sexta-feira, 26 de junho de 2020

A Enfermeira


Logo na entrada do auditório, Laís achou que tinha cruzado com um rosto conhecido. Porém, concentrada em sua participação na reunião daquele grupo de AA e NA, ela foi direto tomar assento na mesa, junto com os coordenadores e demais convidados da noite.

Laís era enfermeira e estava ali pra responder às perguntas dos participantes, relativas ao procedimento e atendimento dos pacientes em crise de overdose nas emergências dos hospitais públicos do Rio de Janeiro. Trabalhando em uma daquelas unidades médicas, a enfermeira tinha experiência de mais de 30 anos nesse ofício, atuando principalmente nos plantões noturnos, onde mais incidem estes tipos de ocorrência.

Enquanto e enfermeira falava, notou que o rapaz do rosto conhecido, de alguma forma, também a tinha reconhecido e acompanhava com atenção tudo o que ela dizia. Então, no final da reunião ele veio se apresentar devidamente.

– Eu acho que conheço a senhora.

– E eu estava pensando a mesma coisa. Mas é muita gente, então talvez não me recorde com precisão.

– Eu sou o paciente que a senhora mandou desamarrar.

De imediato, um filme começou a passar na cabeça de Laís. Foi em um plantão noturno, num hospital do subúrbio do Rio, que chegou uma ambulância dos Bombeiros no meio da madrugada. Trazia um rapaz que estava com um quadro de overdose e vinha todo amarrado com ataduras, o que dava bem a ideia do trabalho que o sujeito havia dado aos primeiros socorristas.

Ao vê-lo amarrado a enfermeira se lembrou de que, algumas semanas atrás, o mesmo paciente tinha dado entrada naquela mesma emergência e ela apenas pôde notar o estado em que ele chegou. Na ocasião ela só não o atendeu diretamente porque tinha acabado de trocar o turno e estava indo pro descanso. Mesmo assim ainda pôde ver os primeiros procedimentos dos plantonistas junto ao paciente.

Mas dessa vez o rapaz estava aos berros com o pessoal da ambulância, pedindo pra que o desamarrassem porque ele queria fazer xixi. Os homens que o carregavam na maca respondiam que ele fizesse nas calças mesmo, pois não podiam correr o risco de libertá-lo.

Assim que a Laís começou o atendimento, já sem a presença da equipe de socorro, foi logo preparar uma injeção qualquer, mesmo sabendo que, com aquela agitação toda do rapaz, ela talvez nem conseguisse aplicar. Ou seja, antes de qualquer coisa ele teria de ficar minimamente calmo. O problema é que o sujeito repetia o tempo todo que queria ser desamarrado, pois que estava desesperado pra fazer xixi e prometia que depois ia ficar tranquilo e ia obedecer a tudo o que os enfermeiros pedissem.

Laís olhou pra outra colega, tentando um acordo visual sobre o que fazer e, em seguida, explicou pro homem:

– Cara, olha só, eu vou te soltar. Mas tu não vai fazer nada de errado!

– Eu juro, moça, eu só quero fazer xixi mesmo.

– Se acontecer alguma coisa, tu vai me ferrar aqui no meu plantão. Olha lá, hein?

– Pelo amor de Deus, na moral mesmo, pode confiar em mim, a senhora vai ver.

Se tudo desse certo, como o combinado, ia ser o melhor dos mundos pros dois, porque só assim a enfermeira ia conseguir fazer o atendimento que ele necessitava, sem risco algum no uso da agulha e da seringa, como tinha de ser. Pensando assim, Laís mandou que desamarrassem o homem.

Quando voltou do banheiro o paciente já trazia outra fisionomia, calma e tranquila a esperar pela injeção. A enfermeira então, seguindo o protocolo, pediu ao rapaz que contasse o que tinha acontecido, as razões de ele ter sido trazido pela ambulância e, enquanto ele falava, ela fazia os demais procedimentos curativos.

Aliviados todos, paciente e paramédicos, parecia que tinham tirado um peso dos ombros, todos eles. Então a Laís se aproximou e puxou a conversa recorrente de que ele tinha uma alternativa para se livrar do vício, caso assim quisesse. E pôs nas suas mãos um papel, que ela sempre trazia no jaleco, com o endereço e o telefone do NA.

Quando terminou a frase do rapaz dizendo “eu sou aquele que a senhora desamarrou”, o filme todo daquele plantão já tinha passado na cabeça da enfermeira. O rapaz então agradeceu mais uma vez por ela ter confiado nele e se apressou em dizer que estava frequentando o “grupo” já há algum tempo e que era presença certa em muitas sessões desde então.

– Eu saí do hospital naquela manhã e nem fui pra casa. Fui direto pro endereço que você me deu. E fui a pé, porque eu não tinha nem o da passagem. Depois comecei a vir nesse grupo aqui porque é mais perto pra mim. E tem uma coisa que a senhora não sabe: depois daquele dia eu voltei um monte de vezes lá no hospital pra lhe agradecer e dizer que tinha ido pro NA, como a senhora me aconselhou. Ficava sentado na entrada principal pra ver se a senhora passava por ali e nada. Fiz isso muitas vezes, lhe procurando, mas como eu não sabia o seu nome, não tinha nem como perguntar a alguém. E também ninguém me deixava entrar pra ver se eu te achava. Teve um dia que eu fiquei me perguntando se a senhora existia mesmo, se não tinha sido um espírito bom que só veio me ajudar. Mas aí eu lembrava do bilhete e, poxa, não foi minha imaginação e nem espírito anda por aí escrevendo bilhete, né?

Laís ouvia aquilo tudo e lembrava que tantas vezes dava o endereço do NA pros pacientes, depois das crises e dos atendimentos, e jamais havia pensado que eles pudessem mesmo procurar ajuda. Talvez fosse porque, em certas ocasiões, é só uma minoria que ainda acredita em si mesma e em uma possível recuperação. Mas aquele rapaz, ali na sua frente, foi um que acreditou.

– Agora que eu sei o seu nome, vou ficar de olho na programação das reuniões e, da próxima vez que a senhora vier aqui falar, eu vou trazer um bolo pro nosso lanche. Combinado? Faço questão. Quem bom que eu encontrei a enfermeira de novo. Muito bom mesmo! Uma boa noite pra senhora.


O nome verdadeiro da Laís é Alyne. Ela é minha irmã caçula. De quem eu tenho o maior orgulho. Pela vida, pela luta, pela força. E me arrependo por terem sido poucas as vezes que disse isso pra ela.


sexta-feira, 19 de junho de 2020

A Batalha


A minha surpresa ao conhecer a história daquele time de futebol foi saber que o seu nome homenageava umas das batalhas da Guerra do Paraguai. Eu já tinha visto muitos nomes de times, os mais curiosos e interessantes, como o Jorge Wilstermann, da Bolívia, que reverencia um piloto de avião daquele país. Mas confesso que nunca ia supor que o Avaí, na pacata Florianópolis, não era uma alusão ao paraíso dos surfistas, o Hawaii, e sim àquela Guerra.

Conhecida como Ilha da Magia, a bela cidade que fica quase toda em uma ilha teria tudo a ver, se abrigasse um time batizado em alusão ao místico arquipélago, num contexto que combinaria bem com as bruxas que aqui habitavam e que, até hoje, fazem parte do forte imaginário folclorista de origem açoriana.

Enfim, um belo dia fui eu conhecer o estádio do Avaí, lá perto do aeroporto, no limite sudoeste da cidade. Era um jogo com o Flamengo e, como eu ia na qualidade de convidado de uns amigos avaianos, sabia que seria um jogo pra assistir contidamente e não vibrar, como efusivamente faz todo bom rubro-negro que se preze. Aliás, junto comigo, nesse jogo, estava também o meu sobrinho Flockinho, vascaíno até doer o nervo do dente.

A coisa que mais me chamou a atenção foi a cordialidade no entorno do estádio. As pessoas transitavam tranquilamente com as camisas dos dois times e ninguém se matava. Nem se xingava. Nem jogava nada um no outro. Nem prometia se pegar na saída. Alguns até bebiam juntos nos bares da região. Uma beleza. Um pouco assustado no início, logo fui me acostumando com aquilo e, embora eu nem estivesse com a camisa do Flamengo, mesmo assim pude desfrutar da amistosa atmosfera, que não era nada parecida com a do Maracanã em dia de clássico.

Antes do jogo, com os times perfilados, tocou o hino de Santa Catarina. Um momento desconfortável até para os manezinhos, aquilo foi coletivamente constrangedor porque, como era um hino que ninguém conhecia, as pessoas só mexiam a boca, pra fingir que cantavam, o que era ainda pior de assistir. Mas, tá, se era mesmo uma tradição secular, como parecia, e, se tem que tocar o hino, que toque.

Quando o jogo começou, tudo mudou. A torcida avaiana cantou o tempo todo e eu nunca vi um incentivo daqueles, assim, tão fanático. Só pra ilustrar, teve uma bola que o meio-campista chutou, perto do bico da área. Só que ela pegou um efeito contrário e, ao invés de tomar o rumo do gol, cruzou toda a área e foi sair lá perto da bandeirinha de escanteio. O interessante é que a torcida inteira gritou “huuuuuuu” como se a bola tivesse ido na trave, ou o goleiro tivesse feito uma defesa de capa de jornal. Eu olhei pro Flockinho, o Flockinho olhou pra mim e a gente não teve outra opção senão rir de lado e apontar o polegar pra baixo, com todo o cuidado pra ninguém ver.

Dali a pouco, eu reparei que as pessoas em volta diziam um mantra, toda vez que o time local perdia a bola. Cantando, incentivando o time ou mesmo calado em certos momentos, tão logo o adversário armava um contra-ataque os torcedores da casa iniciavam uma ladainha, baixinha, algo que eu não conseguia entender. Eu cheguei a me virar pra trás pra ouvir, mas não consegui. Aí perguntei:

– Consegue entender o que eles estão falando?

– Tio, é sai bruxa, sai bruxa, fora bruxa, voa bruxa, voa – disse meu sobrinho.

E aquilo só parava quando o Avaí recuperava a bola de novo. Na hora eu me lembrei do tempo que eu morava em Salvador e que todo mundo dizia que os massagistas dos times eram os responsáveis por fazer “o trabalho” pro jogo. O trabalho era uma oferenda aos Orixás em benefício do time, de uma boa vitória e pela segurança dos atletas. Ou seja, baiano faz trabalho, mas não faz bruxaria, pensei.

O tranquilo intervalo da partida dava direito a conhecer o banheiro do estádio que, inclusive, para meu maior espanto, tinha papel, sabonete líquido e, acredite, até espelho inteiro na parede, coisa que um dos amigos fez questão de me mostrar, dizendo um “olha isso aqui, carioca! Vê se tem isso na sua terra”. Enfim, dava pra beber um refri e comer um pastel, sem empurrões e sem o menor estresse. Uma beleza.

Quando voltamos aos nossos lugares notamos que estavam todos rindo de uma senhora postada ali, no limite da arquibancada. Ela falava e gesticulava com aquele indefectível sotaque manezinho, sempre apressado e interrogativo, bem parecido com o dos pescadores lá da Barra da Lagoa. Ou seja, quem não é manezinho jamais vai conseguir entender aquilo sem algum esforço. Ponto. E se o interlocutor está, digamos, nervoso, como era o caso da tal velhinha, aí mesmo que tudo vira música e a letra fica, infalivelmente, em segundo plano.

Pois bem, a tal senhora devia ter uns 80 anos. Estava toda vestida de Avaí, da cabeça aos pés, literalmente, e parecia uma daquelas figuras folclóricas conhecidas, que toda torcida tem. Ela saiu da sua cadeira cativa, que nesse estádio tem o nome do dono gravado nela, desceu os degraus da arquibancada e foi até ali, bem em frente do banco de reservas. Primeiro ela reclamou do time com os outros torcedores ali perto, como numa resenha esportiva normal. Depois, assim que percebeu o técnico entrando no campo, foi o coitado que teve de ouvir:

– Ô Chamusca, ô Chamusca. Vai chamuscar a tua mãe, seu fdp! Que time é esse, seu coisa? Tem que correr, tem que lutar. Isso aqui é uma batalha, rapaz. Não é um jogo não. Ouvisse? Tás compreendendo?

Ela levantava as mãos, gesticulava de todos os modos, olhava as pessoas em volta e inflamava o próprio discurso com sua entonação de matriarca e o gestual de porta bandeira.

O pobre do técnico, Péricles Chamusca, olhou pra arquibancada, reconheceu quem era, provavelmente lembrou de outras cenas iguais, e, por fim, deu um tchauzinho meio sem graça, antes de retornar pra sua área demarcada.

A audiência do entorno caiu na risada. Alguns tentando esconder o rosto, outros aplaudindo a coragem da velhinha e, uns poucos, na dúvida, ainda tentaram uma comedida advertência, reclamando do palavrão solto a plenos pulmões.

A velhinha se virou pro lado, de onde tinha vindo a censura, e não teve dó:

– Aqui eu falo o que eu quiser. Porque aqui eu estou na minha casa. Com a minha idade, eu sair de casa pra vir aplaudir um time ruim desse, com um técnico desses, todo chamuscado? Ah, tenha paciência!

No mesmo instante em que surgiam os aplausos, aumentando a adesão e o apoio à velhinha, ela se dirigia toda contente, de volta à sua cadeira, dando adeus por cima dos ombros, caminhando de costas para a sua plateia particular.

O jogo terminou empatado. A torcida do Avaí reclamou um monte do time, mas também fez muita festa durante e no final da peleja, ou melhor, batalha. Mais tarde, eu estava descendo a rampa, na saída do estádio, e lá estava a idosa torcedora, toda em sorrisos, com um grupo em volta dela, conversando animada. De vez em quando alguém passava e a cumprimentava, outros a abraçava, e muitos pediam fotos com ela. Sempre solícita, a avaiana não recusava nenhum fã – e não eram poucos – atendendo a todos com simpatia e bom-humor e fazendo as honras devidas.

– Como ela disse, ela está na casa dela – disse o Flockinho, apontando pra celebridade diante de nós.