quarta-feira, 25 de março de 2020

O Almoço


Ao chegar no restaurante o homem saudou de longe a mulher, logo reconhecida, e a chamou pra sentar em sua mesa. Ela, desconcertada, aceitou e veio pra perto. O garçom então lhe ajudou a tirar a toga e puxou a cadeira, oferecendo o lugar. Agradecendo a cortesia ela tomou nas mãos um copo d’água.
– O que o senhor ministro gostaria de pedir? – disse o maitre com um bloquinho na mão.
– A eminente ministra primeiro, por favor.
– Obrigado, excelência. Eu vou querer uma omelete de caviar com lagosta, com trufas brancas, um contrafilé de Wagyu com arroz à piamontese e, pra finalizar, sopa de barbatana de tubarão. O vinho vou deixar à escolha do eminente ministro.
– Eu vou querer o mesmo prato. Sim, e o vinho pode ser o meu de sempre, obrigado.
O maitre usou de toda a sua delicadeza pra comentar que o pedido poderia demorar um pouco. Enquanto isso fez um sinal com a cabeça para outro garçom que, no minuto seguinte, trouxe o vinho, enchendo as duas taças postas na mesa.
– O senhor ministro leu as argumentações? Digo, tomou conhecimento dos autos do processo?
– Sim, na verdade, preliminarmente, trata-se de algo um tanto frágil, do ponto de vista de envolver uma decisão drástica sobre o assunto. Não me parece, no conjunto das hermenêuticas constringentes, que a conduta do apontado nos autos seja objeto de qualquer reprovação ou reparação. O que a ministra infere da sua parte?
– Justamente. Ademais os fatos apontados, em sua gravidade, considerando a sua condição, digamos, fermentescível, não chega a quebrar o decoro do cargo, conforme apontado na petição.
– Mormente, se ainda tivesse o presidente postado algum vídeo pornográfico aludindo ao carnaval. Ou se tivesse feito gestos contra o seu maior opositor eleitoral, apontando armas de fogo para a sua cabeça. Se ao menos tivesse dado alguma entrevista se dizendo a favor da tortura, crime hediondo em todo o mundo.
– Concordo plenamente com o senhor ministro. Se se tratasse de uma pessoa envolvida diretamente com milícias e organizações criminosas, se tivesse sido flagrado com cocaína na sua comitiva, durante escala internacional, vá lá. Se ao acaso ele tivesse declarado que a ditadura deveria ter matado 30 mil e não somente prendê-los, ou mesmo se nesta mesma linha tivesse exaltado publicamente, em pleno congresso nacional, o nome do maior torturador da ditadura militar no país, aí, sim alguém poderia falar em falta de decoro ou em perder o cargo.
– Se a senhora ministra me permite eu ainda acrescentaria: se ao menos ele tivesse dito que uma colega deputada não merecia ser estuprada por ser feia, ou que uma jornalista teria feito uma matéria porque queria dar o furo, ou mesmo que usava a verba do auxílio moradia pra comer gente, bem, nessa condição poderíamos até dar prosseguimento ao processo.
– Exatamente. Se recentemente, através de pronunciamento nacional, ele tivesse declarado que é melhor sair de casa ou voltar ao trabalho e às escolas, porque essa pandemia é só uma gripezinha e que ele é atleta, seria algo condenável. Até se ele tivesse ido pra rua, contrariando as orientações médicas, e abraçado pessoas, com risco de agravar a epidemia, ou mesmo se tentasse publicar uma peça legal permitindo que patrões pudessem demitir ou cortar o salário dos empregados durante a maior crise de saúde do mundo moderno!
– Bem, pelo menos parece que nós dois estamos de acordo quanto a esse processo de impeachment, não é ministra? Então vamos comer, pois acho que já estão trazendo o nosso pedido.
No momento em que os pratos pousaram na mesa, um enorme estrondo irrompeu o restaurante. Um barulho ensurdecedor, um grande trovão irrompeu dentro daquele ambiente. Apavorados, os ministros tentaram entender a situação:
– Ministro, o que houve? Acabou a luz? O que foi esse estrondo? Eu não estou enxergando nada.
– Eu também não consigo ver nada. Acho que foi algum desabamento. Garçom? Por favor, alguém nos ajude aqui. A gente não está enxergando. Não podemos sair daqui sem ajuda.
Tentando se levantar, procurando os celulares e algum modo de sair dali, os dois juízes ouviram passos se aproximando.
– Boa tarde. Eu vim avisá-los da vossa cegueira. Vocês dois estão cegos a partir de agora – disse a voz.
– Como assim? Que brincadeira é essa? Eu sou juiz do Supremo.
– Quem é você? Sabe com quem está falando, senhor? Eu sou a juíza presidente. Ordeno que se apresente, imediatamente.
– Pois não – disse a voz – Era mesmo o que eu ia fazer. Eu sou o José. José Saramago. Estou incumbido de declarar a cegueira dos eminentes juízes aqui presentes. Uma cegueira total. Se mais dissesse, apenas iria asseverar que, ao contrário do narrado em livreto de minha própria autoria, vossa cegueira grassará por toda a eternidade.
A ministra soltou um grito seco e abafado.
O ministro tentou alcançar-lhe as mãos, em desespero.
– Mas... não é possível... eu não estou me sentindo bem...
– Mas... mas... escute... não pode ser... pelo que sei esse José Saramago já é falecido.
– Os senhores também. Era essa a complementação da minha mensagem  – disse a voz, com toda a calma.
– Maitre, maitre, por favor, socorro, alguém ajude.
Ouvindo outros passos se aproximando, a juíza apurou o ouvido e perguntou:
– Quem está aí? Maitre? Maitre, é você? José, pode chamar o maitre?
O maitre então se aproximou e explicou aos dois juízes que o senhor Saramago já havia ido embora. E que antes de ir avisou que uma outra pessoa estava vindo buscá-los, em breve. Que os dois deveriam vestir as suas togas e aguardar, pois não ia demorar quase nada.
Quando o maitre acabou de dizer estas palavras um novo trovão se ouviu, estonteante, magnânimo. Saindo de dentro de uma parede lateral, um homem alto se aproximou. Vestia um bem-cortado e impecável terno preto reluzente e trazia uma pequena tigela negra nas mãos.
Assim que viram o homem, todos os garçons e o próprio maitre, com grande terror, correram em disparada pela porta dos fundos, ganhando a cozinha e logo a rua.
– Venham comigo, excelências. Eu mesmo fiz questão de vir buscá-los pessoalmente.
– Ah, que bom. Muito obrigado! – disseram os dois cegos, ainda aterrorizados.
– Segurem nos meus braços e eu vou guiá-los com toda a calma e respeito. Só tomem cuidado pra não derrubar a minha bebida.
A tigela negra, levada com o devido equilíbrio pelo homem, falseou logo mais à frente e deixou cair um pouco do seu líquido.
Era sangue!
Mas ninguém notou.


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