sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O Ciúme


Contam que o seu Antenor e o melhor amigo se conheciam desde criança. Estudaram na mesma escola, jogaram no mesmo time de futebol e estavam sempre juntos. As famílias eram amigas, da mesma forma, e tudo corria muito bem até que, no início daquele ano, entraram na turma os novos alunos da escola do povoado vizinho, que tinha entrado em obras. E entre os novos alunos, a Olguinha.
Toda manhã um barco saía de Juazeiro e trazia os alunos até Petrolina, que ficava pertinho, a 10 minutos, mas do outro lado do Velho Chico. O rio dividia as duas cidades, digamos, poeticamente.
Poeticamente foi também como os dois amigos se apaixonaram pela mesma menina Olguinha. Quando um soube do interesse do outro, tentaram ambos negar qualquer coisa, fazendo questão de deixar o caminho livre para o outro. No fim das contas foi o seu Antenor o sortudo e eles se casaram quase na mesma época em que o amigo inseparável foi trabalhar em Salvador, ficando muitos anos sem pisar na sua terra natal.
O casal sempre sentiu saudades do amigo. Um lado lamentava a amizade interrompida e o outro por ter sido, potencialmente, o motivo daquela separação. Por um bom tempo a dúvida trazia aquela sensação inconfessável de ter impedido o enlace do seu melhor amigo com o amor da sua vida, que também era seu, e esse sentimento os acompanhava por longos dias. Mas logo vinha a sensação de que, inevitavelmente, era uma história cujo andamento acabaria por magoar um ou outro, em certo momento da vida.
Como presente de 80 anos, seu Antenor teve a ideia de fazer uma serenata pra esposa. Em segredo, combinou com alguns amigos e também com um dos netos, o que tocava violão, e marcaram de ensaiar durante as tardes. Num desses ensaios, que era feito longe de casa pra manter a surpresa, o neto disse pro avô que tinha visto o seu grande amigo e que ele tinha voltado a morar na cidade.
– Poxa, e ele nem veio falar comigo – disse o avô.
– Mas ele voltou faz pouco tempo. Na certa ainda vai vir aqui falar com o vô. Ele disse que só voltou porque queria morrer nessa cidade e em nenhuma outra. Voltou pra morrer, como ele disse. Mas eu achei ele muito bem, bem disposto, fortão. De vez em quando eu o vejo passar de bicicleta por aí.
Incrível como certas histórias podem renascer na cabeça das pessoas. Mais de 50 anos de casado e uma notícia da volta do amigo o levou diretamente para o dia em que soube da decisão dele, de ir morar em Salvador. Parece que foi ontem, pensou consigo mesmo.
Nos seus melhores devaneios, quando pensava no dia da serenata que se aproximava, seu Antenor imaginava que o seu amigo da vida toda bem que podia vir cantar com ele pra esposa. Afinal, ela era amiga dele também, grande amiga de muitos anos e estava aniversariando. E ficou imaginando uma maneira de convidá-lo, de revelar os seus planos, esquecendo que primeiro o amigo precisava aparecer, dizer que voltou e tudo o mais, pra reatar a amizade que jamais tinha deixado de existir.
A primeira data da serenata teve de ser adiada por causa da saúde da dona Olguinha. O médico ficou sabendo do evento mas pediu mais uns dias, por segurança, pra que a indisposição pudesse passar de vez. E assim foi.
Naquela noite de lua cheia todos da família estavam envolvidos, de alguma maneira, com a execução da surpresa. Às oito em ponto, o violão começou lá em baixo, dando início à serenata, fazendo uma longa introdução, até que as luzes se acendessem, as portas da sacada fossem abertas e surgisse a dona Olguinha com o seu xale roxo e azul, agora ainda mais azul e roxo com a luz da lua.
O cantor começou a sua parte e sua voz firme do início foi ficando imprecisa, o compasso parecendo que ia atrasar, a letra quase sendo esquecida e todos ficaram apreensivos. Do outro lado da rua, um senhor parou pra ver a cena. Sem se dar conta de que conhecia bem aquela música, largou a bicicleta no chão e se aproximou do cantor, soprando a letra pra que ele cantasse sem errar.
Assim que reconheceu o amigo, seu Antenor o abraçou e fez sinal para que ele cantasse também, abrindo os braços pra mostrar a esposa quem estava ali com ele. Ela acenou e juntou as duas mãos em cima do coração, sorrindo como se fosse a menina dos tempos da escola.
Antes de dormir Dona Olguinha disse ao marido que aquela foi a melhor noite da vida dela, em muitos anos, e que estava feliz por ver os dois amigos juntos novamente, sinal de que fizeram as pazes. O marido até tentou dizer que eles jamais haviam brigado, mas ela seguiu o seu roteiro asseverando que aquela amizade era muito forte, coisa de outra vida.
Quando amanheceu o dia dona Olguinha estava morta. Se foi sem saber que naquela mesma noite um infarto havia levado o melhor amigo do casal, que não resistiu à dor no peito ao descer da bicicleta e só teve tempo de se sentar na grande cadeira de vime, na varanda da casa.
No enterro do amigo, poucas horas depois do sepultamento da esposa, seu Antenor cantou sozinho, e sem errar a letra, a música preferida do amigo:
“Juazeiro, nem te lembras dessa tarde
Petrolina, nem chegaste a perceber
Mas na voz que canta tudo ainda arde
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê”.


O Ciúme - de Caetano Veloso.


terça-feira, 10 de setembro de 2019

O Pastor



Assim que o caminhão de mudanças encostou na calçada, meu pai foi lá fora ver o que era. O motorista e os dois ajudantes desceram e informaram que estavam esperando pelo dono da casa ao lado, que estava se mudando naquela manhã.
Não deu dois minutos e chegou o novo morador. Foi logo se apresentando como pastor evangélico e, claro, já tirou o cartão do bolso com o endereço da igreja e os horários das assembleias, tudo isso em sequência ao convite pra que meu pai fosse conhecer o templo e o procurasse, já naquele próximo final de semana.
Minha mãe torceu o nariz de pronto para o convite e todos nós ficamos duvidando se aquela visita ia mesmo acontecer. De família umbandista, meus pais nunca impuseram nada aos filhos. Nem quando eu entrei para o grupo de jovens da igreja católica, convidado pra tocar violão em uma peça de teatro, minha mãe fez qualquer menção negativa ou algo nesse sentido. Mas ela mesma ir ao culto era um pouco demais.
Meu pai, entretanto, talvez até em nome de uma amizade promissora com o vizinho de muro, acabou indo na tal igreja no sábado de noite. Nos disse que sua intenção era apenas ser gentil com o pastor e que aquilo, afinal, não ia fazer mal algum. “O cara parece ser gente boa”, dizia quando o assunto vinha à tona.
Naquele sábado, quando voltou pra casa, meu pai estava um tanto receoso sobre o que tinha acontecido na igreja evangélica. Contou que chegou cedo pra poder cumprimentar o pastor, antes do culto, e que depois sentou lá atrás na plateia, apenas pra observar melhor todo o movimento, a oração e os cantos.
Quando estava começando a cerimônia um menino, de uns 10 anos, sentou do lado dele. Ficou um tempo ali olhando pra ele e disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
Meu pai nem tinha reparado a tal cantina, uma lojinha que ficava na lateral da entrada. Se virou pra olhar se ela estava mesmo aberta e deu cinco reais ao garoto. Este saiu correndo direto pra cantina e sumiu porta afora.
Conversando com a gente, mais tarde, meu pai disse que achou muito estranho aquele pedido do menino. Reparou que antes de sentar do seu lado ele passou algumas vezes entre as cadeiras, as fileiras, olhando as pessoas, como se estivesse tentando identificar alguém.
– A pessoa vai na igreja, pela primeira vez, e já vem um menino pedir dinheiro? Isso fica ruim pra própria igreja. Será que o pastor sabe disso? Acho que seria bom eu falar com ele.
Foi aí que a gente explicou que aquilo podia causar certo mal-entendido com vizinho. Falar sobre o ocorrido seria algo como uma queixa e, afinal, ele tinha ido pela primeira vez na igreja e já ia fazer queixa de algo que aconteceu? Sem dúvida, não ia ficar nada bem.
Meu pai até aceitou as nossas ponderações, mas ficou mesmo desconfiado, incomodado com aquela primeira impressão.
No sábado seguinte ele já saiu de casa contrariado pela negativa da minha mãe em ir com ele. Primeiro ela disse apenas que não tinha vontade. Depois, que não iria fazer aquilo só porque o vizinho é gente boa, pois se o caso era amizade, que as visitas fossem feitas nas devidas residências, que ficam uma ao lado da outra. A conversa ia se encerrar ali. Mas, diante de nova insistência do meu pai, ela foi um tanto, digamos, firme, em sua posição:
– Não vou porque eu não tenho nada que fazer em uma igreja protestante. Eu tenho a minha religião e não quero convencer ninguém de que ela é a melhor. É melhor pra mim e isso basta, assim como a outra é melhor pro outro. Então, cada um com a sua e todos com respeito por todos.
E lá foi ele, sozinho pro culto, preparado pra enxotar qualquer menino pidão.
Se sentou na mesma cadeira, na mesma fileira quase vazia e, para sua surpresa, logo surgiu o menino. O mesmo menino. No instante em que o garoto sentou ao seu lado, uma senhora sentou ao lado do menino e cumprimentou meu pai, dizendo que sabia quem ele era, ou seja, um novo irmão na comunidade. Disse que a igreja o recebia com alegria e que ele era muito bem-vindo ali, com as bênçãos de Jesus etc, etc, etc.
Depois de um considerável silêncio o menino olhou pra mulher, depois pro meu pai, e disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
O que meu pai quis realmente responder, logo de cara, não pôde. Olhou pra mulher tentando passar alguma indignação e ela, com um sorriso santificado, à la Madre Teresa, juntou as duas mãos e as levantou até o próprio rosto em direção ao meu pai, como se quisesse abençoar toda a humanidade.
Contrariado, porém acanhado, quem sabe até vencido, meu pai tirou cinco reais e deu ao menino. Dessa vez o menino saiu devagarzinho, ganhou o corredor entre os bancos, e quando chegou na porta, antes de sair, se voltou e deu uma nova olhadinha pro meu pai. Ali, imitando o mesmo gesto que a senhora fez, com as palmas das mãos unidas, deu um risinho e sumiu de novo.
Foi o tempo de a mulher se levantar e ir sentar nos bancos da frente da assistência e meu pai saiu da igreja o mais rápido que pôde. Sem falar com ninguém, sem cumprimentar irmão nenhum.
Mesmo com a insistência da minha mãe ele ficou quieto alguns dias, calado, até poder contar pra gente o que tinha acontecido. O sentimento dele era o de ter caído em um golpe, ter sido passado pra trás, levado uma rasteira. “Naquele lugar eu não piso mais”, dizia quando alguém puxava o assunto. E completava:
– Pastor do diabo. Pastor do dinheiro.
Daquele dia em diante, ninguém o viu mais conversando com o vizinho pastor, nem indo lá fora quando via o movimento da casa ao lado. Os cumprimentos por cima do muro também jamais se repetiram, sendo evitados estrategicamente sempre que possível.
Quando a gente queria fazer troça com meu pai, chamava ele de tio e pedia um dinheiro, dizendo que era pra comprar um salgado na esquina. Às vezes, ele ria de lado e balançava a cabeça. Outras, ele respondia com um “Sai pra lá. Eu sou da macumba”, ao que era repreendido pela minha mãe, de onde estivesse:
– Macumba não, Umbanda!
E todos nós caíamos na risada.