Na frente da loja de brinquedos eu procurava
desesperadamente uma vaga de estacionamento. Eu sabia que a hora era imprópria,
mas, mais do que a hora, o bairro também não ajudava muito, sendo aquele um
emaranhado de ruas pequenas, com muito trânsito e, claro, poucas vagas.
Eu estava parado e, de dentro do carro, tentava
avistar uma terra firme no meio daquele mar de carros. Eu percebia o movimento
lá dentro da loja e via que estava bem cheia. Na calçada, em frente da porta,
um menino negro, de uns 4 ou 5 anos, trocava gestos com um senhor. Digo gestos,
porque eu não podia ouvir o que eles falavam um pro outro.
Aquilo definitivamente não me parecia com um bom
diálogo, pelo menos não um diálogo normal. O menino estava bastante inquieto. Andava
entre os quadrados de terra, alguns com plantas, pulando no tubo de ferro que
fazia a margem do canteiro. Depois, parava, falava algo com o senhor e voltava
a andar na calçada, entretido com tudo, menos com o movimento daquela loja de
brinquedos tão almejada por mim, que queria comprar um simples caleidoscópio,
mas que estava difícil de conseguir.
Já o homem era grande, branco, aquele branco
avermelhado, típico das pessoas que estão sofrendo com o calor dos trópicos, de
pouca familiaridade. Eu diria um típico alemão, muito comum nessas terras
catarinenses, que trazem uma fisionomia austera, quase antipática, asseverando,
sempre que possível, um ar de que eles estão sempre com a razão, que sabem de
tudo, conhecem tudo e que são, enfim, melhores do que todo mundo.
Algumas vezes eu notava que o homem punha o dedo
em riste enquanto falava com o menino, e aquilo só confirmava as minhas
impressões de que aquela treta não estava nada legal. Mas mesmo assim, o
curioso é que, embora pra mim ele fosse firme nas palavras, de onde eu observava
parecia que o menino não dava muita bola pra ele e nem parecia se importar com
o que estivesse rolando naquela calçada.
A minha vontade era sair do carro e já ir pra
perto, pra defender o menino, nem sei lá de quê, mas era isso o que eu sentia.
Então, como se fosse um sinal de Deus, surgiu uma vaga bem na esquina, pertinho
de onde eu estava. Eu dei só uma ré e logo consegui estacionar.
Fui saindo do carro rápido e só me intrigava o
que raios estaria acontecendo ali entre o alemão e o menino. Eu já estava
pensando que, a depender do caso, eu ia chamar a polícia, o conselho tutelar ou
mesmo alertar os pais do menino, pra denunciar as coisas horríveis que o homem
devia estar dizendo pra criança.
Por outro lado, claro que eu não ia chegar logo
com os pés no peito do senhor idoso, só porque ele falava daquele jeito com o
menino. Então me contive pensando que, como eu não estava conseguindo ouvir o
diálogo entre eles, devia chegar perto primeiro, pra depois averiguar a
situação.
Então eu fiquei junto da vitrine da loja e, dali,
fingia que estava olhando os brinquedos, vendo os preços e assim ia chegando
mais próximo dos dois. Primeiro o timbre da voz do homem me surpreendeu. Ele
falava mansinho, de uma forma doce com o menino, o que não combinava nem um
pouco com o diálogo que eu havia imaginado. Aquilo já me deu uma desconcertada.
Em seguida, percebi que o menino, quando falava, até ria pro homem, mostrando
que, de um jeito ou de outro, ele estava bem à vontade com tudo aquilo. Eu
disse baixinho um “ufa... menos mal”.
Mas as surpresas só estavam começando. O que
veio a seguir foi surreal.
– Dudu, cuidado quando pisar nesse cano aí. Você
pode cair nas plantas e se machucar. E pode machucar as plantinhas também –
disse o alemão.
– Ô vô, eu não caio nada. Quem cai é você. Lá em
casa você cai.
Como é? Vô? Eu virei estátua, como se estivesse
numa brincadeira, e fiquei um tempo ali investigando um, depois o outro, até
que o senhor me viu e falou um “boa tarde” automático. Não sei explicar, mas a
sua voz tinha um quê de envergonhado com a situação, situação que eu ainda não
tinha entendido totalmente.
– Não fala assim com o vovô, Dudu! – continuou o
homem, todo carinhoso.
E o menino:
– Não vou cair não, vô. Eu pulo muito bem. Eu sou
o Batman. E você é o Coringa da meleca. Você come meleca.
Tadinho do avô, gente. Que menino mal-educado,
falando daquele jeito com o próprio avô!
– Assim o vô não vai te levar pra tomar sorvete.
Lembra que a gente vai tomar sorvete daqui a pouco?
Eu nem quis ficar mais, ouvindo aquilo, porque
já estava me dando vontade de dar uma bronca no guri. Então eu resolvi entrar
na loja e embora não fosse o menino, e sim o velhinho que estava em apuros, eu
acho que ele não estava correndo risco de vida e nem era preciso chamar a
polícia ou o conselho tutelar. Pelo menos por enquanto.
No momento em que eu estava entrando na loja,
uma família estava saindo. Duas mulheres vinham sorrindo, com uma senhora e uma
adolescente ao lado delas, cheias de sacolas de brinquedos. Pela semelhança,
dava pra notar que estavam todos juntos, incluindo o neto demônio e o avô, aquele
anjo bacana e carinhoso.
Foi só o tempo de se encontrarem na calçada e a
mãe disse pro menino:
– E aí Dudu, tudo bem? Ficou brincando com o
vovô aqui fora? Não desobedeceu ao vô não né? Ficou bonzinho com ele? Hein,
ficou, filhinho?
Aquelas palavras eram a prova de que o menino
era uma peste e que não era nada bonzinho com o avô, pois até a mãe tinha
ficado preocupada ao deixar os dois lá fora. Pelo jeito, ela já imaginava as
respostas que ele costumava dar pro avô e isso era, obviamente, muito comum.
Eu me apressei em fechar a porta da loja atrás
de mim pra não correr o risco de alguma palavra menos educada, ou menos
contida, sair da minha boca. Mas a minha vontade era denunciar o menino, contar
tudo pra mãe e salvar aquele pobre avôzinho alemão, tão amável com o neto.
No espaço de dez minutos, sei lá, até menos, eu
estava saindo de um impulso de defesa de um menino negro, sendo mal tratado por
um adulto branco, em plena calçada, em plena luz do dia, pra chegar numa
realidade bem diferente, de um pobre avô passando maus bocados com um neto mal
educado, cruel e sem coração.
É como dizem por aí, a realidade deu uma “virada
de 360 graus”. Em 10 minutos.