quinta-feira, 29 de agosto de 2019

O Marido da Marlene


Historicamente o setor administrativo sempre foi meio afastado do técnico. No refeitório sentavam separados, nas reuniões idem e nas confraternizações de aniversário, toda última quinta-feira do mês, mesmo com as brincadeiras de todos os lados, as pessoas não ficavam à vontade.
Acho que foi por isso que a gente não teve muito espaço pra tirar as informações que queríamos da Marlene. Ela era secretária do setor de compras e serviços e a gente começou a notar, no meio do ano, que o marido dela passou a vir buscá-la na saída do trabalho.
No grupo do qual eu fazia parte todo mundo notou e o assunto ficou rolando por um bom tempo entre nós. Nada demais o marido vir buscar a esposa, claro. Mas ele tinha um comportamento, digamos, reservado demais para os nossos padrões naquele órgão federal, onde todo mundo se conhecia.
O sujeito não ia até a portaria e ficava dentro do carro esperando ela sair. Às vezes ficava de pé, ao lado do veículo, fumando e limpando os óculos na barra da camisa. Mas sempre estacionava do outro lado da calçada e lá ficava um tempão, encarando as pessoas, de tocaia mesmo, observando tudo e todos. A Marlene, por sua vez, era uma pessoa bem amável com a gente, alegre e comunicativa. Ela só ficava diferente quando o assunto era o seu marido. Aí ela se fechava e, com cara sisuda, respondia sempre curto e de forma genérica, se apressando em mudar de prosa.
Eu tinha uma desconfiança enviesada sobre o tal sujeito, mas era tão absurda que eu nem me atrevia a dizer pra alguém. Uma tarde o coordenador de área me chamou na sala dele, que ficava no final do corredor. Quando eu saí pro saguão encontrei o Humberto, chefe da engenharia, que ia na mesma direção. Estranhamos o chamado do chefe àquela hora, mas quando entramos na sala dele já estavam lá outros técnicos e então eu notei que a urgência não era de trabalho.
– Que bom que você chegou – disse o chefe. Nós estamos aqui falando do marido da Marlene. Ele é muito esquisito. A gente não quer pensar nada de ruim sobre ele, mas acaba sendo inevitável. Aí, você, como é uma pessoa equilibrada, sensata, a gente queria saber a sua opinião. O que você acha dele?
Justamente eu, que tinha as piores impressões sobre o sujeito, estava agora diante dos colegas pra dar o meu parecer sobre o comportamento dele.
– Mas o que vocês estão achando? Qual o problema? – perguntei pra ter tempo de pensar.
– Não, primeiro fala você o que acha.
– Olha só, eu tenho até me censurado por pensar isso. Mas ele, pra mim, tem uma baita cara de mau, de gente ruim, tipo ex-policial ou coisa assim. Pelo fato de ele ficar lá no carro, daquele jeito, quase escondido, à espreita, esperando a Marlene sair, sem querer se aproximar de ninguém, sei lá, ele tem a maior cara de torturador. Me desculpe se alguém conhece ele e tal, mas é isso.
Enquanto eu falava notei que alguns colegas se entreolhavam, riam com a mão na frente da boca, batiam as mãos e até davam tapinhas no ombro do colega ao lado. O coordenador então me disse:
– Fica frio. É incrível, mas todos nós pensamos a mesma coisa. Só faltava a sua opinião e a do Humberto, mas todos aqui nessa sala falaram exatamente isso: que ele tem cara de torturador. Até pela questão dos óculos escuros e das roupas dele, que parecem fardas, com aquela camisa cáqui e as calças pretas. Só falta a arma na cintura.
O Humberto então acrescentou que a única coisa que ele tinha a dizer, diferente dos outros, é que pra ele o cara tinha cara de cachorro. Nos contou que dava medo só de olhar pra aquela aparência de cachorro, pronto pra morder o primeiro que aparecesse.
A risada foi geral e, ao mesmo tempo, todos ficamos aliviados porque afinal o cara de cachorro era uma unanimidade, assim como a sua suposta participação na tortura. Pra nós era isso e ponto final. Até porque aquilo já estava virando uma feira, com todo mundo rindo, dizendo que ia trazer um osso pra ele, e as asneiras iam se multiplicando.
O ano era 1988 e o Brasil tinha recém saído da ditadura. Os torturadores, quase todos militares, viviam um período de sombra e reclusão, pois tinham medo de ser reconhecidos, julgados ou coisa que o valha. Muitos foram para a reserva, com o intuito de sair de cena, e até mudaram de cidade, de estado. Mas no Rio de Janeiro a população sempre soube que, ainda assim, esses caras eram uma espécie não-humana que naquele período espreitavam uma chance de exercer, prontamente, em nome do estado, uma nova e covarde ameaça à democracia.
No meio daquela balbúrdia toda, na sala do chefe, alguém alardeou “coitada da Marlene”. E logo vieram também o “como ela consegue viver assim?”, “será que ela sabe a verdade?”, “será que ele bate nela?”, “a gente devia fazer alguma coisa”, “a Marlene pode estar em perigo, gente”.
As semanas se passaram e, de tempos em tempos, alguém chegava com alguma nova ideia de como tirar aquilo tudo a limpo, de como agir pra poder salvar a vida da coitada da Marlene, tão boazinha, casada com um torturador. Um dizia que tinha que atrair o marido pra dentro da repartição e puxar o assunto, outro que tinha que pegar os dois desprevenidos e perguntar na lata, quem sabe ligar pra ele anonimamente e ameaçar, e outro ainda dizia que era a Marlene que tinha que ser interrogada sobre o marido, pois ela o acobertava.
Até que um dia a nossa reunião semanal se estendeu demais. Ficamos quase duas horas além do horário normal e quando saímos no corredor o pessoal da limpeza já estava em ação nas outras salas, fechando os corredores e apagando as luzes.
Quando chegaram os dois elevadores a turma se dividiu pra descer, marcando de se encontrar na portaria. O nosso elevador, estranhamente, desceu um pouco e parou no sexto andar. No meio da escuridão, surge do breu, entrando porta a dentro, o marido da Marlene com sua cara de bandido de filme de bangue-bangue.
Deu um nó em todo mundo. O silêncio era assustador. Estava matando a gente. Nenhum pio se ouvia. No elevador a gente nem se olhava com medo de o homem perceber alguma coisa. Até que alguém, timidamente, falou:
– Desculpe, o senhor não é o marido da Marlene?
– Eu mesmo. Por quê?
– É que a Marlene sempre fala muito bem do senhor. Boa noite, viu?
E descemos todos no térreo, voltando a respirar.


quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O Crítico


Era um domingo de sol. Mas estava fresquinho naquele dia ameno de maio, no Centro deserto da cidade, em que eu caminhava meio sem rumo, apreciando a paz das lojas fechadas e calçadas vazias. Ao longe, notei um Opala azul claro entrando devagar pelo calçadão. As poucas pessoas ali se viravam pra olhar o carro, que tinha uma luz redonda vermelha no teto e um motorista de óculos ray-ban, com um bigodinho ralo e um braço acotovelado na janela.
Ele chegou perto de mim, desceu do carro e pediu pra eu parar.
– Bom dia cidadão. Peçanha, investigador de polícia. Documento do veículo, por favor.
– Mas eu estou a pé?
– No problem, man. O elemento tem um veículo, não tem? Então, cadê o documento dele?
– Está em casa, ué. Não está aqui comigo.
– Então o IPTU, please?
– Como assim, IPTU?
– Quero ver o IPTU pago. Cash. O senhor tem ele aí?
Quando eu ia responder, já exaltado pelo absurdo daquela conversa, ele se apressou e me interrompeu.
– Eu estava um tempo à sua procura. Quem me deu os seus dados foi o Enoch, meu assistente, que te conhece desde os tempos do projeto de cinema lá naquele museuzinho.
– Museuzinho?
– Sorry, my friend. Não quis menosprezar o seu estabelecimento, não. Só disse isso porque ele é um museu pequeno. Seguindo. O Rocha, meu assistente, muito competente aliás, vive me dando dicas erradas, pistas falsas e eu sempre digo pra ele “Enoch”, que quer dizer basta em inglês. É que eu domino muito bem o idioma, you know? Aí, seguindo, de tanto eu falar Enoch pra ele, passei a chama-lo de Enoch.
– Mas então é enough e não Enoch. É isso?
– Ah, isso é detalhe. É Enoch e pronto. Posso continuar, o senhor me permite?
Aquela bizarrice era tamanha que eu olhava pros lados, tentando ver se alguém estava ouvindo aquilo tudo, muito surreal para um domingo tão comum. Mas ninguém estava sequer notando nada de errado, a não ser aquele Opala estranho, que devia ser de 1990, mas estava ali novinho em folha, com a tal luz vermelha no teto.
Então o Peçanha prosseguiu:
– Foi o Enoch que indicou o seu nome e eu vim trazer o meu livro pra você revisar e me dar uns toques, uns conselhos, ajudar nuns possíveis ajustes, right? É um trabalho de dez anos, ten years, fruto da minha experiência dentro da polícia e nas coisas da vida que tenho visto por aí, catch?
– Como assim, que livro? Olha, eu não sou crítico de literatura nem nada.
Enquanto eu reclamava e expunha os meus motivos pra declinar da tarefa, ele foi até o Opala e trouxe uma resma encadernada, que devia ser uma versão do tal livro. Me entregou e disse pra eu ler com calma e que ele ia sentar ali, do meu lado, pra ouvir as primeiras impressões. Ou seja, era pra eu começar a ler ali mesmo, naquele instante, na frente dele.
Com imensa má vontade, natural, diante daquela obrigação e imposição, eu comecei a folhear algumas páginas e ia lendo alguns parágrafos, muitos, com muitos erros, de todos os tipos, tipos estranhos, os personagens, como eu saio disso, era só o que eu pensava.
Finalmente eu disse:
– Ruim.
– Ruim?
– Sim. Veja aqui. Começa que tem muitos jargões em inglês, desnecessários, cansativos.
– Ah, agora você é crítico de livro?
– Foi você que disse que eu sou. Olha, e tem mais: todas as mulheres são apaixonadas pelo protagonista, que bate em todo mundo e, coincidentemente ele é investigador de polícia. Além disso, tem muitos erros de português, frases sem sentido, sem falar nos parágrafos longos demais que dificultam o entendimento e fazem com que o texto não flua.
– Flua?
– Flua, de fluir. O texto não flui durante a leitura.
– Poxa, essa o Enoch acertou na mosca. Tu é mesmo o cara certo pra me ajudar a consertar o meu livro. Você é um sujeito erudito, culto. Grande Enoch.
– Consertar? O seu livro?
– Eu acho, assim, que um escritor deve ajudar o outro. Se um tem uma pequena dificuldade, o outro corrige, aconselha, e por aí vai. Ou você acha que algum escritor escreve o seu livro sozinho? Claro que não. Tem um monte de gente que ajuda e nem aparece. Fica só naquilo que os americanos chamam de ghost writer.
– Eu sei o que é ghost writer.
– Então.
Nesse momento me deu um estalo e eu me lembrei de uma carta na manga que eu tinha e que poderia me tirar daquela enrascada pra lá de surreal.
– Seu Peçanha, escute aqui uma coisa com calma. Escrever crônicas é muito mais fácil. É um viés quase jornalístico de narrativa e não necessita de muito esforço literário. Literatura mesmo, romance, novela, tudo isso é muito complexo. Desde a criação, a elaboração dos personagens, seus perfis, sua trajetória, passado e presente, é preciso muito talento, tanto na trama quanto no desenlace. A crônica prevê textos menores, histórias pequenas, fáceis de compreender e sem muita complexidade narrativa. Entende?
– Eu achei que livro era tudo igual. Não sabia desse troço de crônica não. Achei que era coisa de jornal.
– Não. Veja, eu tenho aqui um livro que eu fiz, tem uns 5 anos. É só de crônicas. Fica com esse pra você. Dê uma olhada e note como é bem mais simples. Você pode contar as suas histórias e experiências na polícia e cada capítulo pode virar uma crônica. Que tal?
– Ah, um livro seu? Isso o Enoch não me disse. Ele devia ter comprado um pra mim.
– Não, é que não vendeu em livraria não. Foi uma edição minha. Não comercial.
Ele abriu o livro, ficou olhando os títulos das crônicas, folheando as páginas e disse:
– Ruim.
– Ruim?
– Sim, já começou mal aqui. O Presunto é a primeira crônica do livro. Aí já começa com a desova de um corpo em algum matagal, coisa que eu deixaria pra revelar só no final. Listen to me, se você já mostra no início que teve a desova do presunto, já matou toda a trama. So wrong!
– Não tem corpo nenhum, caramba! É um presunto mesmo. A crônica é sobre uma fatia de presunto.
– Ah, uma crônica sobre uma fatia de presunto? Nossa, bem interessante! Mas ok, que seja. Agora, você deve estar preparado para a crítica que vem, né? Afinal...
– E você agora é crítico literário?
– Ué, foi você que disse pra eu ler e avaliar. Eu só estou dizendo que se você criticou o meu livro, tem que aceitar a minha crítica now, brother!
– Bem, pra mim basta. Ou melhor, pra mim enough, como você preferir. Isso aqui é um sonho e eu vou acordar porque já está bizarro demais pro meu gosto. Boa sorte com o seu livro e adeus.
– Vou te mandar um exemplar. Pode esperar que você vai receber.
– Como? Isso é um sonho. Quero ver como vai me enviar?
– Esqueceu que eu sou um investigador de polícia? Forget que eu tenho o seu IPTU? E que eu tenho o Enoch?
– Ah, pra mim chega. Enough mesmo!!!
E acordei.