quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O Crítico


Era um domingo de sol. Mas estava fresquinho naquele dia ameno de maio, no Centro deserto da cidade, em que eu caminhava meio sem rumo, apreciando a paz das lojas fechadas e calçadas vazias. Ao longe, notei um Opala azul claro entrando devagar pelo calçadão. As poucas pessoas ali se viravam pra olhar o carro, que tinha uma luz redonda vermelha no teto e um motorista de óculos ray-ban, com um bigodinho ralo e um braço acotovelado na janela.
Ele chegou perto de mim, desceu do carro e pediu pra eu parar.
– Bom dia cidadão. Peçanha, investigador de polícia. Documento do veículo, por favor.
– Mas eu estou a pé?
– No problem, man. O elemento tem um veículo, não tem? Então, cadê o documento dele?
– Está em casa, ué. Não está aqui comigo.
– Então o IPTU, please?
– Como assim, IPTU?
– Quero ver o IPTU pago. Cash. O senhor tem ele aí?
Quando eu ia responder, já exaltado pelo absurdo daquela conversa, ele se apressou e me interrompeu.
– Eu estava um tempo à sua procura. Quem me deu os seus dados foi o Enoch, meu assistente, que te conhece desde os tempos do projeto de cinema lá naquele museuzinho.
– Museuzinho?
– Sorry, my friend. Não quis menosprezar o seu estabelecimento, não. Só disse isso porque ele é um museu pequeno. Seguindo. O Rocha, meu assistente, muito competente aliás, vive me dando dicas erradas, pistas falsas e eu sempre digo pra ele “Enoch”, que quer dizer basta em inglês. É que eu domino muito bem o idioma, you know? Aí, seguindo, de tanto eu falar Enoch pra ele, passei a chama-lo de Enoch.
– Mas então é enough e não Enoch. É isso?
– Ah, isso é detalhe. É Enoch e pronto. Posso continuar, o senhor me permite?
Aquela bizarrice era tamanha que eu olhava pros lados, tentando ver se alguém estava ouvindo aquilo tudo, muito surreal para um domingo tão comum. Mas ninguém estava sequer notando nada de errado, a não ser aquele Opala estranho, que devia ser de 1990, mas estava ali novinho em folha, com a tal luz vermelha no teto.
Então o Peçanha prosseguiu:
– Foi o Enoch que indicou o seu nome e eu vim trazer o meu livro pra você revisar e me dar uns toques, uns conselhos, ajudar nuns possíveis ajustes, right? É um trabalho de dez anos, ten years, fruto da minha experiência dentro da polícia e nas coisas da vida que tenho visto por aí, catch?
– Como assim, que livro? Olha, eu não sou crítico de literatura nem nada.
Enquanto eu reclamava e expunha os meus motivos pra declinar da tarefa, ele foi até o Opala e trouxe uma resma encadernada, que devia ser uma versão do tal livro. Me entregou e disse pra eu ler com calma e que ele ia sentar ali, do meu lado, pra ouvir as primeiras impressões. Ou seja, era pra eu começar a ler ali mesmo, naquele instante, na frente dele.
Com imensa má vontade, natural, diante daquela obrigação e imposição, eu comecei a folhear algumas páginas e ia lendo alguns parágrafos, muitos, com muitos erros, de todos os tipos, tipos estranhos, os personagens, como eu saio disso, era só o que eu pensava.
Finalmente eu disse:
– Ruim.
– Ruim?
– Sim. Veja aqui. Começa que tem muitos jargões em inglês, desnecessários, cansativos.
– Ah, agora você é crítico de livro?
– Foi você que disse que eu sou. Olha, e tem mais: todas as mulheres são apaixonadas pelo protagonista, que bate em todo mundo e, coincidentemente ele é investigador de polícia. Além disso, tem muitos erros de português, frases sem sentido, sem falar nos parágrafos longos demais que dificultam o entendimento e fazem com que o texto não flua.
– Flua?
– Flua, de fluir. O texto não flui durante a leitura.
– Poxa, essa o Enoch acertou na mosca. Tu é mesmo o cara certo pra me ajudar a consertar o meu livro. Você é um sujeito erudito, culto. Grande Enoch.
– Consertar? O seu livro?
– Eu acho, assim, que um escritor deve ajudar o outro. Se um tem uma pequena dificuldade, o outro corrige, aconselha, e por aí vai. Ou você acha que algum escritor escreve o seu livro sozinho? Claro que não. Tem um monte de gente que ajuda e nem aparece. Fica só naquilo que os americanos chamam de ghost writer.
– Eu sei o que é ghost writer.
– Então.
Nesse momento me deu um estalo e eu me lembrei de uma carta na manga que eu tinha e que poderia me tirar daquela enrascada pra lá de surreal.
– Seu Peçanha, escute aqui uma coisa com calma. Escrever crônicas é muito mais fácil. É um viés quase jornalístico de narrativa e não necessita de muito esforço literário. Literatura mesmo, romance, novela, tudo isso é muito complexo. Desde a criação, a elaboração dos personagens, seus perfis, sua trajetória, passado e presente, é preciso muito talento, tanto na trama quanto no desenlace. A crônica prevê textos menores, histórias pequenas, fáceis de compreender e sem muita complexidade narrativa. Entende?
– Eu achei que livro era tudo igual. Não sabia desse troço de crônica não. Achei que era coisa de jornal.
– Não. Veja, eu tenho aqui um livro que eu fiz, tem uns 5 anos. É só de crônicas. Fica com esse pra você. Dê uma olhada e note como é bem mais simples. Você pode contar as suas histórias e experiências na polícia e cada capítulo pode virar uma crônica. Que tal?
– Ah, um livro seu? Isso o Enoch não me disse. Ele devia ter comprado um pra mim.
– Não, é que não vendeu em livraria não. Foi uma edição minha. Não comercial.
Ele abriu o livro, ficou olhando os títulos das crônicas, folheando as páginas e disse:
– Ruim.
– Ruim?
– Sim, já começou mal aqui. O Presunto é a primeira crônica do livro. Aí já começa com a desova de um corpo em algum matagal, coisa que eu deixaria pra revelar só no final. Listen to me, se você já mostra no início que teve a desova do presunto, já matou toda a trama. So wrong!
– Não tem corpo nenhum, caramba! É um presunto mesmo. A crônica é sobre uma fatia de presunto.
– Ah, uma crônica sobre uma fatia de presunto? Nossa, bem interessante! Mas ok, que seja. Agora, você deve estar preparado para a crítica que vem, né? Afinal...
– E você agora é crítico literário?
– Ué, foi você que disse pra eu ler e avaliar. Eu só estou dizendo que se você criticou o meu livro, tem que aceitar a minha crítica now, brother!
– Bem, pra mim basta. Ou melhor, pra mim enough, como você preferir. Isso aqui é um sonho e eu vou acordar porque já está bizarro demais pro meu gosto. Boa sorte com o seu livro e adeus.
– Vou te mandar um exemplar. Pode esperar que você vai receber.
– Como? Isso é um sonho. Quero ver como vai me enviar?
– Esqueceu que eu sou um investigador de polícia? Forget que eu tenho o seu IPTU? E que eu tenho o Enoch?
– Ah, pra mim chega. Enough mesmo!!!
E acordei.