sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O Piloto


De repente algumas buzinas surgiram no meio do trânsito. Olhei pelo espelho e notei que as ultrapassagens se davam de forma um tanto perigosa, quando o carro que corta a frente do outro só não causa um acidente porque o de trás freia bruscamente.
Era uma via secundária que dava acesso a uma principal, através de uma grande curva que juntava as várias pistas de maneira bem suave. Talvez por isso mesmo, pela facilidade de ter lugar pra todos mais à frente, foi que as buzinas soaram em protesto.
Pouco tempo depois, olhando com mais atenção, notei o culpado se aproximando. Ele vinha costurando aqui e ali, chuleando, fazendo bainha, dando ponto, bordando e até fazendo pence, fosse um alfaiate talentoso e não um motorista supostamente em ação.
Quando estava chegando mais perto o meu diagnóstico surgiu prontinho, como se fosse uma folha saindo da impressora. Embora não desse pra ver a fisionomia do motorista, por causa do reflexo dos vidros, o carro não deixava dúvida: era um cara babaca, um garotão, um filhinho de papai rastaquera que provavelmente ganhou aquele Mercedes azul reluzente de Natal e estava ali só pra infernizar os outros motoristas. Eu podia até dizer que era apenas um Mercedinho, já que era um carro pequeno e tal. Mas um Mercedes jamais pode ser citado no diminutivo, todos sabemos disso, nem mesmo quando se trata de um carro de tamanho normal, de cinco lugares, e de um azul metálico irreverente e estonteante.
Claro que ele me passou, continuando a cruzar as pistas arriscadamente, e foi fazendo isso através dos carros que iam à sua frente. Alguns buzinavam, outros tentavam ir atrás, mas ele seguia em sua sanha inabalável. Conforme os sinais iam fechando, eu notei que ele arriscava mudar de pista, pra tentar fugir do engarrafamento. Mas aí eu percebi que as pessoas não deixavam, não davam espaço pra ele entrar e ele era obrigado a parar. Isso devia estar deixando ele bem inconformado.
Quando o trânsito andava, pelo escoamento dos sinais que abriam, ele ia de novo exercendo a sua alfaiataria, sempre sendo babaca e levando buzinadas pelas ventas. Quando parava tudo de novo ele ficava ali, enjaulado, sem conseguir se desvencilhar. Na verdade, ninguém sabia pra onde ele ia, pois ora ele saía pela direita como se fosse fazer a conversão pra pista lateral e ora ele fazia o movimento oposto.
Foi assim até perto do Shopping, que é onde fica a minha saída. Ali, uma pequena alça, à esquerda das pistas, é a opção pra quem não vai pegar as pontes de saída da ilha. Naquele horário é meio um caos, porque todo o trânsito pesado vai justamente para as famosas pontes. Ou seja, “já vão tarde”, pensei eu com os meus espelhos retrovisores.
Aguardando na fila pra sair da grande avenida, quem eu vejo? O babaquinha, filhinho de papai. Isso mesmo. Bem pertinho de mim, cruzando fora do local permitido, claro, e forçando a barra pra entrar. Só que onde eu estava ele só ia conseguir passar quando eu andasse. E então eu fui bem tranquilo, calmamente, quando abriu o sinal, pra que ele entendesse que eu não estava ali pra dar passagem pra ele, nem eu e nem ninguém, pois cada um tem a sua vez, e todos devem respeitar a fila, oras!
Eu andei, ele andou, eu forcei o espaço pra ele não ter como furar a fila e ele ficou esperando que eu passasse. Aí, sim, ele entrou na rua do lado, a mesma que a minha, e fomos juntos até o outro sinal, ele atrás de mim.
Eu só queria ver a cara daquele bostinha. A cara de pamonha metido a esperto dele. Mas não dava, por mais que eu olhasse. Então, um carro do meu lado entrou numa garagem e ele veio pro lugar dele, até parar. Janela com janela, eu estava pronto pra tudo. Ou quase tudo.
Quando eu senti que ele estava abrindo os vidros, não tive dúvida, fiz o mesmo e fiquei pronto pra encarar o merdinha. Não era merdinha! Era um senhor, muito, muito idoso. Com óculos de grau forte, cara de professor de filosofia, cabelos poucos e branquinhos, sozinho e com um sorriso largo e simpático no rosto.
– E aí, piloto? – disse ele – Bora pisar até o túnel? Pode ir na frente que eu te alcanço logo logo!
Estupefato eu estava, estupefato eu continuei. Sem conseguir responder nada, só olhando pro velhinho.
Ele abriu mais ainda o sorriso, mostrou a tatuagem no braço e fez com as mãos um hang loose básico, ao mesmo tempo em que dizia “Fui!” e me cortava pela última vez, em direção ao túnel da baía sul.
Intuí, algum tempo depois, que as buzinadas agora deviam ser pra mim, ali parado. Engatei a primeira marcha e saí dali bem rapidinho, pisando forte até em casa.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Proparoxítonas


O esforço é hercúleo, na memória, quando o assunto é encadear palavras proparoxítonas. De empenho homérico, a tarefa nos leva a famosa ária La Donna è Mobile, que propicia bom ritmo ao texto. Mas as conjugações satíricas, sempre enfáticas, nos levam por caminhos côncavos, quiçá oníricos, próprios das fábulas que algum arquétipo supõe.
Por mim, pessoalmente, se la donna è mobile, o México é árido e a rúcula é ácida, assim como a bulha é azáfama. No caso do cântico, o palco, o úmido seria o antídoto, de modo efêmero, diante do míope e estético piso íngreme, mantido aí o sólido, pelo tático do ritmo que tem em toda sílaba.
O bárbaro é perceber, na tal música, o espaço cênico, em amálgama ao veio dramático, através da têmpera firme da câmara, que evidencia o trágico e eleva aos píncaros o epílogo, dentro do êxtase sinfônico resgatado do cálido. Na prática, é o passo lânguido do tempo, sempre inédito, que faz vítima o método, no compasso do som andrógino, histriônico, de cunho estético, no pulsar orfeônico do cantar intrínseco.
Pois vem do torácico, do âmago, o halo anímico da Dona volúvel. De tantas notas célebres e límpidas, que nem as fariam as máquinas. Lírica, a trama profética é ótima para as sátiras, com bônus linguísticos gramáticos, seja pros casos ilícitos ou ilógicos, no trânsito holístico das versões.
Inicia-se assim, pela melodia da famosa ária: A dona é excêntrica, dizem que é bígama, sempre etílica, quase se finda. A dona é esdrúxula, vive sabática, chora incólume sua tristeza. E por aí vai: A dona é esquálida, mora na cátedra, surta no rícino, pele de anjo. Moça do pântano, moça da ópera, moça do álibi, canto fleumático. Depois perdendo o controle: A dona é estática, figura gélida, lívida imagem, prosopopeia. Vem da sua gênese a crise asmática, levou do médico fálicas saudades. Do padre lúgubre, fala eucarística, postura flâmine, nada se espera. A seguir, recusando a compostura: Minha hermenêutica, veia semântica, é minha pródiga vicissitude. Ex-juiz déspota, órfão da ética, cômico servo, desmoronastes. De gola ávida, segue o seu féretro, pobre do vívido, Pégaso errante. E por fim, na panaceia mesmo: O tempo é cíclico, pega-nos ríspido, vento solário, cântaro a pleno. Piscina fétida, turva em seu líquido, letra simbólica homenageio. Mágico encéfalo, fruto de anáfase, parte-se em fíbulas, ossos do ofício. Abre essa abóbada, sinistro rábula, pensa analítico o mal do mundo. Efigie cínica, baiana quântica, baby telúrica, salto romântico.

Enfrentando ultimamente considerável batalha mental, daquelas que permanecem insistentes após ouvir um singelo trecho de música, não vi saída mínima, a não ser publicar. O caso é que eu fui abduzido pelos versos do Rigoletto, nem lembro bem onde tocou, e dali em diante me vi cantarolando por alguns longos dias o início dos seus versos, até porque só lembrava mesmo desses poucos.
La donna è mobile.
Assim, de tanto repetir, comecei a trocar as palavras, dando novos sentidos às surpreendentes frases que iam sendo criadas, rindo de mim mesmo e daquilo que eu cantava sozinho. Como as frases sem sentido foram ficando cada vez mais divertidas e mais desconexas, eu passei a explorar ainda mais o fator, digamos, proparoxítono delas, garimpando tudo que de mais estranho surgisse. Em certo momento, anotava as palavras que afloravam na minha indefesa e sofrida mente, e fazia isso até nos momentos mais soturnos e noturnos, fosse no papel, ou no celular mesmo, em suprema compulsividade.
Bem, só me cabe então agradecer aos valentes amigos que chegaram até aqui. Sem se cansar, sem me xingar, sem desistir... Talvez eu devesse acrescentar que o meu amor pela língua portuguesa, pela musicalidade contida nas palavras proparoxítonas e pelo ritmo de leitura que elas propiciam, foram os verdadeiros motivos da presente postagem. É isso ou pôr toda a culpa no Rigoletto!
E se alguém, aí do outro lado da tela, sentir suscitar algum amor similar, uma rima, uma frase melódica que seja, por favor, compartilhe comigo as suas proparoxítonas preferidas.
Primeiro: nunca te pedi nada!
Segundo: nunca, jamais te pediram isso!
Então, abraços.
Ou melhor, Alvíssaras!