segunda-feira, 27 de julho de 2020

Mortos Não Falam

por Adriano Vendimiatti, médico, cirurgião, nerd e escritor - Instagram: @dr.derrame


“Você não vai colocar Covid no atestado da minha mãe!” Gritou o rapaz no meio da emergência.

Parei de escrever e olhei para ele com a cara cansada, ainda sem saber se aquilo era uma pergunta ou uma afirmação. Tinha acabado de sentar ao balcão, para pegar os dados, quando ele me interrompeu. “Ela tinha febre há três dias” eu disse. “E tosse. Preciso colocar isso no atestado de óbito para poder coletar os exames.”

“Ah! Eu sabia! A minha mãe tinha câncer no pulmão, e não coronavírus!” Ele apontou o dedo na minha cara. “Isso tudo é politicagem! Vocês estão ganhando para fazer isso. Agora tudo é Covid! Mas comigo não!”

Suspirei, derrotado. Era tanta coisa para explicar que eu não sabia nem por onde começar. Olhei para seus olhos injetados de raiva e vi as lágrimas se formando. Esse é o maior dos meus problemas: não lido com as pessoas no seu normal. Geralmente elas estão no pior dia das suas vidas, quando alguém que elas amam morre ou está morrendo. Aquele rapaz cheio de ódio e desinformação tinha acabado de perder a mãe, e eu me tornei o foco da sua revolta. Bem, se ele não tinha cabeça, eu precisava ter o dobro.

“Ok, mas primeiro você pode se sentar?” Eu disse, e apontei para uma das cadeiras ao lado. Ele aceitou meio a contragosto e ficou me encarando. “Olha” continuei. “Eu não sei o que você leu, mas sua mãe não vai entrar em nenhuma estatística com isso.” e apontei para o atestado de óbito.

“Como assim?”

“É isso mesmo. O que eu coloco no atestado não significa nada para aqueles números que saem na televisão ou na internet. Para uma pessoa entrar na estatística, ela tem de ter o exame positivo, independente do motivo pelo qual ela foi enterrada. Você não viu que semana passada entraram mais 5 mortes na contagem da cidade porque os exames ficaram prontos?” Ele balançou a cabeça, acho que só pra me deixar continuar. “Então, é assim que funciona. Só com o exame pronto que a pessoa é contabilizada como vítima, pois o exame é um documento. Todos eles possuem um número e são registrados na vigilância sanitária. Justamente para impedir as fraudes.”

Ele ficou mudo por uns instantes. Mas logo retomou: “Mas por que você tá suspeitando de Covid para ela? A minha mãe tinha câncer e nem saía de casa! Como ela pode ter pego essa coisa?” Olhei para ele, triste. O que eu ia dizer podia machucar muito aquele rapaz. Ainda mais naquela hora.

“Moram quantas pessoas na sua casa?”

“Era eu, ela, minha esposa, meu filho e minha irmã. Por quê?”

“E nenhum de vocês saía?”

“Ah, eu tô trabalhando na fábrica ainda, e minha irmã sai sim” Ele pausou. “Mas ninguém em casa teve nada! Nem febre, nem tosse, nada!”

“Nada mesmo? Ninguém teve uma diarreia que durou uns dois dias, ou uma dor de cabeça mais forte, ou até um resfriadinho?”

Ele olhou para baixo, pensativo. “Minha irmã reclamou de enxaqueca, semana passada.”

“Pois é o suficiente. Tem quem pega e fica doente só um ou dois dias, e tem aqueles que não tem sintoma algum. O certo seria testar todos vocês.”

Ele olhou para mim com a cara de quem queria quebrar o meu nariz. “Você tá dizendo o quê? Que eu passei para ela essa merda? Que eu matei minha mãe? É isso?!”

“Calma. A gente nem sabe se ela tinha Covid. Pode ter sido uma pneumonia simples. Mas precisamos testar e descobrir. Se alguém pegou junto ou depois dela pode estar doente e ainda não saber.”

Ele murchou um pouco, provavelmente pensando no filho. Imaginei quantas emoções conflitantes ele deveria estar sentindo. Quis tocar o seu ombro, mesmo correndo o risco de apanhar.

“Olha,” eu disse. “Eu não consigo imaginar a sua dor nesse momento. Sei que era uma doença grave e vocês esperavam que cedo ou tarde isso ia acontecer. Mas é sua mãe, porra! Não tem como se preparar para isso.”

Ele desmontou. Começou a chorar copiosamente. Eu me senti um merda. “Eu não pude fazer nada por ela. Sua mãe já chegou muito cansada. Demos o que podíamos dar: conforto. Posso te garantir que ela não sofreu. Mas agora, como médico, eu preciso pensar naqueles que estão vivos. Em você, seu filho, sua esposa, e até as enfermeiras que cuidaram dela. Para testar todo mundo eu preciso testá-la primeiro, e para isso, eu preciso colocar no atestado ‘suspeita de Covid’. É só isso. Nada de politicagem, de aumentar número, nada. Eu não ganho um centavo a mais por isso. Pelo contrário, o trabalho é maior...”

“Mas e os 16 mil que o estado paga para cada morto?” Ele perguntou, ainda soluçando. “Eu li que as prefeituras tão colocando tudo quanto é morte como Covid para ganhar mais dinheiro.”

Mais um boato de WhatsApp. Nessas horas eu juro que quero socar a cara do Zukenberg. “Fake news da grossa. Por que iam dar um prêmio para quem tiver mais mortos? Para matarem mais? E mesmo que fosse por doente, hoje nós temos 500.000 casos confirmados de Covid no Brasil. Seria oito bilhões de reais! Não existe nenhum dinheiro em ter mais casos dessa doença, só gastos. O que existe são alguns prefeitos querendo é esconder os números para parecer que estão trabalhando. Em ano de eleição quem ia querer ter uma cidade com recorde de mortes?”

“Mas e as licitações? Sempre tem prefeito superfaturando na compra desses respiradores aí! Eu não confio em político.”

“Pois então confie em mim. Eu estou aqui, na sua frente, dando a cara a tapa, e te digo: ninguém me pediu para inflar número algum. Não faz sentido isso. Além do mais, o atestado de óbito é um documento delicado. Ele é muito, mas muito difícil mesmo de se forjar. Qualquer rasura e você tem de fazer outro, e não se pode sequer jogar fora o errado! Cada documento desses tem um número de série e tem de ser dado baixa em cartório. E o médico é responsável por todas as informações. Se descobrem que ele ocultou ou modificou alguma coisa é cadeia direto. Você acha mesmo que algum deles ia arriscar tudo só para ajudar um político corrupto? Mesmo que rolasse um dinheirão você não conseguiria médicos o suficiente.”

Ele nem estava ouvindo mais, o olhar perdido no horizonte. Percebi que me empolguei na explicação. O coitado não queria saber de nada daquilo.

“Mas doutor, “ele olhou pra mim mais uma vez. “Vai ser caixão lacrado?”

“Infelizmente vai.” Suspirei. “Isso agora é regra para todos os óbitos. O vírus sobrevive no corpo por dias depois da morte, tanto que todas as autópsias foram suspensas. Se uma pessoa com Covid for velada em caixão aberto ela vai soltar uma nuvem de vírus na sala, contaminando todo mundo. Aprendemos isso com relatos de outros países. É triste, mas tem de ser assim.”

“Mas então o senhor me deixa ver ela?”

Foi a primeira vez que ele me chamou de senhor. Não que eu precisasse disso. Mas dava para ver o quanto ele estava desesperado. O protocolo geral é “não”: ninguém pode ver os cadáveres pelo risco de contaminação. Tanto que isso gerou aquelas loucuras de abrirem caixões em Manaus no meio do enterro. Aquele rapaz não ia mais poder dizer adeus. É desumano deixar um filho se despedir da mãe olhando para a tampa de caixa de mogno. A pandemia roubou até nossa dignidade.

Mas há algumas exceções. O necrotério naquela hora só tinha ela, e o óbito tinha acabado de acontecer, o que diminui o risco da contaminação desde que ela não fosse tocada. Essa parte é difícil de controlar na maioria das vezes, mas ele parecia sereno o bastante para obedecer. Busquei para ele um avental descartável, gorro e luvas, e o ajudei a colocar. Ele tremia o tempo todo. Fomos a porta do necrotério.

“Está preparado?” Perguntei, antes de abrir.

“Não...” sussurrou ele.

“Ótimo” eu disse. “Quem ama, nunca está.”

E entramos.


terça-feira, 14 de julho de 2020

O Lustre


Nem sempre era apenas uma opção minha comprar ingressos para a galeria. Claro que eles eram os mais baratos do teatro e a visão não era lá essas coisas, uma vez que a distância até o palco era considerável. É verdade também que o público ficava pertinho do teto e alguns até sentiam vertigem ao cruzar o corredor até chegar ao seu assento.

Mas, como tudo na vida, a galeria tinha a sua compensação: a proximidade com o lustre, o magnífico lustre do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Sentar lá no alto e poder ficar olhando aquele lustre, suas nuances, os cristais que o compõem, seu brilho e sua imponência, quase valia um outro ingresso.

Foi numa segunda-feira. Assim que eu tirei da pilha o primeiro jornal, dos três que eu lia diariamente por conta do ofício de assessor de comunicação, notei uma foto familiar na primeira página. Rápido, fui direto na página onde estava a matéria e me deparei com a mesma imagem da capa, ainda maior, ilustrando a notícia de que naquela semana estaria acontecendo a limpeza do lustre do Teatro Municipal, uma rotina cuja periodicidade se dava em torno de cinco anos.

Na mesma hora eu disse comigo: eu tenho que ver isso de perto. E foi então que eu comecei e avaliar as possibilidades da empreitada. Nenhum colega tinha chegado ainda, pois era bem cedo, e eu não tinha ninguém com quem dividir a ansiedade, tampouco buscar alternativas.

Li a matéria toda. E depois reli. Tinha os dados históricos do teatro, o número de lâmpadas, onde foi construído o lustre, os cristais, os nomes dos artistas autores da peça e até informações sobre as empresas responsáveis pelo transporte do lustre da Inglaterra até o Brasil.

No final da reportagem tinha o telefone do teatro e, quando eu me dei conta, já tinha ligado e uma moça atendeu do outro lado:

– Municipal, imprensa.

– Bom dia. Eu não sei por onde começar, mas eu gostaria de saber como eu posso ver a limpeza do lustre do teatro.

– Quem está falando? Olha o trabalho de limpeza não é aberto ao público, entende? Só mesmo o pessoal credenciado é que tem autorização. Nem os jornalistas têm acesso ao local.

– Pois é, eu até sou jornalista. Achei que poderia conseguir, mesmo por pouco tempo, só pra ver o lustre de pertinho.

– Você é de qual jornal?

– Não. Eu não trabalho em jornal não. Trabalho no Iphan, aqui mesmo no Rio.

– Poxa, mas você é do Iphan? Do Patrimônio Histórico? Rapaz, tem um técnico de vocês aqui que vai acompanhar o trabalho. Como o Teatro é tombado por vocês, e o lustre também, ele foi chamado pra vistoriar. Ele até já deve estar por aqui.

Diante do meu silêncio, e da minha vibração, que ela não podia ver, a moça continuou:

– Faz o seguinte, hoje a gente só vai mesmo descer o lustre do teto. Amanhã é que vai começar a manutenção e, em seguida, a limpeza geral. Então, é melhor você vir aqui amanhã e quando chegar na portaria manda me chamar, eu sou a Adriana. Combinado?

Eu nem me dei conta do tombamento, nada, nem dos técnicos que estariam acompanhando, tampouco da carteirada involuntária que eu tinha acabado de dar. Mas na manhã seguinte eu sabia certinho o que ia fazer.

A Adriana me recebeu como o jornalista do Iphan e dali em diante minha estada foi bem mais fácil. Ela me apresentou alguns funcionários do teatro e estes me explicaram os procedimentos para a descida, o acesso dos técnicos e tudo o mais sobre a manutenção do tal lustre principal. Entendi que o trabalho dessa vez exigia não só limpeza, mas também troca de materiais, por isso algumas fileiras de cadeiras foram retiradas da plateia e o lustre ficou no nível do chão do teatro, o que aumentava exponencialmente a sua grandeza perto dos mortais, como eu.

Rodeado por escadas, o lustre parecia estar em um salão de beleza. As pessoas circulavam por ele com flanelas, fios, alicates, bocais, lâmpadas, arames de todos os calibres, líquidos em aspersores de vários formatos e cores, numa organizada desordem que, para os mais desatentos, beirava o caos.

A certa altura houve uma pausa. Aquela equipe se afastou e chegaram outras pessoas como se fossem avaliar o que foi feito até ali. Apontavam pra todos os lados, forçavam partes específicas da estrutura, verificavam as amarras, os arames e suas consistências e, enfim, analisavam todos os detalhes. Um dos técnicos então, afastou duas ou três colunas de lâmpadas e passou pra dentro do lustre, fazendo o mesmo trabalho, agora agachado, e pelo lado onde ficavam todos os conectores, as partes invisíveis do candelabro.

Na mesma hora a Adriana chegou do meu lado e perguntou se eu estava gostando do que via. Eu não consegui dizer nada, e nem precisei, porque ela leu meus pensamentos e perguntou se eu queria entrar. Simplesmente assim, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Muitas vezes na vida eu sonhei com essa cena, que até hoje eu me pergunto se vivi de verdade. Uma coisa deslumbrante, indescritível, foi a minha sensação ao estar dentro do imenso lustre. Todo coberto de lâmpadas, de glórias, testemunha dos maestros, dos músicos, dos bailarinos, os tenores e as sopranos, enfim, ele presenciou tantos dos aplausos que guardo na memória, retumbantes, permanentes e ao mesmo tempo insuficientes, diante da magnitude artística daqueles que por ali passaram.

Tudo era breu além daquela cortina de luzes. Lá fora era o espaço, o cosmos. O brilho forçando os olhos me impedia ver depois do incandescente. Não havia nada. Apenas a gravidade daquele astro que me garantia o chão.

Dois dias depois eu estava lá novamente. Desta vez pra testemunhar sua subida aos céus. Lentamente. Como um balão. Sob o cuidado de muitos anjos que guardavam o seu caminho. E ao chegar ao teto, em agradecimento, o lustre propôs uma pequena travessura e rodopiou vagaroso, em semicírculo, até se encaixar solene no topo central da sua galáxia, fazendo com que aquele cair da tarde fosse ainda mais inesquecível pra todos nós, ali presentes.

Inevitavelmente, todas as vezes que voltei àquela famosa galeria não podia deixar de cumprir um solitário ritual, fosse com um breve aceno de cabeça, um cumprimento ou uma reverência em direção ao lustre imponente.


Na cidade em que vivo atualmente não tem ópera, não tem balé, não tem música clássica, não tem um lustre como aquele. Ao longo de sua existência, esta cidade jamais foi capaz de possuir um teatro próprio para abrigar esse tipo de recitativo lírico. É uma pena para quem conhece. Mas é muito mais triste para quem nunca viu uma ópera na vida.

Talvez este seja então um bom motivo pra esta crônica ser publicada justamente hoje. Neste dia 14 de julho de 2020, tanto aquele famoso lustre como o teatro que o abriga completam 111 anos de existência.

Que os maestros, os músicos, os bailarinos, os tenores e as sopranos desta minha cidade possam ser anunciadores de um novo mundo, os profetas da música, os videntes do teatro e da dança. Milênios, milênios no ar.

Nessa cidade submersa, arqueólogos então tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de partituras, canções em poemas, árias, sinfonias. Vestígios de estranha civilização.

Não se afobe, não!