Contam que o seu Antenor e o melhor amigo se
conheciam desde criança. Estudaram na mesma escola, jogaram no mesmo time de
futebol e estavam sempre juntos. As famílias eram amigas, da mesma forma, e
tudo corria muito bem até que, no início daquele ano, entraram na turma os
novos alunos da escola do povoado vizinho, que tinha entrado em obras. E entre
os novos alunos, a Olguinha.
Toda manhã um barco saía de Juazeiro e trazia os
alunos até Petrolina, que ficava pertinho, a 10 minutos, mas do outro lado do
Velho Chico. O rio dividia as duas cidades, digamos, poeticamente.
Poeticamente foi também como os dois amigos se
apaixonaram pela mesma menina Olguinha. Quando um soube do interesse do outro,
tentaram ambos negar qualquer coisa, fazendo questão de deixar o caminho livre
para o outro. No fim das contas foi o seu Antenor o sortudo e eles se casaram
quase na mesma época em que o amigo inseparável foi trabalhar em Salvador,
ficando muitos anos sem pisar na sua terra natal.
O casal sempre sentiu saudades do amigo. Um lado
lamentava a amizade interrompida e o outro por ter sido, potencialmente, o
motivo daquela separação. Por um bom tempo a dúvida trazia aquela sensação
inconfessável de ter impedido o enlace do seu melhor amigo com o amor da sua
vida, que também era seu, e esse sentimento os acompanhava por longos dias. Mas
logo vinha a sensação de que, inevitavelmente, era uma história cujo andamento
acabaria por magoar um ou outro, em certo momento da vida.
Como presente de 80 anos, seu Antenor teve a
ideia de fazer uma serenata pra esposa. Em segredo, combinou com alguns amigos
e também com um dos netos, o que tocava violão, e marcaram de ensaiar durante as
tardes. Num desses ensaios, que era feito longe de casa pra manter a surpresa,
o neto disse pro avô que tinha visto o seu grande amigo e que ele tinha voltado
a morar na cidade.
– Poxa, e ele nem veio falar comigo – disse o
avô.
– Mas ele voltou faz pouco tempo. Na certa ainda
vai vir aqui falar com o vô. Ele disse que só voltou porque queria morrer nessa
cidade e em nenhuma outra. Voltou pra morrer, como ele disse. Mas eu achei ele
muito bem, bem disposto, fortão. De vez em quando eu o vejo passar de bicicleta
por aí.
Incrível como certas histórias podem renascer na
cabeça das pessoas. Mais de 50 anos de casado e uma notícia da volta do amigo o
levou diretamente para o dia em que soube da decisão dele, de ir morar em
Salvador. Parece que foi ontem, pensou consigo mesmo.
Nos seus melhores devaneios, quando pensava no
dia da serenata que se aproximava, seu Antenor imaginava que o seu amigo da
vida toda bem que podia vir cantar com ele pra esposa. Afinal, ela era amiga dele
também, grande amiga de muitos anos e estava aniversariando. E ficou imaginando
uma maneira de convidá-lo, de revelar os seus planos, esquecendo que primeiro o
amigo precisava aparecer, dizer que voltou e tudo o mais, pra reatar a amizade
que jamais tinha deixado de existir.
A primeira data da serenata teve de ser adiada
por causa da saúde da dona Olguinha. O médico ficou sabendo do evento mas pediu
mais uns dias, por segurança, pra que a indisposição pudesse passar de vez. E
assim foi.
Naquela noite de lua cheia todos da família
estavam envolvidos, de alguma maneira, com a execução da surpresa. Às oito em
ponto, o violão começou lá em baixo, dando início à serenata, fazendo uma longa
introdução, até que as luzes se acendessem, as portas da sacada fossem abertas
e surgisse a dona Olguinha com o seu xale roxo e azul, agora ainda mais azul e
roxo com a luz da lua.
O cantor começou a sua parte e sua voz firme do
início foi ficando imprecisa, o compasso parecendo que ia atrasar, a letra
quase sendo esquecida e todos ficaram apreensivos. Do outro lado da rua, um
senhor parou pra ver a cena. Sem se dar conta de que conhecia bem aquela
música, largou a bicicleta no chão e se aproximou do cantor, soprando a letra
pra que ele cantasse sem errar.
Assim que reconheceu o amigo, seu Antenor o
abraçou e fez sinal para que ele cantasse também, abrindo os braços pra mostrar
a esposa quem estava ali com ele. Ela acenou e juntou as duas mãos em cima do
coração, sorrindo como se fosse a menina dos tempos da escola.
Antes de dormir Dona Olguinha disse ao marido
que aquela foi a melhor noite da vida dela, em muitos anos, e que estava feliz
por ver os dois amigos juntos novamente, sinal de que fizeram as pazes. O
marido até tentou dizer que eles jamais haviam brigado, mas ela seguiu o seu
roteiro asseverando que aquela amizade era muito forte, coisa de outra vida.
Quando amanheceu o dia dona Olguinha estava
morta. Se foi sem saber que naquela mesma noite um infarto havia levado o melhor amigo
do casal, que não resistiu à dor no peito ao descer da bicicleta e só teve
tempo de se sentar na grande cadeira de vime, na varanda da casa.
No enterro do amigo, poucas horas depois do
sepultamento da esposa, seu Antenor cantou sozinho, e sem errar a letra, a
música preferida do amigo:
“Juazeiro, nem te lembras dessa tarde
Petrolina, nem chegaste a perceber
Mas na voz que canta tudo ainda arde
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê”.