por Adriano Vendimiatti, médico, cirurgião, nerd e escritor - Instagram: @dr.derrame
“Você não vai colocar Covid no atestado da minha mãe!” Gritou o rapaz no meio da emergência.
Parei de escrever e olhei para ele com a cara cansada, ainda sem saber se aquilo era uma pergunta ou uma afirmação. Tinha acabado de sentar ao balcão, para pegar os dados, quando ele me interrompeu. “Ela tinha febre há três dias” eu disse. “E tosse. Preciso colocar isso no atestado de óbito para poder coletar os exames.”
“Ah! Eu sabia! A minha mãe tinha câncer no pulmão, e não coronavírus!” Ele apontou o dedo na minha cara. “Isso tudo é politicagem! Vocês estão ganhando para fazer isso. Agora tudo é Covid! Mas comigo não!”
Suspirei, derrotado. Era tanta coisa para explicar que eu não sabia nem por onde começar. Olhei para seus olhos injetados de raiva e vi as lágrimas se formando. Esse é o maior dos meus problemas: não lido com as pessoas no seu normal. Geralmente elas estão no pior dia das suas vidas, quando alguém que elas amam morre ou está morrendo. Aquele rapaz cheio de ódio e desinformação tinha acabado de perder a mãe, e eu me tornei o foco da sua revolta. Bem, se ele não tinha cabeça, eu precisava ter o dobro.
“Ok, mas primeiro você pode se sentar?” Eu disse, e apontei para uma das cadeiras ao lado. Ele aceitou meio a contragosto e ficou me encarando. “Olha” continuei. “Eu não sei o que você leu, mas sua mãe não vai entrar em nenhuma estatística com isso.” e apontei para o atestado de óbito.
“Como assim?”
“É isso mesmo. O que eu coloco no atestado não significa nada para aqueles números que saem na televisão ou na internet. Para uma pessoa entrar na estatística, ela tem de ter o exame positivo, independente do motivo pelo qual ela foi enterrada. Você não viu que semana passada entraram mais 5 mortes na contagem da cidade porque os exames ficaram prontos?” Ele balançou a cabeça, acho que só pra me deixar continuar. “Então, é assim que funciona. Só com o exame pronto que a pessoa é contabilizada como vítima, pois o exame é um documento. Todos eles possuem um número e são registrados na vigilância sanitária. Justamente para impedir as fraudes.”
Ele ficou mudo por uns instantes. Mas logo retomou: “Mas por que você tá suspeitando de Covid para ela? A minha mãe tinha câncer e nem saía de casa! Como ela pode ter pego essa coisa?” Olhei para ele, triste. O que eu ia dizer podia machucar muito aquele rapaz. Ainda mais naquela hora.
“Moram quantas pessoas na sua casa?”
“Era eu, ela, minha esposa, meu filho e minha irmã. Por quê?”
“E nenhum de vocês saía?”
“Ah, eu tô trabalhando na fábrica ainda, e minha irmã sai sim” Ele pausou. “Mas ninguém em casa teve nada! Nem febre, nem tosse, nada!”
“Nada mesmo? Ninguém teve uma diarreia que durou uns dois dias, ou uma dor de cabeça mais forte, ou até um resfriadinho?”
Ele olhou para baixo, pensativo. “Minha irmã reclamou de enxaqueca, semana passada.”
“Pois é o suficiente. Tem quem pega e fica doente só um ou dois dias, e tem aqueles que não tem sintoma algum. O certo seria testar todos vocês.”
Ele olhou para mim com a cara de quem queria quebrar o meu nariz. “Você tá dizendo o quê? Que eu passei para ela essa merda? Que eu matei minha mãe? É isso?!”
“Calma. A gente nem sabe se ela tinha Covid. Pode ter sido uma pneumonia simples. Mas precisamos testar e descobrir. Se alguém pegou junto ou depois dela pode estar doente e ainda não saber.”
Ele murchou um pouco, provavelmente pensando no filho. Imaginei quantas emoções conflitantes ele deveria estar sentindo. Quis tocar o seu ombro, mesmo correndo o risco de apanhar.
“Olha,” eu disse. “Eu não consigo imaginar a sua dor nesse momento. Sei que era uma doença grave e vocês esperavam que cedo ou tarde isso ia acontecer. Mas é sua mãe, porra! Não tem como se preparar para isso.”
Ele desmontou. Começou a chorar copiosamente. Eu me senti um merda. “Eu não pude fazer nada por ela. Sua mãe já chegou muito cansada. Demos o que podíamos dar: conforto. Posso te garantir que ela não sofreu. Mas agora, como médico, eu preciso pensar naqueles que estão vivos. Em você, seu filho, sua esposa, e até as enfermeiras que cuidaram dela. Para testar todo mundo eu preciso testá-la primeiro, e para isso, eu preciso colocar no atestado ‘suspeita de Covid’. É só isso. Nada de politicagem, de aumentar número, nada. Eu não ganho um centavo a mais por isso. Pelo contrário, o trabalho é maior...”
“Mas e os 16 mil que o estado paga para cada morto?” Ele perguntou, ainda soluçando. “Eu li que as prefeituras tão colocando tudo quanto é morte como Covid para ganhar mais dinheiro.”
Mais um boato de WhatsApp. Nessas horas eu juro que quero socar a cara do Zukenberg. “Fake news da grossa. Por que iam dar um prêmio para quem tiver mais mortos? Para matarem mais? E mesmo que fosse por doente, hoje nós temos 500.000 casos confirmados de Covid no Brasil. Seria oito bilhões de reais! Não existe nenhum dinheiro em ter mais casos dessa doença, só gastos. O que existe são alguns prefeitos querendo é esconder os números para parecer que estão trabalhando. Em ano de eleição quem ia querer ter uma cidade com recorde de mortes?”
“Mas e as licitações? Sempre tem prefeito superfaturando na compra desses respiradores aí! Eu não confio em político.”
“Pois então confie em mim. Eu estou aqui, na sua frente, dando a cara a tapa, e te digo: ninguém me pediu para inflar número algum. Não faz sentido isso. Além do mais, o atestado de óbito é um documento delicado. Ele é muito, mas muito difícil mesmo de se forjar. Qualquer rasura e você tem de fazer outro, e não se pode sequer jogar fora o errado! Cada documento desses tem um número de série e tem de ser dado baixa em cartório. E o médico é responsável por todas as informações. Se descobrem que ele ocultou ou modificou alguma coisa é cadeia direto. Você acha mesmo que algum deles ia arriscar tudo só para ajudar um político corrupto? Mesmo que rolasse um dinheirão você não conseguiria médicos o suficiente.”
Ele nem estava ouvindo mais, o olhar perdido no horizonte. Percebi que me empolguei na explicação. O coitado não queria saber de nada daquilo.
“Mas doutor, “ele olhou pra mim mais uma vez. “Vai ser caixão lacrado?”
“Infelizmente vai.” Suspirei. “Isso agora é regra para todos os óbitos. O vírus sobrevive no corpo por dias depois da morte, tanto que todas as autópsias foram suspensas. Se uma pessoa com Covid for velada em caixão aberto ela vai soltar uma nuvem de vírus na sala, contaminando todo mundo. Aprendemos isso com relatos de outros países. É triste, mas tem de ser assim.”
“Mas então o senhor me deixa ver ela?”
Foi a primeira vez que ele me chamou de senhor. Não que eu precisasse disso. Mas dava para ver o quanto ele estava desesperado. O protocolo geral é “não”: ninguém pode ver os cadáveres pelo risco de contaminação. Tanto que isso gerou aquelas loucuras de abrirem caixões em Manaus no meio do enterro. Aquele rapaz não ia mais poder dizer adeus. É desumano deixar um filho se despedir da mãe olhando para a tampa de caixa de mogno. A pandemia roubou até nossa dignidade.
Mas há algumas exceções. O necrotério naquela hora só tinha ela, e o óbito tinha acabado de acontecer, o que diminui o risco da contaminação desde que ela não fosse tocada. Essa parte é difícil de controlar na maioria das vezes, mas ele parecia sereno o bastante para obedecer. Busquei para ele um avental descartável, gorro e luvas, e o ajudei a colocar. Ele tremia o tempo todo. Fomos a porta do necrotério.
“Está preparado?” Perguntei, antes de abrir.
“Não...” sussurrou ele.
“Ótimo” eu disse. “Quem ama, nunca está.”
E entramos.