Assim que eu passei pro curso ginasial muitas
mudanças aconteceram. De cara eu mudei de colégio e isso significava ter de
pegar ônibus e sair de Ramos para a Ilha do Governador, coisa que eu jamais
tinha feito sozinho. Era uma viagem que durava cerca de 40 minutos pra ir pra
escola, bem diferente do que eu estava acostumado.
Durante o primário o meu colégio ficava
praticamente na esquina de casa, pertinho da padaria que eu ia todas as tardes
pra minha mãe. Agora eu tinha de pegar ônibus, ficar ligado no trajeto pra
saltar no ponto certo e na volta ter a mesma atenção. Foi uma aventura diária
que demorou muito pra deixar de ser aventura, mas que me deu a sensação de
estar ficando adulto, afinal eu estava indo pro ginásio!
O novo colégio era lindo, bem grande, tinha
campo de futebol e quadra, laboratório e teatro, era uma coisa que eu jamais
tinha visto na minha escola do bairro. Muitos professores dessa época eu lembro
até hoje do nome, do jeito de dar aulas e os melhores que eu tive são dessa
escola.
Me lembro também das provas que eu e alguns
colegas fizemos pra conseguir vaga pra lá. Em uma delas, eu fui de carona com o
pai de uma amiga do primário, num carro DKV bege, novinho, e que tinha uma
porta na mala que parecia uma porta de geladeira. Eu e alguns colegas fomos pro
local da prova ali.
Na primeira semana de aula a gente tinha uma
apresentação dos professores e eles falavam do programa do ano, discorriam
sobre as temáticas das suas disciplinas, algumas também novas pra mim, e iam se
apresentando, ao mesmo tempo em que buscavam conhecer os novos alunos.
Dona Camille era a professora de Desenho e
Artes. Levava para as suas aulas uns livros grandes, de grandes pintores, que
tinham fotos grandes dos seus trabalhos. Ela carregava o livro nos braços até
as nossas mesas, indicando as páginas pra gente olhar e seguia falando,
enquanto o livro circulava pela turma.
Mas a professora Camille tinha uma coisa
peculiar. Pelo menos comigo. Na primeira chamada que fez na intenção de
conhecer os alunos, ela procurou se esgueirar entre nós pra ver a fisionomia
daquele a quem estava chamando. E fez isso com todos, dizendo o nome e
levantando os olhos pra ver quem era. Quando ela chamou o meu nome pela primeira
vez, olhou pra mim e disse:
– Nossa, você não tem cara de Anderson não! Tem
cara de Leonardo.
A turma riu, ela riu e eu ri, achando aquilo, no
mínimo, pitoresco.
Daquele dia em diante, não só nas chamadas, mas
também durante as aulas, quando a participação da turma era bem efetiva, sempre
que ela podia me chamava de Leonardo e me olhava de um jeito como se quisesse
dar a mesma explicação do primeiro dia, ou seja, que eu tinha cara de Leonardo.
Isso acontecia muitas vezes durante as aulas, já que os assuntos eram sempre
instigantes e nós, alunos, éramos incentivados a pensar, avaliar e refletir
sobre quase tudo no mundo das Artes.
Muitos colegas me perguntavam se eu não ficava
chateado com a troca do meu nome, mas eu não via, sinceramente, nenhum problema
com aquilo, muito menos com uma professora competente e simpática, que só achava
que eu tinha cara de Leonardo, ora. Muitas vezes a gente caía na risada quando
ela lia a chamada e parecia se esquecer quem era aquele tal de Anderson que
estava escrito na pauta. Aí ela esticava o pescoço pra conseguir me ver e dizia
baixinho:
– Ah, é o Leonardo – e a gente ria com ela de
novo.
Uma vez teve uma feira de ciências na escola.
Uma escola grande daquela, dá pra imaginar que a feira era enorme também. Tinha
muitas turmas, muitas barraquinhas, muitos palcos com demonstrações diversas e
as cantinas funcionavam também em apoio à festa. As turmas faziam exposições
mostrando as suas pesquisas, os livros e os autores e, além de muita
inventividade, também tinham muitos cartazes feitos com cartolina, muitas fotos
e muitos desenhos.
Todos os professores participavam também e
circulavam com suas famílias entre os alunos e seus pais, assim como os
inspetores, assistentes e os outros trabalhadores da escola. Visitando as
barraquinhas da feira, de repente a professora Camille surge com o marido
diante da barraca da minha turma. Eu estava longe, mas vi a aproximação dela e
fiquei ali olhando ela e o marido conversando com as pessoas e com os pais dos
alunos que estavam por perto.
Notei que ela estava se virando, como se
procurasse alguém ou alguma coisa. Olhava para fora do estande, para o
corredor, o pátio e depois voltava a conversar e ler os cartazes. Numa dessas
viradas ela cruzou o olhar comigo e me fez um sinal pra ir até lá.
Quando cheguei perto ela me cumprimentou,
elogiou o nosso trabalho e me apresentou ao marido:
– Esse é meu aluno também. Bom aluno. O tal, que
eu digo que tem cara de Leonardo.
Fez uma pausa, olhou pra mim e continuou:
– Mas eu sei que o nome dele é Anderson.
Anderson Loureiro.
Um tanto automático, eu respondi com a cabeça ao
aceno do marido e, diante da surpresa daquela apresentação, passei pro lado de dentro
do estande, sem saber bem o que dizer.
O respeito entre mim e a professora Camille
sempre me orgulhou. Suas ótimas aulas eu guardo junto com as melhores lembranças
daquele tempo. Eu jamais soube quem era o tal Leonardo, com quem ela dizia que
eu parecia. Nem sei se existiu um. Mas naquele dia, no momento em que ela
mostrou que sabia o meu nome, que ela não se confundia ou fazia troça comigo, foi
muito bom ouvir aquilo.
De alguma maneira eu senti que aquilo era só uma
maneira de ela me destacar entre os demais alunos. Quando ela me perguntava
alguma coisa na aula, quando puxava por mim e pela minha participação, eu sabia
que era um tipo de preferência que ela tinha. Pouca, é verdade, mas existia. E
eu nunca tive a oportunidade de dizer o quanto a admirava, nem o quanto a
agradeço por hoje gostar de música, de fotografia, de cinema, de Glenn Gould,
de literatura, de arte e de cultura.
Por muitas aulas ainda a professora Camille me
chamou de Leonardo. E quando isso acontecia ela me olhava de longe e eu sabia,
pelo seu olhar, que ela estava simplesmente repetindo que sabia o meu nome de
verdade, mas que eu tinha mesmo era cara de Leonardo! E fim.