terça-feira, 31 de março de 2020

A Caminhonete


Um típico baiano. Era assim que as pessoas se referiam ao Atílio, lá no trabalho. Um cara muito de bom-humor, que nos intervalos do café ou antes das reuniões sempre chegava com uma anedota sobre o trabalho ou alguma figura ímpar que ele conhecia.
Muitas vezes os seus causos eram originários da sua terra-natal, a cidade de Serrinha. E de lá vinham as suas melhores e mais incríveis histórias, a maioria acontecida no período da sua adolescência, o período escolar, de onde ele pinçava os mais estranhos e peculiares personagens.
Sempre que a gente passava perto da sala de reunião e ouvia pessoas rindo, já sabia que o Atílio estava ali propondo alguma resenha engraçada. Uma dessas vezes ele veio falar da preocupação com a sua adorada caminhonete, uma Chevrolet D-20, ano 1985. Disse que estava preocupado porque ela ficava sempre na rua e que nunca teve qualquer problema, até que um dia ele foi abastecer e, no posto de gasolina, o atendente percebeu, e lhe mostrou, um pequeno amassado perto da fechadura.
Saindo do posto, o Atílio foi direto na oficina do seu amigo e mostrou a porta do carro e a fechadura. Deste diálogo surgiu a sua inquietude, uma vez que o mecânico apostou que aquele amassado se tratava de uma tentativa de roubo, pois alguém teria tentado abrir a sua querida D-20.
O homem ficou ensandecido com o diagnóstico. Disse que ia tomar as providências e que aquilo não ia ficar assim. Na verdade, a gente achou que ele ia chamar a polícia, fazer um Boletim de Ocorrência ou algo do gênero, mas, para surpresa de todos, ele foi atrás de outro tipo de medida, indicado pelo seu amigo, dono da oficina.
Então, um belo dia ele chegou no trabalho e nos contou sobre as suas intenções. Disse que o tal sujeito tinha uma loja de alarmes e outros acessórios de segurança para automóveis, tudo da melhor qualidade, de última geração, e que lhe prometeu deixar a sua D-20 super segura, inviolável.
Agora eu estou aqui, me lembrando do Atílio, ouvindo a sua voz repetindo aquele termo “inviolável”, com o seu sotaque baiano arrastado da Serrinha, e terminando com um largo sorriso e um “me aguarde”, como se prometesse a revanche ao filho-de-uma-égua que tentou roubar a sua caminhonete.
Depois do final de semana em que o serviço foi executado na sua D-20, em plena segunda-feira de trabalho, todos nós estranhamos quando o Atílio chegou cabisbaixo. De alguma maneira ele estava evitando as pessoas, parecendo incomodado até com acenos de longe dos colegas. Na empresa, cada um perguntava ao outro o que tinha acontecido com o nosso baiano, mas ninguém sabia a razão de ele estar assim, tão diferente.
Na hora do almoço, finalmente, ele resolveu se abrir com a gente. Contou que foi no seu Camilo no sábado cedinho, ele e o sobrinho de 12 anos. Durante o serviço o cara praticamente desmontou o painel e as duas portas da D-20, passando um monte de fios, instalando sirenes e luzes potentes, de um modo que qualquer coisa que batesse ou encostasse no carro, ia fazer disparar o alarme imediatamente.
O problema é que, perto do final do serviço – ele contou –, quando já estava quase encerrando o trabalho e só restava acabar de montar os frisos dos vidros elétricos, o sobrinho dele, ao passar na lateral do carro, que estava coladinho na parede da loja, sem querer bateu a porta da caminhonete. Na mesma hora seu Camilo deu um grito seco, apontando que a chave do carro tinha ficado em cima do banco e, ao fechar a porta, ele ficou hermeticamente trancado. E com a chave dentro.
– Vixe, gente, na mesma hora me deu um frio na barriga. Eu até senti um enjoo de tanta apertura no coração – revelou o pobre Atílio.
A solução, contudo, deitou por terra metade das esperanças de tornar a sua D-20 realmente inviolável, como queria ele. É que no minuto seguinte, diante do carro cheio de alarmes e trancas diversas, seu Camilo apareceu com um arame fino nas mãos e disse que ia resolver tudo. Daí, enfiou o arame pelo canto da borracha que emoldura as janelas, passou pelo lado de dentro do vidro e plim, abriu de novo a caminhonete.
– Seu Camilo, mas se o senhor abriu assim, na maior facilidade, como eu vou ficar tranquilo? Qualquer um vai poder abrir também quando a caminhonete estiver estacionada na minha rua. Tanto trabalho e o cabra que usar um arame desses vai conseguir abrir também, na moleza.
Depois de ouvir todas as explicações do seu Camilo e, pior, depois de pagar uma boa grana pelo serviço, o pobre do Atílio saiu da loja arrasado. E desconfiado, claro.
Assim que chegou em casa o sobrinho foi direto contar pra avó que tinha feito uma besteira e tinha trancado o carro do tio sem querer. Já a avó foi sentar perto do acanhado Atílio e ouviu pacientemente toda a narrativa dos périplos daquela manhã.
Ele contou tudo sobre o serviço realizado na loja, os alarmes e tal. Mas também falou das suas desconfianças sobre o risco de a caminhonete ser roubada, ou seja, se estaria segura depois de tudo o que aconteceu no final do trabalho.
Com a serenidade das mães, a senhora levantou, foi até o quarto e voltou com um saquinho nas mãos. Ao sentar no sofá, tirou um pequeno objeto e o amarrou com uma fita verde, dando uma laçada como se o estivesse preparando para ser pendurado.
Em seguida, pegou as mãos do Atílio dentro das suas, deu-lhe o objeto e disse:
– Meu filho, isso aqui é uma figa. Uma figa de guiné. Ela está enlaçada com a fita verde do meu orixá protetor. Eu peço que você a coloque afixada no carro, naquela aba que tem no teto do carro, o para-sol, mas por dentro da aba mesmo, de modo que as pessoas não consigam ver. Pronto, fica em Paz.
Na Bahia a gente costuma dizer que é mais fácil acreditar no que não se vê do que no que é visível. Talvez seja por isso que a calma sentida pelo amigo Atílio tenha contagiado a todos nós, no exato instante em que ouvimos o final daquela história.
Aliviados, fomos todos levar o baiano pra almoçar e, durante a tarde, cuidamos de levantar o astral dele. Uns diziam pra ele ficar tranquilo com os alarmes instalados. Mas outros apostavam que aquela figa era muito mais forte do que qualquer proteção eletrônica.
Só sei que, daquele dia em diante, sempre que podíamos, reverenciávamos a foto da sua querida caminhonete em cima da mesa e mandávamos lembranças para A Inviolável, que foi como a batizamos a partir de então.


quarta-feira, 25 de março de 2020

O Almoço


Ao chegar no restaurante o homem saudou de longe a mulher, logo reconhecida, e a chamou pra sentar em sua mesa. Ela, desconcertada, aceitou e veio pra perto. O garçom então lhe ajudou a tirar a toga e puxou a cadeira, oferecendo o lugar. Agradecendo a cortesia ela tomou nas mãos um copo d’água.
– O que o senhor ministro gostaria de pedir? – disse o maitre com um bloquinho na mão.
– A eminente ministra primeiro, por favor.
– Obrigado, excelência. Eu vou querer uma omelete de caviar com lagosta, com trufas brancas, um contrafilé de Wagyu com arroz à piamontese e, pra finalizar, sopa de barbatana de tubarão. O vinho vou deixar à escolha do eminente ministro.
– Eu vou querer o mesmo prato. Sim, e o vinho pode ser o meu de sempre, obrigado.
O maitre usou de toda a sua delicadeza pra comentar que o pedido poderia demorar um pouco. Enquanto isso fez um sinal com a cabeça para outro garçom que, no minuto seguinte, trouxe o vinho, enchendo as duas taças postas na mesa.
– O senhor ministro leu as argumentações? Digo, tomou conhecimento dos autos do processo?
– Sim, na verdade, preliminarmente, trata-se de algo um tanto frágil, do ponto de vista de envolver uma decisão drástica sobre o assunto. Não me parece, no conjunto das hermenêuticas constringentes, que a conduta do apontado nos autos seja objeto de qualquer reprovação ou reparação. O que a ministra infere da sua parte?
– Justamente. Ademais os fatos apontados, em sua gravidade, considerando a sua condição, digamos, fermentescível, não chega a quebrar o decoro do cargo, conforme apontado na petição.
– Mormente, se ainda tivesse o presidente postado algum vídeo pornográfico aludindo ao carnaval. Ou se tivesse feito gestos contra o seu maior opositor eleitoral, apontando armas de fogo para a sua cabeça. Se ao menos tivesse dado alguma entrevista se dizendo a favor da tortura, crime hediondo em todo o mundo.
– Concordo plenamente com o senhor ministro. Se se tratasse de uma pessoa envolvida diretamente com milícias e organizações criminosas, se tivesse sido flagrado com cocaína na sua comitiva, durante escala internacional, vá lá. Se ao acaso ele tivesse declarado que a ditadura deveria ter matado 30 mil e não somente prendê-los, ou mesmo se nesta mesma linha tivesse exaltado publicamente, em pleno congresso nacional, o nome do maior torturador da ditadura militar no país, aí, sim alguém poderia falar em falta de decoro ou em perder o cargo.
– Se a senhora ministra me permite eu ainda acrescentaria: se ao menos ele tivesse dito que uma colega deputada não merecia ser estuprada por ser feia, ou que uma jornalista teria feito uma matéria porque queria dar o furo, ou mesmo que usava a verba do auxílio moradia pra comer gente, bem, nessa condição poderíamos até dar prosseguimento ao processo.
– Exatamente. Se recentemente, através de pronunciamento nacional, ele tivesse declarado que é melhor sair de casa ou voltar ao trabalho e às escolas, porque essa pandemia é só uma gripezinha e que ele é atleta, seria algo condenável. Até se ele tivesse ido pra rua, contrariando as orientações médicas, e abraçado pessoas, com risco de agravar a epidemia, ou mesmo se tentasse publicar uma peça legal permitindo que patrões pudessem demitir ou cortar o salário dos empregados durante a maior crise de saúde do mundo moderno!
– Bem, pelo menos parece que nós dois estamos de acordo quanto a esse processo de impeachment, não é ministra? Então vamos comer, pois acho que já estão trazendo o nosso pedido.
No momento em que os pratos pousaram na mesa, um enorme estrondo irrompeu o restaurante. Um barulho ensurdecedor, um grande trovão irrompeu dentro daquele ambiente. Apavorados, os ministros tentaram entender a situação:
– Ministro, o que houve? Acabou a luz? O que foi esse estrondo? Eu não estou enxergando nada.
– Eu também não consigo ver nada. Acho que foi algum desabamento. Garçom? Por favor, alguém nos ajude aqui. A gente não está enxergando. Não podemos sair daqui sem ajuda.
Tentando se levantar, procurando os celulares e algum modo de sair dali, os dois juízes ouviram passos se aproximando.
– Boa tarde. Eu vim avisá-los da vossa cegueira. Vocês dois estão cegos a partir de agora – disse a voz.
– Como assim? Que brincadeira é essa? Eu sou juiz do Supremo.
– Quem é você? Sabe com quem está falando, senhor? Eu sou a juíza presidente. Ordeno que se apresente, imediatamente.
– Pois não – disse a voz – Era mesmo o que eu ia fazer. Eu sou o José. José Saramago. Estou incumbido de declarar a cegueira dos eminentes juízes aqui presentes. Uma cegueira total. Se mais dissesse, apenas iria asseverar que, ao contrário do narrado em livreto de minha própria autoria, vossa cegueira grassará por toda a eternidade.
A ministra soltou um grito seco e abafado.
O ministro tentou alcançar-lhe as mãos, em desespero.
– Mas... não é possível... eu não estou me sentindo bem...
– Mas... mas... escute... não pode ser... pelo que sei esse José Saramago já é falecido.
– Os senhores também. Era essa a complementação da minha mensagem  – disse a voz, com toda a calma.
– Maitre, maitre, por favor, socorro, alguém ajude.
Ouvindo outros passos se aproximando, a juíza apurou o ouvido e perguntou:
– Quem está aí? Maitre? Maitre, é você? José, pode chamar o maitre?
O maitre então se aproximou e explicou aos dois juízes que o senhor Saramago já havia ido embora. E que antes de ir avisou que uma outra pessoa estava vindo buscá-los, em breve. Que os dois deveriam vestir as suas togas e aguardar, pois não ia demorar quase nada.
Quando o maitre acabou de dizer estas palavras um novo trovão se ouviu, estonteante, magnânimo. Saindo de dentro de uma parede lateral, um homem alto se aproximou. Vestia um bem-cortado e impecável terno preto reluzente e trazia uma pequena tigela negra nas mãos.
Assim que viram o homem, todos os garçons e o próprio maitre, com grande terror, correram em disparada pela porta dos fundos, ganhando a cozinha e logo a rua.
– Venham comigo, excelências. Eu mesmo fiz questão de vir buscá-los pessoalmente.
– Ah, que bom. Muito obrigado! – disseram os dois cegos, ainda aterrorizados.
– Segurem nos meus braços e eu vou guiá-los com toda a calma e respeito. Só tomem cuidado pra não derrubar a minha bebida.
A tigela negra, levada com o devido equilíbrio pelo homem, falseou logo mais à frente e deixou cair um pouco do seu líquido.
Era sangue!
Mas ninguém notou.