Logo cedinho, pouco depois do despertar, o
burburinho já dava conta de que aquele não seria um dia comum. O encarregado
tinha uma missão delicada que era levar o pedido do pessoal até o diretor.
– Bom dia doutor, a turma tá pedindo autorização
pra ver o jogo de hoje à noite. Eles estão falando nisso a semana toda.
– Mas eles não conseguem ver lá no local deles?
– Pois é, a tevê do Evanir pifou de vez. Eles
agora só têm um radinho, e ele é bem ruinzinho, sabe?
– Então. Eu vou ter que ver com os meus
superiores. Por mim tudo bem, mas vamos aguardar.
O encarregado foi logo informar a resposta que o
chefe deu. Disse aos outros que qualquer decisão ele avisava de imediato e que
todos podiam ficar tranquilos.
A cidade era uma cidade pequena, do interior do
país, quase um povoado. Mas diante da falta de grandes campeonatos locais,
quase todo mundo torcia para os times do Rio de Janeiro. O maior deles era o
Flamengo, mas a população só podia ver os jogos pela televisão e, mesmo assim, quando
passava na tevê, o que não era sempre.
Na hortinha, o pessoal se perguntava a todo
momento se tinha uma resposta do diretor. O jogo estava mobilizando o país todo
e os jornais e noticiários da tevê estavam em contagem regressiva para o início
do embate, o que só aumentava a expectativa de todos.
Na ida pro almoço o inspetor perguntou na fila:
– E aí, afinal vocês vão ver o jogo aqui ou não?
– Não sabemos ainda. O diretor ficou de ver se
autorizam.
No refeitório, o cozinheiro passou e perguntou a
mesma coisa. Depois apareceu o chefe da lavanderia, abrindo o jaleco e
mostrando a camisa do Flamengo por baixo do uniforme. Quando a turma viu aquilo
fez um enorme alvoroço. Palmas, assobios, gritos de “é hoje” e “é campeão”, e
logo alguém lembrou que a tal autorização do chefão dependia do comportamento
de todos e que aquela algazarra podia atrapalhar. Foi o bastante pra que o
silêncio voltasse a reinar absoluto na unidade, embora as fisionomias e os
gestos mudos mantivessem a turma pilhada, em alto grau, para a grande partida
que haveria de noite.
De tarde, o motorista entrou na sala do adjunto com
um palito de dente no canto da boca:
– Parece que o pessoal vai assistir ao jogo sim.
Eu ouvi o chefe falando com o mandachuva e acho que ele autorizou. Quando eu
fui levá-lo no Centro da cidade, ele estava ao celular e eu ouvi. Mas
não fala nada que eu disse não.
– Ih, a galera vai ficar doida.
– Vai mesmo!
Um sonoro e uníssono aplauso se ouviu naquele
início de noite, quando o diretor comunicou a decisão de autorizar que todos
podiam ver o jogo na sala da recepção, que era grande e tinha uma tevê idem.
– Mas só vai assistir quem torce pelo Flamengo –
disse, brincando com a galera eufórica.
Nunca se viu tamanha organização numa sala pra
se ver um jogo de futebol. Coletivamente, todos se acomodaram, ocuparam seus
lugares e a maioria preferiu se sentar no chão. Os mais altos sentaram atrás e assim
ninguém ficou na frente de ninguém, tudo perfeito.
– Ah, e você pode ir pra casa, que eu não vou
mais precisar do carro hoje – disse o diretor ao motorista. E completou: – A
condição pra eles autorizarem foi que eu ficasse e visse o jogo aqui na unidade,
pra evitar qualquer problema.
– Bacana. E o senhor acha que eu posso ficar
também? – perguntou o motorista.
– Claro, se você quiser.
– É que esse Flamengo tá jogando muita bola,
doutor. E eu não queria perder essa festa, de jeito nenhum!
Há coisas nessa vida que, para serem descritas,
precisariam de palavras especiais, virgens, palavras jamais usadas, ainda não
inventadas, de modo a substituir as que já existem, mas que, diante da
magnitude das ocasiões extraordinárias, perdem completamente o sentido.
O estádio, os times, a torcida, os cantos, as
faixas, a tela enorme, as cores, a atmosfera, os gols, a partida em si e,
claro, a vitória, tudo ali de repente se tornou mágico, uma magia que refletia
a grandiosidade da condição humana e a pequenez de toda existência ainda
submissa ao preconceito e à ignorância.
Aquela noite foi uma emoção só. Todos os demais,
que fizeram como o motorista e ficaram pra assistir ao jogo juntos, e foram
muitos, saíram dali com o coração sereno por compartilhar com aquelas pessoas simples
os mesmos sentimentos.
Depois de acabado o jogo, depois de finda a
festa que continuou ainda por muito tempo, na telinha e naquela sala de
recepção, o Evanir se levantou e agradeceu ao delegado pela sensibilidade em
permitir que os internos vissem o jogo e pudessem torcer pelo Flamengo. Solene
em seu agradecimento, ao final todos aplaudiram e também fizeram uma saudação,
repetindo cada um o obrigado, enquanto o porta voz dos detentos abraçava o
chefe, que é como ele era chamado.
– Muito bem. Espero que vocês tenham gostado do
jogo e da festa. Por um momento esta sala não tinha grades, isso aqui não era
uma cadeia e por um momento todos nós estávamos no Rio de Janeiro, no Maracanã.
Eu fiquei olhando pra fisionomia de vocês e digo que a história de vocês não pode acabar
aqui. A liberdade é uma bênção de Deus e eu espero que, de hoje em
diante, cada um faça de tudo, o possível e o impossível, pra cuidar e manter a sua liberdade como meta. O homem nasceu pra ser livre.
Aplaudido novamente, o delegado finalizou:
– E espero que vocês tenham sido pés-quentes
porque, na final, eu quero todo mundo aqui de novo. Cada um no seu exato lugar,
pra dar sorte e pra não quebrar a corrente. Parabéns pra todos nós,
flamenguistas. E agora todo mundo de volta para as suas celas. Até amanhã e
durmam bem.