Nem sempre era apenas uma opção minha comprar ingressos para a galeria. Claro que eles eram os mais baratos do teatro e a visão não era lá essas coisas, uma vez que a distância até o palco era considerável. É verdade também que o público ficava pertinho do teto e alguns até sentiam vertigem ao cruzar o corredor até chegar ao seu assento.
Mas, como tudo na vida, a galeria tinha a sua compensação: a proximidade com o lustre, o magnífico lustre do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Sentar lá no alto e poder ficar olhando aquele lustre, suas nuances, os cristais que o compõem, seu brilho e sua imponência, quase valia um outro ingresso.
Foi numa segunda-feira. Assim que eu tirei da pilha o primeiro jornal, dos três que eu lia diariamente por conta do ofício de assessor de comunicação, notei uma foto familiar na primeira página. Rápido, fui direto na página onde estava a matéria e me deparei com a mesma imagem da capa, ainda maior, ilustrando a notícia de que naquela semana estaria acontecendo a limpeza do lustre do Teatro Municipal, uma rotina cuja periodicidade se dava em torno de cinco anos.
Na mesma hora eu disse comigo: eu tenho que ver isso de perto. E foi então que eu comecei e avaliar as possibilidades da empreitada. Nenhum colega tinha chegado ainda, pois era bem cedo, e eu não tinha ninguém com quem dividir a ansiedade, tampouco buscar alternativas.
Li a matéria toda. E depois reli. Tinha os dados históricos do teatro, o número de lâmpadas, onde foi construído o lustre, os cristais, os nomes dos artistas autores da peça e até informações sobre as empresas responsáveis pelo transporte do lustre da Inglaterra até o Brasil.
No final da reportagem tinha o telefone do teatro e, quando eu me dei conta, já tinha ligado e uma moça atendeu do outro lado:
– Municipal, imprensa.
– Bom dia. Eu não sei por onde começar, mas eu gostaria de saber como eu posso ver a limpeza do lustre do teatro.
– Quem está falando? Olha o trabalho de limpeza não é aberto ao público, entende? Só mesmo o pessoal credenciado é que tem autorização. Nem os jornalistas têm acesso ao local.
– Pois é, eu até sou jornalista. Achei que poderia conseguir, mesmo por pouco tempo, só pra ver o lustre de pertinho.
– Você é de qual jornal?
– Não. Eu não trabalho em jornal não. Trabalho no Iphan, aqui mesmo no Rio.
– Poxa, mas você é do Iphan? Do Patrimônio Histórico? Rapaz, tem um técnico de vocês aqui que vai acompanhar o trabalho. Como o Teatro é tombado por vocês, e o lustre também, ele foi chamado pra vistoriar. Ele até já deve estar por aqui.
Diante do meu silêncio, e da minha vibração, que ela não podia ver, a moça continuou:
– Faz o seguinte, hoje a gente só vai mesmo descer o lustre do teto. Amanhã é que vai começar a manutenção e, em seguida, a limpeza geral. Então, é melhor você vir aqui amanhã e quando chegar na portaria manda me chamar, eu sou a Adriana. Combinado?
Eu nem me dei conta do tombamento, nada, nem dos técnicos que estariam acompanhando, tampouco da carteirada involuntária que eu tinha acabado de dar. Mas na manhã seguinte eu sabia certinho o que ia fazer.
A Adriana me recebeu como o jornalista do Iphan e dali em diante minha estada foi bem mais fácil. Ela me apresentou alguns funcionários do teatro e estes me explicaram os procedimentos para a descida, o acesso dos técnicos e tudo o mais sobre a manutenção do tal lustre principal. Entendi que o trabalho dessa vez exigia não só limpeza, mas também troca de materiais, por isso algumas fileiras de cadeiras foram retiradas da plateia e o lustre ficou no nível do chão do teatro, o que aumentava exponencialmente a sua grandeza perto dos mortais, como eu.
Rodeado por escadas, o lustre parecia estar em um salão de beleza. As pessoas circulavam por ele com flanelas, fios, alicates, bocais, lâmpadas, arames de todos os calibres, líquidos em aspersores de vários formatos e cores, numa organizada desordem que, para os mais desatentos, beirava o caos.
A certa altura houve uma pausa. Aquela equipe se afastou e chegaram outras pessoas como se fossem avaliar o que foi feito até ali. Apontavam pra todos os lados, forçavam partes específicas da estrutura, verificavam as amarras, os arames e suas consistências e, enfim, analisavam todos os detalhes. Um dos técnicos então, afastou duas ou três colunas de lâmpadas e passou pra dentro do lustre, fazendo o mesmo trabalho, agora agachado, e pelo lado onde ficavam todos os conectores, as partes invisíveis do candelabro.
Na mesma hora a Adriana chegou do meu lado e perguntou se eu estava gostando do que via. Eu não consegui dizer nada, e nem precisei, porque ela leu meus pensamentos e perguntou se eu queria entrar. Simplesmente assim, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Muitas vezes na vida eu sonhei com essa cena, que até hoje eu me pergunto se vivi de verdade. Uma coisa deslumbrante, indescritível, foi a minha sensação ao estar dentro do imenso lustre. Todo coberto de lâmpadas, de glórias, testemunha dos maestros, dos músicos, dos bailarinos, os tenores e as sopranos, enfim, ele presenciou tantos dos aplausos que guardo na memória, retumbantes, permanentes e ao mesmo tempo insuficientes, diante da magnitude artística daqueles que por ali passaram.
Tudo era breu além daquela cortina de luzes. Lá fora era o espaço, o cosmos. O brilho forçando os olhos me impedia ver depois do incandescente. Não havia nada. Apenas a gravidade daquele astro que me garantia o chão.
Dois dias depois eu estava lá novamente. Desta vez pra testemunhar sua subida aos céus. Lentamente. Como um balão. Sob o cuidado de muitos anjos que guardavam o seu caminho. E ao chegar ao teto, em agradecimento, o lustre propôs uma pequena travessura e rodopiou vagaroso, em semicírculo, até se encaixar solene no topo central da sua galáxia, fazendo com que aquele cair da tarde fosse ainda mais inesquecível pra todos nós, ali presentes.
Inevitavelmente, todas as vezes que voltei àquela famosa galeria não podia deixar de cumprir um solitário ritual, fosse com um breve aceno de cabeça, um cumprimento ou uma reverência em direção ao lustre imponente.
Na cidade em que vivo atualmente não tem ópera, não tem balé, não tem música clássica, não tem um lustre como aquele. Ao longo de sua existência, esta cidade jamais foi capaz de possuir um teatro próprio para abrigar esse tipo de recitativo lírico. É uma pena para quem conhece. Mas é muito mais triste para quem nunca viu uma ópera na vida.
Talvez este seja então um bom motivo pra esta crônica ser publicada justamente hoje. Neste dia 14 de julho de 2020, tanto aquele famoso lustre como o teatro que o abriga completam 111 anos de existência.
Que os maestros, os músicos, os bailarinos, os tenores e as sopranos desta minha cidade possam ser anunciadores de um novo mundo, os profetas da música, os videntes do teatro e da dança. Milênios, milênios no ar.
Nessa cidade submersa, arqueólogos então tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de partituras, canções em poemas, árias, sinfonias. Vestígios de estranha civilização.
Não se afobe, não!
Amo seus textos! Em especial esses, com uma narrativa que leva o leitor para dentro do ocorrido e faz com que nos tornemos companheiros de vida... Parabéns e obrigada!!!
ResponderExcluirIrretocável, como sempre.
ResponderExcluirQuantas lembranças naquele maravilhoso Teatro...
É muito bom ter a honra de receber
ResponderExcluirum texto assim, que nos faz viajar no tempo. Ainda mais desse fiel colega .
Grande abraço Anderson