loureiro.
Um tanto automático, eu respondi com a cabeça ao aceno do marido e, diante da surpresa daquela apresentação, passei pro lado de dentro do estande, sem saber bem o que dizer.
O respeito entre mim e a professora Camille sempre me orgulhou. Suas ótimas aulas eu guardo junto com as melhores lembranças daquele tempo. Eu jamais soube quem era o tal Leonardo, com quem ela dizia que eu parecia. Nem sei se existiu um. Mas naquele dia, no momento em que ela mostrou que sabia o meu nome, que ela não se confundia ou fazia troça comigo, foi muito bom ouvir aquilo.
De alguma maneira eu senti que aquilo era só uma maneira de ela me destacar entre os demais alunos. Quando ela me perguntava alguma coisa na aula, quando puxava por mim e pela minha participação, eu sabia que era um tipo de preferência que ela tinha. Pouca, é verdade, mas existia. E eu nunca tive a oportunidade de dizer o quanto a admirava, nem o quanto a agradeço por hoje gostar de música, de fotografia, de cinema, de Glenn Gould, de literatura, de arte e de cultura.
Por muitas aulas ainda a professora Camille me chamou de Leonardo. E quando isso acontecia ela me olhava de longe e eu sabia, pelo seu olhar, que ela estava simplesmente repetindo que sabia o meu nome de verdade, mas que eu tinha mesmo era cara de Leonardo! E fim.