sexta-feira, 19 de junho de 2020

A Batalha


A minha surpresa ao conhecer a história daquele time de futebol foi saber que o seu nome homenageava umas das batalhas da Guerra do Paraguai. Eu já tinha visto muitos nomes de times, os mais curiosos e interessantes, como o Jorge Wilstermann, da Bolívia, que reverencia um piloto de avião daquele país. Mas confesso que nunca ia supor que o Avaí, na pacata Florianópolis, não era uma alusão ao paraíso dos surfistas, o Hawaii, e sim àquela Guerra.

Conhecida como Ilha da Magia, a bela cidade que fica quase toda em uma ilha teria tudo a ver, se abrigasse um time batizado em alusão ao místico arquipélago, num contexto que combinaria bem com as bruxas que aqui habitavam e que, até hoje, fazem parte do forte imaginário folclorista de origem açoriana.

Enfim, um belo dia fui eu conhecer o estádio do Avaí, lá perto do aeroporto, no limite sudoeste da cidade. Era um jogo com o Flamengo e, como eu ia na qualidade de convidado de uns amigos avaianos, sabia que seria um jogo pra assistir contidamente e não vibrar, como efusivamente faz todo bom rubro-negro que se preze. Aliás, junto comigo, nesse jogo, estava também o meu sobrinho Flockinho, vascaíno até doer o nervo do dente.

A coisa que mais me chamou a atenção foi a cordialidade no entorno do estádio. As pessoas transitavam tranquilamente com as camisas dos dois times e ninguém se matava. Nem se xingava. Nem jogava nada um no outro. Nem prometia se pegar na saída. Alguns até bebiam juntos nos bares da região. Uma beleza. Um pouco assustado no início, logo fui me acostumando com aquilo e, embora eu nem estivesse com a camisa do Flamengo, mesmo assim pude desfrutar da amistosa atmosfera, que não era nada parecida com a do Maracanã em dia de clássico.

Antes do jogo, com os times perfilados, tocou o hino de Santa Catarina. Um momento desconfortável até para os manezinhos, aquilo foi coletivamente constrangedor porque, como era um hino que ninguém conhecia, as pessoas só mexiam a boca, pra fingir que cantavam, o que era ainda pior de assistir. Mas, tá, se era mesmo uma tradição secular, como parecia, e, se tem que tocar o hino, que toque.

Quando o jogo começou, tudo mudou. A torcida avaiana cantou o tempo todo e eu nunca vi um incentivo daqueles, assim, tão fanático. Só pra ilustrar, teve uma bola que o meio-campista chutou, perto do bico da área. Só que ela pegou um efeito contrário e, ao invés de tomar o rumo do gol, cruzou toda a área e foi sair lá perto da bandeirinha de escanteio. O interessante é que a torcida inteira gritou “huuuuuuu” como se a bola tivesse ido na trave, ou o goleiro tivesse feito uma defesa de capa de jornal. Eu olhei pro Flockinho, o Flockinho olhou pra mim e a gente não teve outra opção senão rir de lado e apontar o polegar pra baixo, com todo o cuidado pra ninguém ver.

Dali a pouco, eu reparei que as pessoas em volta diziam um mantra, toda vez que o time local perdia a bola. Cantando, incentivando o time ou mesmo calado em certos momentos, tão logo o adversário armava um contra-ataque os torcedores da casa iniciavam uma ladainha, baixinha, algo que eu não conseguia entender. Eu cheguei a me virar pra trás pra ouvir, mas não consegui. Aí perguntei:

– Consegue entender o que eles estão falando?

– Tio, é sai bruxa, sai bruxa, fora bruxa, voa bruxa, voa – disse meu sobrinho.

E aquilo só parava quando o Avaí recuperava a bola de novo. Na hora eu me lembrei do tempo que eu morava em Salvador e que todo mundo dizia que os massagistas dos times eram os responsáveis por fazer “o trabalho” pro jogo. O trabalho era uma oferenda aos Orixás em benefício do time, de uma boa vitória e pela segurança dos atletas. Ou seja, baiano faz trabalho, mas não faz bruxaria, pensei.

O tranquilo intervalo da partida dava direito a conhecer o banheiro do estádio que, inclusive, para meu maior espanto, tinha papel, sabonete líquido e, acredite, até espelho inteiro na parede, coisa que um dos amigos fez questão de me mostrar, dizendo um “olha isso aqui, carioca! Vê se tem isso na sua terra”. Enfim, dava pra beber um refri e comer um pastel, sem empurrões e sem o menor estresse. Uma beleza.

Quando voltamos aos nossos lugares notamos que estavam todos rindo de uma senhora postada ali, no limite da arquibancada. Ela falava e gesticulava com aquele indefectível sotaque manezinho, sempre apressado e interrogativo, bem parecido com o dos pescadores lá da Barra da Lagoa. Ou seja, quem não é manezinho jamais vai conseguir entender aquilo sem algum esforço. Ponto. E se o interlocutor está, digamos, nervoso, como era o caso da tal velhinha, aí mesmo que tudo vira música e a letra fica, infalivelmente, em segundo plano.

Pois bem, a tal senhora devia ter uns 80 anos. Estava toda vestida de Avaí, da cabeça aos pés, literalmente, e parecia uma daquelas figuras folclóricas conhecidas, que toda torcida tem. Ela saiu da sua cadeira cativa, que nesse estádio tem o nome do dono gravado nela, desceu os degraus da arquibancada e foi até ali, bem em frente do banco de reservas. Primeiro ela reclamou do time com os outros torcedores ali perto, como numa resenha esportiva normal. Depois, assim que percebeu o técnico entrando no campo, foi o coitado que teve de ouvir:

– Ô Chamusca, ô Chamusca. Vai chamuscar a tua mãe, seu fdp! Que time é esse, seu coisa? Tem que correr, tem que lutar. Isso aqui é uma batalha, rapaz. Não é um jogo não. Ouvisse? Tás compreendendo?

Ela levantava as mãos, gesticulava de todos os modos, olhava as pessoas em volta e inflamava o próprio discurso com sua entonação de matriarca e o gestual de porta bandeira.

O pobre do técnico, Péricles Chamusca, olhou pra arquibancada, reconheceu quem era, provavelmente lembrou de outras cenas iguais, e, por fim, deu um tchauzinho meio sem graça, antes de retornar pra sua área demarcada.

A audiência do entorno caiu na risada. Alguns tentando esconder o rosto, outros aplaudindo a coragem da velhinha e, uns poucos, na dúvida, ainda tentaram uma comedida advertência, reclamando do palavrão solto a plenos pulmões.

A velhinha se virou pro lado, de onde tinha vindo a censura, e não teve dó:

– Aqui eu falo o que eu quiser. Porque aqui eu estou na minha casa. Com a minha idade, eu sair de casa pra vir aplaudir um time ruim desse, com um técnico desses, todo chamuscado? Ah, tenha paciência!

No mesmo instante em que surgiam os aplausos, aumentando a adesão e o apoio à velhinha, ela se dirigia toda contente, de volta à sua cadeira, dando adeus por cima dos ombros, caminhando de costas para a sua plateia particular.

O jogo terminou empatado. A torcida do Avaí reclamou um monte do time, mas também fez muita festa durante e no final da peleja, ou melhor, batalha. Mais tarde, eu estava descendo a rampa, na saída do estádio, e lá estava a idosa torcedora, toda em sorrisos, com um grupo em volta dela, conversando animada. De vez em quando alguém passava e a cumprimentava, outros a abraçava, e muitos pediam fotos com ela. Sempre solícita, a avaiana não recusava nenhum fã – e não eram poucos – atendendo a todos com simpatia e bom-humor e fazendo as honras devidas.

– Como ela disse, ela está na casa dela – disse o Flockinho, apontando pra celebridade diante de nós.


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