terça-feira, 10 de setembro de 2019

O Pastor



Assim que o caminhão de mudanças encostou na calçada, meu pai foi lá fora ver o que era. O motorista e os dois ajudantes desceram e informaram que estavam esperando pelo dono da casa ao lado, que estava se mudando naquela manhã.
Não deu dois minutos e chegou o novo morador. Foi logo se apresentando como pastor evangélico e, claro, já tirou o cartão do bolso com o endereço da igreja e os horários das assembleias, tudo isso em sequência ao convite pra que meu pai fosse conhecer o templo e o procurasse, já naquele próximo final de semana.
Minha mãe torceu o nariz de pronto para o convite e todos nós ficamos duvidando se aquela visita ia mesmo acontecer. De família umbandista, meus pais nunca impuseram nada aos filhos. Nem quando eu entrei para o grupo de jovens da igreja católica, convidado pra tocar violão em uma peça de teatro, minha mãe fez qualquer menção negativa ou algo nesse sentido. Mas ela mesma ir ao culto era um pouco demais.
Meu pai, entretanto, talvez até em nome de uma amizade promissora com o vizinho de muro, acabou indo na tal igreja no sábado de noite. Nos disse que sua intenção era apenas ser gentil com o pastor e que aquilo, afinal, não ia fazer mal algum. “O cara parece ser gente boa”, dizia quando o assunto vinha à tona.
Naquele sábado, quando voltou pra casa, meu pai estava um tanto receoso sobre o que tinha acontecido na igreja evangélica. Contou que chegou cedo pra poder cumprimentar o pastor, antes do culto, e que depois sentou lá atrás na plateia, apenas pra observar melhor todo o movimento, a oração e os cantos.
Quando estava começando a cerimônia um menino, de uns 10 anos, sentou do lado dele. Ficou um tempo ali olhando pra ele e disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
Meu pai nem tinha reparado a tal cantina, uma lojinha que ficava na lateral da entrada. Se virou pra olhar se ela estava mesmo aberta e deu cinco reais ao garoto. Este saiu correndo direto pra cantina e sumiu porta afora.
Conversando com a gente, mais tarde, meu pai disse que achou muito estranho aquele pedido do menino. Reparou que antes de sentar do seu lado ele passou algumas vezes entre as cadeiras, as fileiras, olhando as pessoas, como se estivesse tentando identificar alguém.
– A pessoa vai na igreja, pela primeira vez, e já vem um menino pedir dinheiro? Isso fica ruim pra própria igreja. Será que o pastor sabe disso? Acho que seria bom eu falar com ele.
Foi aí que a gente explicou que aquilo podia causar certo mal-entendido com vizinho. Falar sobre o ocorrido seria algo como uma queixa e, afinal, ele tinha ido pela primeira vez na igreja e já ia fazer queixa de algo que aconteceu? Sem dúvida, não ia ficar nada bem.
Meu pai até aceitou as nossas ponderações, mas ficou mesmo desconfiado, incomodado com aquela primeira impressão.
No sábado seguinte ele já saiu de casa contrariado pela negativa da minha mãe em ir com ele. Primeiro ela disse apenas que não tinha vontade. Depois, que não iria fazer aquilo só porque o vizinho é gente boa, pois se o caso era amizade, que as visitas fossem feitas nas devidas residências, que ficam uma ao lado da outra. A conversa ia se encerrar ali. Mas, diante de nova insistência do meu pai, ela foi um tanto, digamos, firme, em sua posição:
– Não vou porque eu não tenho nada que fazer em uma igreja protestante. Eu tenho a minha religião e não quero convencer ninguém de que ela é a melhor. É melhor pra mim e isso basta, assim como a outra é melhor pro outro. Então, cada um com a sua e todos com respeito por todos.
E lá foi ele, sozinho pro culto, preparado pra enxotar qualquer menino pidão.
Se sentou na mesma cadeira, na mesma fileira quase vazia e, para sua surpresa, logo surgiu o menino. O mesmo menino. No instante em que o garoto sentou ao seu lado, uma senhora sentou ao lado do menino e cumprimentou meu pai, dizendo que sabia quem ele era, ou seja, um novo irmão na comunidade. Disse que a igreja o recebia com alegria e que ele era muito bem-vindo ali, com as bênçãos de Jesus etc, etc, etc.
Depois de um considerável silêncio o menino olhou pra mulher, depois pro meu pai, e disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
O que meu pai quis realmente responder, logo de cara, não pôde. Olhou pra mulher tentando passar alguma indignação e ela, com um sorriso santificado, à la Madre Teresa, juntou as duas mãos e as levantou até o próprio rosto em direção ao meu pai, como se quisesse abençoar toda a humanidade.
Contrariado, porém acanhado, quem sabe até vencido, meu pai tirou cinco reais e deu ao menino. Dessa vez o menino saiu devagarzinho, ganhou o corredor entre os bancos, e quando chegou na porta, antes de sair, se voltou e deu uma nova olhadinha pro meu pai. Ali, imitando o mesmo gesto que a senhora fez, com as palmas das mãos unidas, deu um risinho e sumiu de novo.
Foi o tempo de a mulher se levantar e ir sentar nos bancos da frente da assistência e meu pai saiu da igreja o mais rápido que pôde. Sem falar com ninguém, sem cumprimentar irmão nenhum.
Mesmo com a insistência da minha mãe ele ficou quieto alguns dias, calado, até poder contar pra gente o que tinha acontecido. O sentimento dele era o de ter caído em um golpe, ter sido passado pra trás, levado uma rasteira. “Naquele lugar eu não piso mais”, dizia quando alguém puxava o assunto. E completava:
– Pastor do diabo. Pastor do dinheiro.
Daquele dia em diante, ninguém o viu mais conversando com o vizinho pastor, nem indo lá fora quando via o movimento da casa ao lado. Os cumprimentos por cima do muro também jamais se repetiram, sendo evitados estrategicamente sempre que possível.
Quando a gente queria fazer troça com meu pai, chamava ele de tio e pedia um dinheiro, dizendo que era pra comprar um salgado na esquina. Às vezes, ele ria de lado e balançava a cabeça. Outras, ele respondia com um “Sai pra lá. Eu sou da macumba”, ao que era repreendido pela minha mãe, de onde estivesse:
– Macumba não, Umbanda!
E todos nós caíamos na risada.