sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O Rodo


Trata-se de um Centro de Tecnologia. Define-se como um local criado para apoiar o “ecossistema empresarial” e que se orgulha de ter a tal excelência, agrupando atividades de ensino e desenvolvimento nas áreas científica e tecnológica.
Criado para “dar suporte, capacitação e inspiração aos empreendedores”, o Centro está localizado em um amplo espaço, construído especialmente para estas atividades, com muito vidro, metal e concreto, e dotado de restaurantes, bares e estacionamento.
Eu estive ali somente por um par de horas, sendo a minha visita restrita aos segmentos que são exceção naquele complexo empresarial, a saber, a loja de artigos de jardinagem, a sorveteria e a barbearia. Nesse período, meu contato com a excelência do lugar não foi uma experiência simples e nem, digamos, das mais agradáveis.
Era um dia de verão e tinha chovido muito, um pouco antes de eu chegar. A entrada dos carros fica bem longe da área construída e há apenas um caminho para o estacionamento, que também fica distante. Os veículos passam pela lateral das lojas, sendo que tudo está localizado no mesmo pavimento térreo.
Eu estacionei lá longe e voltei para onde ficam as lojas por um caminho de pedestres, ladeado e protegido por uma pequena cerca. De um lado passavam os carros em direção ao estacionamento e, de outro, os pedestres, retornando ao complexo.
Assim que eu entrei na tal calçadinha notei um grupo parado mais à frente. Quando cheguei perto entendi que era uma tentativa de transpor uma enorme poça d’água, que estava bem no meio da passagem e que não dava alternativa aos pedestres. Algumas pessoas voltavam até o início da calçada e desviavam pela rua, dividindo perigosamente o espaço com os carros. Outros, que fisicamente podiam, simplesmente pulavam a cerca, que aliás era alta. Tudo pra não pisar na tal poça, um tanto extensa e consideravelmente funda.
Um dos funcionários do estacionamento, vendo que cada vez chegava mais gente e engarrafava a calçada, foi até lá e chamou o que parecia ser um chefe seu, ou talvez um gerente, tipo de operações tecnológicas e científicas, pra combinar com o lugar.
Assim que o funcionário lhe mostrou a poça e as pessoas ali paradas, cada uma tentando dar o seu jeito, o tal gerente emitiu o seu brilhante parecer a todos nós:
– Olha, isso é assim mesmo. Choveu e a chuva faz poça. Não tem nada que eu possa fazer.
Alguém até sugeriu um rodo, um simples rodo, um instrumento nada tecnológico, é verdade, mas que poderia muito bem ser útil pra desfazer aquela poça. O comentário foi apoiado por alguns outros, mas logo veio a resposta, um tanto desconcertante:
– Ah, mas a gente não tem rodo não. Esses materiais a gente não usa aqui não. Aqui é só coisa de tecnologia mesmo. Computador, essas coisas.
Eu estava de sapatilha, que é metade sandália Havaianas, ou seja, borracha e pano. Por isso, não pude deixar de sentir pena dos jovens que molharam os respectivos tênis e meias e que iam trabalhar ou estudar, ainda por longas horas.
Estava eu assim, caminhando no sentido das lojas e pensando no grande abismo existente entre as mais avançadas tecnologias e um rodo, quando, de repente, me deparei com um carro que fazia manobra pra entrar numa vaga. A motorista, por sua vez, discutia com o vigilante do estacionamento.
Todo cheio de cuidado, delicadamente – o quanto é possível ser –, o homem de uniforme preto e amarelo, boné e um monte de coisas penduradas no cinto, explicava à jovem motorista que aquela vaga, sinalizada com a inscrição 60+, era de uso restrito das pessoas com mais de 60 anos. E por isso ela ficava ali, bem na entrada, pra facilitar justamente o acesso destas pessoas.
Ele falava, apontava pra sinalização no chão da vaga, mostrava o caminho pro estacionamento correto e a menina nem dava bola, continuava estacionando e terminando de alinhar o carro na faixa. Assim que ela terminou, saiu do carro e disse singelamente ao vigilante.
– Eu estaciono onde eu quiser, tá entendido? E não vai ser um vigilante de merda que vai me dizer o que eu posso ou não posso fazer.
Bateu a porta com toda a força e foi-se embora, simplesmente. Faceiramente.
Não é que eu queira desfazer de toda essa cultura tecnológica que o mundo vem abraçando festivamente, cada dia mais. Não é que eu me incomode com essas propagandas de aplicativos variados, que apontam o benefício de o usuário não precisar falar com pessoa alguma, como se isso fosse um grande benefício. Não é que eu seja contra as facilidades que as tecnologias nos impõem sem nos consultar. Não é porque eu xingo o caixa eletrônico, toda vez que o equipamento não lê a minha digital e me obriga a fazer vários outros procedimentos pra um simples saque, quando foi o próprio banco que me obrigou a “optar” pela tal senha através da digital. Não é isso! O que me incomoda é justamente o fato de que essas tecnologias estão fazendo da gente pessoas piores, com atitudes deploráveis, desumanas, desrespeitosas. Estamos nos tornando maquinalmente insensíveis, tecnicamente babacas e prepotentes em excelência. Não sabemos mais nos comunicar e cada vez isso importa menos para as pessoas.
Enfim, ansioso por dar um fim rápido àquela tarde incômoda, mesmo assim, antes de ir embora eu decidi comer alguma coisa no barzinho perto. Tudo ali era eletrônico, evidentemente. O próprio pedido que eu fiz foi através de um terminal cheio de gráficos com os preços saltitando, com os combos, com imagens dos produtos e cores, muitas cores. Ah, e tinha ainda aquela plaquinha cheia de luzinhas, tipo chaveiro, que a gente leva pra mesa e ela nos avisa quando o pedido está pronto pra ser retirado no balcão.
Não deu um minuto sentado e uma goteira veio do teto bem em cima da minha mesa. Já estava tudo bem molhado em volta e eu desconfiei que aquilo já tinha algum tempo. Pensando se valia a pena mudar de lugar, tentei avaliar o teto, o chão e também a mesa ao lado, pra ver se tinha água.
Nessa hora um senhor se aproximou e passou a explicar que o projeto arquitetônico do empreendimento era algo inovador, pois abrigava vários bares e restaurantes dentro de uma mesma edificação, racionalizando assim as instalações elétricas e hidráulicas, a rede de internet e até o ar-condicionado, responsável pelo pinga-pinga.
Provavelmente ele me viu incomodado com a goteira, trocando de lugar, e veio dar as informações sobre o que estava acontecendo.
Ok, ele foi simpático e atencioso, o que diminuiu a minha sensação de arrogância exarada pelo lugar. Mas mesmo eu sendo receptivo àquele diálogo, mesmo ouvindo as suas considerações acerca da condensação da água e outras desculpas para a tal goteira, eu juro que enquanto ele fazia a sua explanação técnica eu estava a um passo de perguntar se ele sabia o que era um rodo. Sim, um simples rodo!
Um rodo pra calçada do estacionamento.
Um rodo pra goteira do barzinho.
Enfim, daquele início de tarde só ficaram duas certezas sobre o grandiloquente empreendimento:
Não ter educação, vá lá... Resta-nos lamentar a graça não alcançada.
Mas não ter um rodo? Aí já é demais!


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A Consulta


Toquei a campainha da entrada e esperei. O botão ficava ao lado de uma porta de vidro, toda pintada de branco. Do outro lado do interfone uma voz disse:
– Quem?
– Boa tarde.
– Quem?
– Meu nome é Anderson.
– De onde?
– É que eu queria desmarcar uma consulta.
– Qual o médico?
– É com o fisioterapeuta.
– Ele não está. Volte mais tarde.
– Não, eu só queria desmarcar minha consulta com ele. Consulta de avaliação.
– Ah, um minutinho.
Alguma coisa nesse momento me dizia que aquilo não ia ser tão fácil como eu pensava. Na verdade, eu tinha tentado desmarcar pelo telefone, mas foi tanta confusão que eu preferi ir pessoalmente. Ficava na esquina de casa a tal clínica e, afinal, é sempre melhor falar diretamente com as pessoas.
Esse foi o meu engano. Depois de entrar e tirar uma senha de atendimento, ainda esperei um bocado pra ser chamado, embora só estivesse eu sentado nos bancos da sala. Finalmente, a moça me chamou.
– Então, eu queria desmarcar uma avaliação de fisioterapia, que eu marquei na semana passada.
– Como assim, desmarcar?
– Desmarcar. Eu não virei na consulta.
– Qual o convênio?
– Você não quer o meu nome?
– Primeiro o convênio.
– Ok, é da empresa xis.
– Tem a sua carteirinha?
– Tenho, mas eu quero desmarcar somente. Eu liguei pra marcar e agora quero desmarcar.
– O senhor não gostou do fisioterapeuta?
– Eu nem o conheço!
– Então porque quer desmarcar? Alguém falou mal dele pro senhor?
– Não, foi só agenda mesmo. Eu consegui marcar com outro profissional pra mais perto, na próxima quarta, assim começo logo o tratamento. Estava marcado pra sexta-feira, aqui.
– Ok. Achei a ficha. Era na sexta, às 11 horas, né?
– Sim, isso mesmo.
– E o senhor quer marcar pra quando?
– Não. Não quero marcar nada não.
– E vai ficar sem fisioterapia?
– Eu marquei com outro profissional, em outra clínica.
– Entendo. E lá é melhor?
– Ainda nem fui lá. Então não tenho como saber.
– É mais perto da sua casa?
– Não. Essa aqui é bem mais perto. A outra é no continente, lá no bairro Estreito.
– Então vou deixar essa marcação aqui, pro caso de o senhor mudar de ideia.
– Não precisa. É melhor desmarcar pra liberar o horário.
– E quem o senhor quer botar no lugar da sua consulta?
– Não quero botar ninguém. Apenas vai ficar livre o horário, para o caso de alguém querer marcar.
– Mas tem outros horários livres. Não é preciso o senhor desmarcar a sua. Fala a verdade: o senhor não gostou do Cosminho, né?
– Como? Quem? Eu nem conheço ele. Eu fiz um agendamento pra consulta de avaliação e só estou querendo desmarcar. Só isso.
– Foi algum problema com o seu convênio? Ele não autorizou?
– Não.
– Algum conhecido já fez fisio aqui e falou pro senhor algo negativo sobre nós?
– Nããão.
– O senhor já fez algum tratamento com o Cosminho?
– Não!!! Claro que não... É só isso? Tá desmarcado?
– Tá quase. O senhor sabe qual o ônibus que passa no Estreito?
– Como? No Estreito? Ah, qualquer um que passe da ponte já serve.
– Mas o senhor mora aqui bem pertinho, né?
– Sim, moro.
– Agora eu fiquei curiosa. O senhor é vegano? Sabe, aquelas pessoas que não comem carne, ovo e leite?
– Ué, qual o problema de eu ser vegano?
– Eu sabia.
– Não, espera! Eu não sou vegano nada! Mas poderia ser, caramba!
– É que aqui a gente atende muita gente vegana.  E também gente que não come carne. Como é mesmo o nome desses? É...
– Chatos.
– Como?
– Nada. Não disse nada!
– Olha só, o senhor quer que eu ligue pro seu convênio? Quem sabe comigo eles autorizam?
– Não se preocupa, não. Obrigado pela atenção. Está desmarcado o meu horário? Eu vou indo então, tá?
– Se sua carteirinha estiver dentro da validade, eu consigo autorizar.
– Obrigado mais uma vez.
– Olha, não quero dizer nada não, mas aquelas clínicas lá do Estreito são umas drogas, hein? E tome muito cuidado com os seus pertences.
Eu saí de fininho, sem olhar pra trás, e fechando cuidadosamente a porta pesada de vidro.
Tentando botar as ideias em ordem, rememorando tudo o que tinha acontecido, aquele diálogo surreal – quem é esse Cosminho? –, eu apenas lembro que estava andando a esmo, no sentido de casa. As palavras da atendente soavam cada vez mais incrédulas no meu ouvido. Iam e voltavam, rodopiavam e se crispavam, abusando daquela singular entonação, igualmente surreal.
No fundo dessas lembranças começaram a emergir algumas buzinas. Estranho – eu pensei – essas buzinas mais atrapalham do que ajudam o trânsito. E foi então que um colegial surgiu do meu lado e me disse:
– Moço, moço, eles estão parados esperando você atravessar.
Aí eu me dei conta de que havia parado bem na frente de uma faixa de pedestres. Era eu que estava parando o trânsito. As buzinas, enfim, eram pra mim. E todos os olhares também.
Dei um sorriso sem graça e agradeci ao garoto, enquanto atravessava apressado.
Uma coisa é certa: nunca mais eu passo na frente daquela maldita clínica de psicoterapia, quer dizer, de fisioterapia. Nem pra desmarcar!