Assim que o caminhão de mudanças encostou na
calçada, meu pai foi lá fora ver o que era. O motorista e os dois ajudantes
desceram e informaram que estavam esperando pelo dono da casa ao lado, que
estava se mudando naquela manhã.
Não deu dois minutos e chegou o novo morador.
Foi logo se apresentando como pastor evangélico e, claro, já tirou o cartão do
bolso com o endereço da igreja e os horários das assembleias, tudo isso em sequência
ao convite pra que meu pai fosse conhecer o templo e o procurasse, já naquele próximo
final de semana.
Minha mãe torceu o nariz de pronto para o
convite e todos nós ficamos duvidando se aquela visita ia mesmo acontecer. De
família umbandista, meus pais nunca impuseram nada aos filhos. Nem quando eu
entrei para o grupo de jovens da igreja católica, convidado pra tocar violão em
uma peça de teatro, minha mãe fez qualquer menção negativa ou algo nesse
sentido. Mas ela mesma ir ao culto era um pouco demais.
Meu pai, entretanto, talvez até em nome de uma
amizade promissora com o vizinho de muro, acabou indo na tal igreja no sábado
de noite. Nos disse que sua intenção era apenas ser gentil com o pastor e que
aquilo, afinal, não ia fazer mal algum. “O cara parece ser gente boa”, dizia
quando o assunto vinha à tona.
Naquele sábado, quando voltou pra casa, meu pai
estava um tanto receoso sobre o que tinha acontecido na igreja evangélica.
Contou que chegou cedo pra poder cumprimentar o pastor, antes do culto, e que
depois sentou lá atrás na plateia, apenas pra observar melhor todo o movimento,
a oração e os cantos.
Quando estava começando a cerimônia um menino,
de uns 10 anos, sentou do lado dele. Ficou um tempo ali olhando pra ele e
disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou
com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
Meu pai nem tinha reparado a tal cantina, uma
lojinha que ficava na lateral da entrada. Se virou pra olhar se ela estava mesmo
aberta e deu cinco reais ao garoto. Este saiu correndo direto pra cantina e
sumiu porta afora.
Conversando com a gente, mais tarde, meu pai
disse que achou muito estranho aquele pedido do menino. Reparou que antes de sentar
do seu lado ele passou algumas vezes entre as cadeiras, as fileiras, olhando as
pessoas, como se estivesse tentando identificar alguém.
– A pessoa vai na igreja, pela primeira vez, e
já vem um menino pedir dinheiro? Isso fica ruim pra própria igreja. Será que o
pastor sabe disso? Acho que seria bom eu falar com ele.
Foi aí que a gente explicou que aquilo podia causar
certo mal-entendido com vizinho. Falar sobre o ocorrido seria algo como uma
queixa e, afinal, ele tinha ido pela primeira vez na igreja e já ia fazer
queixa de algo que aconteceu? Sem dúvida, não ia ficar nada bem.
Meu pai até aceitou as nossas ponderações, mas
ficou mesmo desconfiado, incomodado com aquela primeira impressão.
No sábado seguinte ele já saiu de casa
contrariado pela negativa da minha mãe em ir com ele. Primeiro ela disse apenas
que não tinha vontade. Depois, que não iria fazer aquilo só porque o vizinho é
gente boa, pois se o caso era amizade, que as visitas fossem feitas nas devidas
residências, que ficam uma ao lado da outra. A conversa ia se encerrar ali. Mas,
diante de nova insistência do meu pai, ela foi um tanto, digamos, firme, em sua
posição:
– Não vou porque eu não tenho nada que fazer em
uma igreja protestante. Eu tenho a minha religião e não quero convencer ninguém
de que ela é a melhor. É melhor pra mim e isso basta, assim como a outra é melhor
pro outro. Então, cada um com a sua e todos com respeito por todos.
E lá foi ele, sozinho pro culto, preparado pra
enxotar qualquer menino pidão.
Se sentou na mesma cadeira, na mesma fileira quase
vazia e, para sua surpresa, logo surgiu o menino. O mesmo menino. No instante
em que o garoto sentou ao seu lado, uma senhora sentou ao lado do menino e cumprimentou
meu pai, dizendo que sabia quem ele era, ou seja, um novo irmão na comunidade.
Disse que a igreja o recebia com alegria e que ele era muito bem-vindo ali, com
as bênçãos de Jesus etc, etc, etc.
Depois de um considerável silêncio o menino olhou
pra mulher, depois pro meu pai, e disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou
com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
O que meu pai quis realmente responder, logo de
cara, não pôde. Olhou pra mulher tentando passar alguma indignação e ela, com
um sorriso santificado, à la Madre Teresa, juntou as duas mãos e as levantou
até o próprio rosto em direção ao meu pai, como se quisesse abençoar toda a
humanidade.
Contrariado, porém acanhado, quem sabe até
vencido, meu pai tirou cinco reais e deu ao menino. Dessa vez o menino saiu
devagarzinho, ganhou o corredor entre os bancos, e quando chegou na porta,
antes de sair, se voltou e deu uma nova olhadinha pro meu pai. Ali, imitando o
mesmo gesto que a senhora fez, com as palmas das mãos unidas, deu um risinho e
sumiu de novo.
Foi o tempo de a mulher se levantar e ir sentar
nos bancos da frente da assistência e meu pai saiu da igreja o mais rápido que
pôde. Sem falar com ninguém, sem cumprimentar irmão nenhum.
Mesmo com a insistência da minha mãe ele ficou
quieto alguns dias, calado, até poder contar pra gente o que tinha acontecido.
O sentimento dele era o de ter caído em um golpe, ter sido passado pra trás,
levado uma rasteira. “Naquele lugar eu não piso mais”, dizia quando alguém
puxava o assunto. E completava:
– Pastor do diabo. Pastor do dinheiro.
Daquele dia em diante, ninguém o viu mais conversando com o vizinho
pastor, nem indo lá fora quando via o movimento da casa ao lado. Os
cumprimentos por cima do muro também jamais se repetiram, sendo evitados
estrategicamente sempre que possível.
Quando a gente queria fazer troça com meu pai,
chamava ele de tio e pedia um dinheiro, dizendo que era pra comprar um salgado
na esquina. Às vezes, ele ria de lado e balançava a cabeça. Outras, ele
respondia com um “Sai pra lá. Eu sou da macumba”, ao que era repreendido pela
minha mãe, de onde estivesse:
– Macumba não, Umbanda!
E todos nós caíamos na risada.