De repente algumas buzinas surgiram no meio do
trânsito. Olhei pelo espelho e notei que as ultrapassagens se davam de forma um
tanto perigosa, quando o carro que corta a frente do outro só não causa um
acidente porque o de trás freia bruscamente.
Era uma via secundária que dava acesso a uma
principal, através de uma grande curva que juntava as várias pistas de maneira bem
suave. Talvez por isso mesmo, pela facilidade de ter lugar pra todos mais à frente,
foi que as buzinas soaram em protesto.
Pouco tempo depois, olhando com mais atenção,
notei o culpado se aproximando. Ele vinha costurando aqui e ali, chuleando,
fazendo bainha, dando ponto, bordando e até fazendo pence, fosse um alfaiate
talentoso e não um motorista supostamente em ação.
Quando estava chegando mais perto o meu
diagnóstico surgiu prontinho, como se fosse uma folha saindo da impressora.
Embora não desse pra ver a fisionomia do motorista, por causa do reflexo dos
vidros, o carro não deixava dúvida: era um cara babaca, um garotão, um filhinho
de papai rastaquera que provavelmente ganhou aquele Mercedes azul reluzente de
Natal e estava ali só pra infernizar os outros motoristas. Eu podia até dizer
que era apenas um Mercedinho, já que era um carro pequeno e tal. Mas um
Mercedes jamais pode ser citado no diminutivo, todos sabemos disso, nem mesmo
quando se trata de um carro de tamanho normal, de cinco lugares, e de um azul
metálico irreverente e estonteante.
Claro que ele me passou, continuando a cruzar as
pistas arriscadamente, e foi fazendo isso através dos carros que iam à sua
frente. Alguns buzinavam, outros tentavam ir atrás, mas ele seguia em sua sanha
inabalável. Conforme os sinais iam fechando, eu notei que ele arriscava mudar
de pista, pra tentar fugir do engarrafamento. Mas aí eu percebi que as pessoas
não deixavam, não davam espaço pra ele entrar e ele era obrigado a parar. Isso
devia estar deixando ele bem inconformado.
Quando o trânsito andava, pelo escoamento dos
sinais que abriam, ele ia de novo exercendo a sua alfaiataria, sempre sendo
babaca e levando buzinadas pelas ventas. Quando parava tudo de novo ele ficava
ali, enjaulado, sem conseguir se desvencilhar. Na verdade, ninguém sabia pra
onde ele ia, pois ora ele saía pela direita como se fosse fazer a conversão pra
pista lateral e ora ele fazia o movimento oposto.
Foi assim até perto do Shopping, que é onde fica
a minha saída. Ali, uma pequena alça, à esquerda das pistas, é a opção pra quem
não vai pegar as pontes de saída da ilha. Naquele horário é meio um caos,
porque todo o trânsito pesado vai justamente para as famosas pontes. Ou seja,
“já vão tarde”, pensei eu com os meus espelhos retrovisores.
Aguardando na fila pra sair da grande avenida, quem eu
vejo? O babaquinha, filhinho de papai. Isso mesmo. Bem pertinho de mim,
cruzando fora do local permitido, claro, e forçando a barra pra entrar. Só que
onde eu estava ele só ia conseguir passar quando eu andasse. E então eu fui bem
tranquilo, calmamente, quando abriu o sinal, pra que ele entendesse que eu não
estava ali pra dar passagem pra ele, nem eu e nem ninguém, pois cada um tem a
sua vez, e todos devem respeitar a fila, oras!
Eu andei, ele andou, eu forcei o espaço pra ele
não ter como furar a fila e ele ficou esperando que eu passasse. Aí, sim, ele
entrou na rua do lado, a mesma que a minha, e fomos juntos até o outro sinal,
ele atrás de mim.
Eu só queria ver a cara daquele bostinha. A cara
de pamonha metido a esperto dele. Mas não dava, por mais que eu olhasse. Então,
um carro do meu lado entrou numa garagem e ele veio pro lugar dele, até parar.
Janela com janela, eu estava pronto pra tudo. Ou quase tudo.
Quando eu senti que ele estava abrindo os
vidros, não tive dúvida, fiz o mesmo e fiquei pronto pra encarar o merdinha.
Não era merdinha! Era um senhor, muito, muito idoso. Com óculos de grau forte,
cara de professor de filosofia, cabelos poucos e branquinhos, sozinho e com um
sorriso largo e simpático no rosto.
– E aí, piloto? – disse ele – Bora pisar até o
túnel? Pode ir na frente que eu te alcanço logo logo!
Estupefato eu estava, estupefato eu continuei.
Sem conseguir responder nada, só olhando pro velhinho.
Ele abriu mais ainda o sorriso, mostrou a
tatuagem no braço e fez com as mãos um hang loose básico, ao mesmo tempo
em que dizia “Fui!” e me cortava pela última vez, em direção ao túnel da baía
sul.
Intuí, algum tempo depois, que as buzinadas
agora deviam ser pra mim, ali parado. Engatei a primeira marcha e saí dali bem
rapidinho, pisando forte até em casa.