quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Amigo

 

Antes da era Uber os motoristas de táxi eram os profissionais do volante mais completos de que se tinha notícia. Eles eram uma mistura de guia turístico, recepcionista e segurança, que faziam de tudo pra deixar os clientes se sentirem em casa, tranquilamente, seja qual fosse a cidade visitada.

No Rio de Janeiro não era diferente. E o jeito do carioca ainda ajudava nesse tipo de, digamos, atendimento, já que esses motoristas sempre são, ou se dizem, amigos de quase todo mundo, não importando a classe social ou posição prestigiosa.

Eu estava chegando no Rio e meu irmão foi me receber no aeroporto. Dali pegamos um táxi até a casa da mãe, que nesse tempo morava em Ramos. Assim que entramos no carro o motorista me olhou de cima a baixo, retendo sua atenção no violão que eu carregava junto com uma mochila e uma bolsa. Depois de guardar tudo no porta malas ele já entrou no carro doido pra puxar conversa, mas não teve muito jeito porque eu e meu irmão já falávamos pelos cotovelos, eu querendo saber das novidades e ele de como estava a vida na bela cidade de Floripa.

No primeiro suspiro de silêncio o taxista viu uma brecha e entrou no papo. Disse que gostava muito de Florianópolis e que tinha um cliente que, sempre que vinha ao Rio, telefonava pra agendar o transporte pela cidade, em razão dos seus compromissos.

Logo em seguida, sem respirar, perguntou se eu era músico, ao que eu, de pronto, apontei pro meu irmão dizendo que eu só tocava mesmo em casa e que era ele o músico da família. O sujeito pensou por alguns poucos segundos e perguntou aonde ele tocava e com quem ele já tinha trabalhado, mostrando que conhecia bem os lugares onde tinha música ao vivo. Todos os lugares que meu irmão mencionava ele dizia que conhecia, desde a Ilha do Governador até Iguaba, na Região dos Lagos, passando pelo Centro, que era onde meu irmão tocava nessa época.

A conversa ia pingando daqui e dali até que um de nós falou no Luizão Maia, um dos melhores baixistas que o Brasil já teve. O motorista quase largou o volante, de tanto que se virou pra trás pra falar sobre o cara. Disse que o conhecia de muito tempo e que, mesmo ele tendo ido morar no Japão, sempre que vinha ao Rio, combinava de buscá-lo no aeroporto. Que o músico era uma figura, de tão bacana, além de ser um companheiraço.

A conversa parecia que ia findar, mas o taxista tomou novo fôlego:

– Vocês sabiam que o Luizão é tio do Arthur Maia? Eles têm o mesmo sobrenome, mas pouca gente sabe que são parentes. Baita baixistas. Os dois. Geniais.

Meu irmão até sabia disso e eu, bem, eu tratei de esconder a surpresa pra não parecer ignorante. Enquanto isso meu irmão contava que uma vez foi num ensaio, num estúdio de gravação, e o Arthur estava lá, em outra sala, também gravando. Contou que os músicos dos dois estúdios acabaram se confraternizando e até se misturando nas gravações, uns querendo saber do som do outro e que, na ocasião, o baixista famoso pareceu bem simples e generoso no trato com todos eles.

O motorista, pra não ficar atrás, também contou um monte de causos dos dois baixistas, das vindas ao Rio e das idas e vindas em shows, dos amigos em comum, os músicos e as mulheres que sempre estavam em redor desse tipo de gente, como ele mesmo disse.

A gente não sabia se era verdade e que ele contava, mas não chegava a ser algo inconveniente ou maçante. Então a gente seguia ouvindo e se perguntando como o cara conhecia toda aquela gente famosa. Os músicos mais virtuosos que a gente admirava, era só mencionar que ele dizia que conhecia e contava uma passagem com cada um deles.

Em certos momentos a coisa beirava a incredulidade, devo sublinhar. Mas no geral, aquele era mesmo o comportamento comum da classe dos taxistas. Era a camaradagem, a simpatia e a familiaridade no trato com o passageiro que fazia do taxista carioca um verdadeiro amigo de infância, tão logo findava a primeira corrida.

Enquanto a gente pagava e tirava as bagagens, com o carro já na calçada, em frente da casa da minha mãe, o motorista voltou a dizer que, entre todos os músicos, quem ele mais gostava era o Arthur Maia e que estava feliz pela coincidência do meu irmão ter estado com ele no estúdio.

– Aquele rapaz é um menino de ouro. É uma ótima pessoa e um grande músico. Eu gosto muito dele.

A gente balbuciou alguma coisa já em tom de despedida, mas ele retomou:

– Já que você é músico eu vou te pedir um favor: quando você estiver com o Arthurzinho de novo, chama ele de Grão-mestre dos Cavaleiros Peidões. Fala também que foi o Galo Cego quem disse isso e mandou um grande abraço pra ele. Firme, meu irmão? Então, tô indo nessa.

O táxi arrancou, desceu a calçada, virou a esquina furando o sinal vermelho, como de praxe, e eu e meu irmão ficamos ali, só olhando, sem ação.

Durante todo o fim de semana a gente ficou tentando imaginar algum de nós dizendo aquelas insanidades, e logo pro grande Arthur Maia. Claro que não tinha o menor cabimento. E cada vez que chegava alguém novo lá na casa da minha mãe a gente tornava a contar toda a história do tal Galo Cego. Só pra dar mais risadas. Só pra desconfiar, cada vez mais, daquele impagável motorista, amigo dos músicos. E dos Cavaleiros Peidões.


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O Chato

 

Todo mundo conhece uma pessoa chata. Com alguma sorte, muitos conhecem mais que uma, nos vários âmbitos que circundam a nossa difícil convivência humana.

O chato é aquele que viu o maior disco voador, que presenciou o mais espetacular acidente de carro, que fotografou o maior avião que já caiu, se duvidar na sua rua. Além de ter saído ileso de um ataque de tubarão em Recife e de ter fugido de um enorme tigre asiático num safári na Índia, ele, ou ela, o chato, sofreu o mais cruel dos assaltos a banco, tendo posto a vida em alto risco e milagrosamente se salvado pra poder contar a história.

Eu tinha ido ao Rio de Janeiro pra participar de um seminário, barra curso, sobre arquivamento de documentos digitais. No meu caso o interesse era pela organização das fotos de obras de arte e de atividades culturais, de todos os tipos, que o órgão onde eu trabalhava promovia. Tinha também uma boa quantidade de matérias de jornais que traziam, quinzenalmente, a agenda do projeto de cinema que eu organizava.

Não só pelo seminário em si, naquela minha estada no Rio eu tinha marcado também uma conversa com uma pesquisadora da área de arquivo, a Andreia, com quem eu já havia combinado um encontro pra lhe mostrar detalhes do nosso arquivo e conseguir algumas dicas de organização, catalogação e conservação dos digitais.

O voo era cedo, o aeroporto pertinho do Centro do Rio e, naturalmente, eu acabei chegando cedo ao local do seminário. Já no auditório, logo percebi um diálogo, perto de onde eu me sentei, que fez o meu detector de chatos disparar, internamente, uma luzinha de piscação intermitente. Esse é o primeiro estágio de sensibilidade da detecção.

Pensei em me virar pra escanear a figura que falava, mas não queria dar bandeira, nem atrair a conversa pro meu tranquilo e desarmado lado. Daí, fiquei quieto, só ouvindo.

– Gente, desculpe o atraso. Peguei um engarrafamento enorme na Barra.

– Menina, eu também. Saí do Maracanã e nada andava até a Central do Brasil.

“Atraso?”, pensei eu. Mas, ainda era cedo pro seminário! E, como assim aquele “eu também”? Aquilo era coisa de gente chata, na certa. Não vou nem olhar pra não puxarem assunto comigo. E fiquei imóvel, só ouvindo as outras pessoas chegando.

– Quase que eu não venho. – disse outra voz – Meu filho está assim de gripe e eu não dormi a noite toda.

– O meu também. Acho que é um surto desses de virose, que ataca logo na chegada do inverno. Eu também não dormi nadinha essa noite.

– Pois é, eu disse pra ele me ligar e qualquer coisa dou um pulo em casa, se algo acontecer.

– Ah, eu sempre faço isso também. Eles ligam e a gente larga tudo pra trás, né?

Minha nossa, não eram nem nove horas da manhã! Cada vez que eu escutava um novo “eu também” minha alma saía de mim e dava uma volta pelos lindos jardins do Burle Marx, do outro lado da janela, a me convidar insistentemente.

Todas as típicas competições de narrativas chatas, próprias dos chatos, estiveram presentes naquela manhã. Não posso jurar, mas intuo ter ouvido algo sobre tubarões, disco voadores, doenças e assaltos, e também os famigerados acidentes diversos, incluindo os domésticos e claro, os de trânsito. Um suplício sem fim.

Logo após o almoço ia ter uma oficina, da qual eu não ia participar, pois era o momento de ir falar com a técnica Andreia, conforme combinado.

Assim que ela me recebeu na sua sala eu identifiquei logo o tom da sua voz como uma das que estavam naquela singela competição, antes mencionada. Eu dei um suspiro de chateação e fui em frente, já que não tinha outra escolha.

Ela me recebeu super bem, era mesmo uma autoridade em arquivo e sabia tudo dos códigos de catalogação, os procedimentos para conservação, tratamento e acompanhamento, inserção de novos materiais, tudo. E além disso, sabia ensinar, era bem didática e me contou que tinha preparado um tutorial, pra que eu pudesse levar comigo. Assim, caso surgisse alguma dúvida, seria só eu consultar o material.

Serviço mais que completo, aquela conversa foi realmente surpreendente. Até que eu disse qualquer coisa sobre pegar os meus óculos de perto.

Imediatamente ela disse o fatídico “eu também”, acionando o velho pisca-pisca do detector.

– Eu uso óculos, mas só pra leitura.

– Eu também – ela disse.

– Na verdade, eu uso lentes de contato.

– Eu também. Gelatinosas.

– Aí, elas corrigem só a miopia e eu tenho de usar óculos de perto, só mesmo pra ler e pro computador.

– Eu também.

– E a minha miopia, como é muito alta, eu não pude fazer a cirurgia.

– Eu também, a médica disse que não podia corrigir tudo.

Eu dei uma parada. Suspirei de novo, olhei sério pra ela e sentenciei:

– Olha só, eu tenho 10,5 no olho direito e 12 graus no esquerdo. Tá?

– Eu também. Só que o meu grau é 23. Em cada olho. Tá? 

– Caceta!

– Como?

– Desculpa. Foi só a surpresa. Perdão. Preciso de uma água.

E ela passou a contar que usa óculos desde bem criança, que não podia brincar como as outras amiguinhas, que os meninos não olhavam pra ela, que a mãe protegia demais por causa dos óculos etc etc etc.

Eu ouvia tudo com a maior vontade de dizer alguns “eu também”. Mas me segurava a cada vontade dessa, pra não passar de chato. Ora.

No final, ela veio comigo até a porta me dizendo que estaria à disposição e que eu ligasse quando quisesse. E disse ainda que achou bem legal encontrar alguém com um quadro de miopia parecido e que usa lente de contato e óculos junto. Ao que eu respondi:

– Eu também.

O chato era eu!