segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O Jogo


Logo cedinho, pouco depois do despertar, o burburinho já dava conta de que aquele não seria um dia comum. O encarregado tinha uma missão delicada que era levar o pedido do pessoal até o diretor.
– Bom dia doutor, a turma tá pedindo autorização pra ver o jogo de hoje à noite. Eles estão falando nisso a semana toda.
– Mas eles não conseguem ver lá no local deles?
– Pois é, a tevê do Evanir pifou de vez. Eles agora só têm um radinho, e ele é bem ruinzinho, sabe?
– Então. Eu vou ter que ver com os meus superiores. Por mim tudo bem, mas vamos aguardar.
O encarregado foi logo informar a resposta que o chefe deu. Disse aos outros que qualquer decisão ele avisava de imediato e que todos podiam ficar tranquilos.
A cidade era uma cidade pequena, do interior do país, quase um povoado. Mas diante da falta de grandes campeonatos locais, quase todo mundo torcia para os times do Rio de Janeiro. O maior deles era o Flamengo, mas a população só podia ver os jogos pela televisão e, mesmo assim, quando passava na tevê, o que não era sempre.
Na hortinha, o pessoal se perguntava a todo momento se tinha uma resposta do diretor. O jogo estava mobilizando o país todo e os jornais e noticiários da tevê estavam em contagem regressiva para o início do embate, o que só aumentava a expectativa de todos.
Na ida pro almoço o inspetor perguntou na fila:
– E aí, afinal vocês vão ver o jogo aqui ou não?
– Não sabemos ainda. O diretor ficou de ver se autorizam.
No refeitório, o cozinheiro passou e perguntou a mesma coisa. Depois apareceu o chefe da lavanderia, abrindo o jaleco e mostrando a camisa do Flamengo por baixo do uniforme. Quando a turma viu aquilo fez um enorme alvoroço. Palmas, assobios, gritos de “é hoje” e “é campeão”, e logo alguém lembrou que a tal autorização do chefão dependia do comportamento de todos e que aquela algazarra podia atrapalhar. Foi o bastante pra que o silêncio voltasse a reinar absoluto na unidade, embora as fisionomias e os gestos mudos mantivessem a turma pilhada, em alto grau, para a grande partida que haveria de noite.
De tarde, o motorista entrou na sala do adjunto com um palito de dente no canto da boca:
– Parece que o pessoal vai assistir ao jogo sim. Eu ouvi o chefe falando com o mandachuva e acho que ele autorizou. Quando eu fui levá-lo no Centro da cidade, ele estava ao celular e eu ouvi. Mas não fala nada que eu disse não.
– Ih, a galera vai ficar doida.
– Vai mesmo!
Um sonoro e uníssono aplauso se ouviu naquele início de noite, quando o diretor comunicou a decisão de autorizar que todos podiam ver o jogo na sala da recepção, que era grande e tinha uma tevê idem.
– Mas só vai assistir quem torce pelo Flamengo – disse, brincando com a galera eufórica.
Nunca se viu tamanha organização numa sala pra se ver um jogo de futebol. Coletivamente, todos se acomodaram, ocuparam seus lugares e a maioria preferiu se sentar no chão. Os mais altos sentaram atrás e assim ninguém ficou na frente de ninguém, tudo perfeito.
– Ah, e você pode ir pra casa, que eu não vou mais precisar do carro hoje – disse o diretor ao motorista. E completou: – A condição pra eles autorizarem foi que eu ficasse e visse o jogo aqui na unidade, pra evitar qualquer problema.
– Bacana. E o senhor acha que eu posso ficar também? – perguntou o motorista.
– Claro, se você quiser.
– É que esse Flamengo tá jogando muita bola, doutor. E eu não queria perder essa festa, de jeito nenhum!
Há coisas nessa vida que, para serem descritas, precisariam de palavras especiais, virgens, palavras jamais usadas, ainda não inventadas, de modo a substituir as que já existem, mas que, diante da magnitude das ocasiões extraordinárias, perdem completamente o sentido.
O estádio, os times, a torcida, os cantos, as faixas, a tela enorme, as cores, a atmosfera, os gols, a partida em si e, claro, a vitória, tudo ali de repente se tornou mágico, uma magia que refletia a grandiosidade da condição humana e a pequenez de toda existência ainda submissa ao preconceito e à ignorância.
Aquela noite foi uma emoção só. Todos os demais, que fizeram como o motorista e ficaram pra assistir ao jogo juntos, e foram muitos, saíram dali com o coração sereno por compartilhar com aquelas pessoas simples os mesmos sentimentos.
Depois de acabado o jogo, depois de finda a festa que continuou ainda por muito tempo, na telinha e naquela sala de recepção, o Evanir se levantou e agradeceu ao delegado pela sensibilidade em permitir que os internos vissem o jogo e pudessem torcer pelo Flamengo. Solene em seu agradecimento, ao final todos aplaudiram e também fizeram uma saudação, repetindo cada um o obrigado, enquanto o porta voz dos detentos abraçava o chefe, que é como ele era chamado.
– Muito bem. Espero que vocês tenham gostado do jogo e da festa. Por um momento esta sala não tinha grades, isso aqui não era uma cadeia e por um momento todos nós estávamos no Rio de Janeiro, no Maracanã. Eu fiquei olhando pra fisionomia de vocês e digo que a história de vocês não pode acabar aqui. A liberdade é uma bênção de Deus e eu espero que, de hoje em diante, cada um faça de tudo, o possível e o impossível, pra cuidar e manter a sua liberdade como meta. O homem nasceu pra ser livre.
Aplaudido novamente, o delegado finalizou:
– E espero que vocês tenham sido pés-quentes porque, na final, eu quero todo mundo aqui de novo. Cada um no seu exato lugar, pra dar sorte e pra não quebrar a corrente. Parabéns pra todos nós, flamenguistas. E agora todo mundo de volta para as suas celas. Até amanhã e durmam bem.


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O Alemão


Na frente da loja de brinquedos eu procurava desesperadamente uma vaga de estacionamento. Eu sabia que a hora era imprópria, mas, mais do que a hora, o bairro também não ajudava muito, sendo aquele um emaranhado de ruas pequenas, com muito trânsito e, claro, poucas vagas.
Eu estava parado e, de dentro do carro, tentava avistar uma terra firme no meio daquele mar de carros. Eu percebia o movimento lá dentro da loja e via que estava bem cheia. Na calçada, em frente da porta, um menino negro, de uns 4 ou 5 anos, trocava gestos com um senhor. Digo gestos, porque eu não podia ouvir o que eles falavam um pro outro.
Aquilo definitivamente não me parecia com um bom diálogo, pelo menos não um diálogo normal. O menino estava bastante inquieto. Andava entre os quadrados de terra, alguns com plantas, pulando no tubo de ferro que fazia a margem do canteiro. Depois, parava, falava algo com o senhor e voltava a andar na calçada, entretido com tudo, menos com o movimento daquela loja de brinquedos tão almejada por mim, que queria comprar um simples caleidoscópio, mas que estava difícil de conseguir.
Já o homem era grande, branco, aquele branco avermelhado, típico das pessoas que estão sofrendo com o calor dos trópicos, de pouca familiaridade. Eu diria um típico alemão, muito comum nessas terras catarinenses, que trazem uma fisionomia austera, quase antipática, asseverando, sempre que possível, um ar de que eles estão sempre com a razão, que sabem de tudo, conhecem tudo e que são, enfim, melhores do que todo mundo.
Algumas vezes eu notava que o homem punha o dedo em riste enquanto falava com o menino, e aquilo só confirmava as minhas impressões de que aquela treta não estava nada legal. Mas mesmo assim, o curioso é que, embora pra mim ele fosse firme nas palavras, de onde eu observava parecia que o menino não dava muita bola pra ele e nem parecia se importar com o que estivesse rolando naquela calçada.
A minha vontade era sair do carro e já ir pra perto, pra defender o menino, nem sei lá de quê, mas era isso o que eu sentia. Então, como se fosse um sinal de Deus, surgiu uma vaga bem na esquina, pertinho de onde eu estava. Eu dei só uma ré e logo consegui estacionar.
Fui saindo do carro rápido e só me intrigava o que raios estaria acontecendo ali entre o alemão e o menino. Eu já estava pensando que, a depender do caso, eu ia chamar a polícia, o conselho tutelar ou mesmo alertar os pais do menino, pra denunciar as coisas horríveis que o homem devia estar dizendo pra criança.
Por outro lado, claro que eu não ia chegar logo com os pés no peito do senhor idoso, só porque ele falava daquele jeito com o menino. Então me contive pensando que, como eu não estava conseguindo ouvir o diálogo entre eles, devia chegar perto primeiro, pra depois averiguar a situação.
Então eu fiquei junto da vitrine da loja e, dali, fingia que estava olhando os brinquedos, vendo os preços e assim ia chegando mais próximo dos dois. Primeiro o timbre da voz do homem me surpreendeu. Ele falava mansinho, de uma forma doce com o menino, o que não combinava nem um pouco com o diálogo que eu havia imaginado. Aquilo já me deu uma desconcertada. Em seguida, percebi que o menino, quando falava, até ria pro homem, mostrando que, de um jeito ou de outro, ele estava bem à vontade com tudo aquilo. Eu disse baixinho um “ufa... menos mal”.
Mas as surpresas só estavam começando. O que veio a seguir foi surreal.
– Dudu, cuidado quando pisar nesse cano aí. Você pode cair nas plantas e se machucar. E pode machucar as plantinhas também – disse o alemão.
– Ô vô, eu não caio nada. Quem cai é você. Lá em casa você cai.
Como é? Vô? Eu virei estátua, como se estivesse numa brincadeira, e fiquei um tempo ali investigando um, depois o outro, até que o senhor me viu e falou um “boa tarde” automático. Não sei explicar, mas a sua voz tinha um quê de envergonhado com a situação, situação que eu ainda não tinha entendido totalmente.
– Não fala assim com o vovô, Dudu! – continuou o homem, todo carinhoso.
E o menino:
– Não vou cair não, vô. Eu pulo muito bem. Eu sou o Batman. E você é o Coringa da meleca. Você come meleca.
Tadinho do avô, gente. Que menino mal-educado, falando daquele jeito com o próprio avô!
– Assim o vô não vai te levar pra tomar sorvete. Lembra que a gente vai tomar sorvete daqui a pouco?
Eu nem quis ficar mais, ouvindo aquilo, porque já estava me dando vontade de dar uma bronca no guri. Então eu resolvi entrar na loja e embora não fosse o menino, e sim o velhinho que estava em apuros, eu acho que ele não estava correndo risco de vida e nem era preciso chamar a polícia ou o conselho tutelar. Pelo menos por enquanto.
No momento em que eu estava entrando na loja, uma família estava saindo. Duas mulheres vinham sorrindo, com uma senhora e uma adolescente ao lado delas, cheias de sacolas de brinquedos. Pela semelhança, dava pra notar que estavam todos juntos, incluindo o neto demônio e o avô, aquele anjo bacana e carinhoso.
Foi só o tempo de se encontrarem na calçada e a mãe disse pro menino:
– E aí Dudu, tudo bem? Ficou brincando com o vovô aqui fora? Não desobedeceu ao vô não né? Ficou bonzinho com ele? Hein, ficou, filhinho?
Aquelas palavras eram a prova de que o menino era uma peste e que não era nada bonzinho com o avô, pois até a mãe tinha ficado preocupada ao deixar os dois lá fora. Pelo jeito, ela já imaginava as respostas que ele costumava dar pro avô e isso era, obviamente, muito comum.
Eu me apressei em fechar a porta da loja atrás de mim pra não correr o risco de alguma palavra menos educada, ou menos contida, sair da minha boca. Mas a minha vontade era denunciar o menino, contar tudo pra mãe e salvar aquele pobre avôzinho alemão, tão amável com o neto.
No espaço de dez minutos, sei lá, até menos, eu estava saindo de um impulso de defesa de um menino negro, sendo mal tratado por um adulto branco, em plena calçada, em plena luz do dia, pra chegar numa realidade bem diferente, de um pobre avô passando maus bocados com um neto mal educado, cruel e sem coração.
É como dizem por aí, a realidade deu uma “virada de 360 graus”. Em 10 minutos.