Antes da era Uber os motoristas de táxi eram os profissionais do volante mais completos de que se tinha notícia. Eles eram uma mistura de guia turístico, recepcionista e segurança, que faziam de tudo pra deixar os clientes se sentirem em casa, tranquilamente, seja qual fosse a cidade visitada.
No Rio de Janeiro não era diferente. E o jeito do carioca ainda ajudava nesse tipo de, digamos, atendimento, já que esses motoristas sempre são, ou se dizem, amigos de quase todo mundo, não importando a classe social ou posição prestigiosa.
Eu estava chegando no Rio e meu irmão foi me receber no aeroporto. Dali pegamos um táxi até a casa da mãe, que nesse tempo morava em Ramos. Assim que entramos no carro o motorista me olhou de cima a baixo, retendo sua atenção no violão que eu carregava junto com uma mochila e uma bolsa. Depois de guardar tudo no porta malas ele já entrou no carro doido pra puxar conversa, mas não teve muito jeito porque eu e meu irmão já falávamos pelos cotovelos, eu querendo saber das novidades e ele de como estava a vida na bela cidade de Floripa.
No primeiro suspiro de silêncio o taxista viu uma brecha e entrou no papo. Disse que gostava muito de Florianópolis e que tinha um cliente que, sempre que vinha ao Rio, telefonava pra agendar o transporte pela cidade, em razão dos seus compromissos.
Logo em seguida, sem respirar, perguntou se eu era músico, ao que eu, de pronto, apontei pro meu irmão dizendo que eu só tocava mesmo em casa e que era ele o músico da família. O sujeito pensou por alguns poucos segundos e perguntou aonde ele tocava e com quem ele já tinha trabalhado, mostrando que conhecia bem os lugares onde tinha música ao vivo. Todos os lugares que meu irmão mencionava ele dizia que conhecia, desde a Ilha do Governador até Iguaba, na Região dos Lagos, passando pelo Centro, que era onde meu irmão tocava nessa época.
A conversa ia pingando daqui e dali até que um de nós falou no Luizão Maia, um dos melhores baixistas que o Brasil já teve. O motorista quase largou o volante, de tanto que se virou pra trás pra falar sobre o cara. Disse que o conhecia de muito tempo e que, mesmo ele tendo ido morar no Japão, sempre que vinha ao Rio, combinava de buscá-lo no aeroporto. Que o músico era uma figura, de tão bacana, além de ser um companheiraço.
A conversa parecia que ia findar, mas o taxista tomou novo fôlego:
– Vocês sabiam que o Luizão é tio do Arthur Maia? Eles têm o mesmo sobrenome, mas pouca gente sabe que são parentes. Baita baixistas. Os dois. Geniais.
Meu irmão até sabia disso e eu, bem, eu tratei de esconder a surpresa pra não parecer ignorante. Enquanto isso meu irmão contava que uma vez foi num ensaio, num estúdio de gravação, e o Arthur estava lá, em outra sala, também gravando. Contou que os músicos dos dois estúdios acabaram se confraternizando e até se misturando nas gravações, uns querendo saber do som do outro e que, na ocasião, o baixista famoso pareceu bem simples e generoso no trato com todos eles.
O motorista, pra não ficar atrás, também contou um monte de causos dos dois baixistas, das vindas ao Rio e das idas e vindas em shows, dos amigos em comum, os músicos e as mulheres que sempre estavam em redor desse tipo de gente, como ele mesmo disse.
A gente não sabia se era verdade e que ele contava, mas não chegava a ser algo inconveniente ou maçante. Então a gente seguia ouvindo e se perguntando como o cara conhecia toda aquela gente famosa. Os músicos mais virtuosos que a gente admirava, era só mencionar que ele dizia que conhecia e contava uma passagem com cada um deles.
Em certos momentos a coisa beirava a incredulidade, devo sublinhar. Mas no geral, aquele era mesmo o comportamento comum da classe dos taxistas. Era a camaradagem, a simpatia e a familiaridade no trato com o passageiro que fazia do taxista carioca um verdadeiro amigo de infância, tão logo findava a primeira corrida.
Enquanto a gente pagava e tirava as bagagens, com o carro já na calçada, em frente da casa da minha mãe, o motorista voltou a dizer que, entre todos os músicos, quem ele mais gostava era o Arthur Maia e que estava feliz pela coincidência do meu irmão ter estado com ele no estúdio.
– Aquele rapaz é um menino de ouro. É uma ótima pessoa e um grande músico. Eu gosto muito dele.
A gente balbuciou alguma coisa já em tom de despedida, mas ele retomou:
– Já que você é músico eu vou te pedir um favor: quando você estiver com o Arthurzinho de novo, chama ele de Grão-mestre dos Cavaleiros Peidões. Fala também que foi o Galo Cego quem disse isso e mandou um grande abraço pra ele. Firme, meu irmão? Então, tô indo nessa.
O táxi arrancou, desceu a calçada, virou a esquina furando o sinal vermelho, como de praxe, e eu e meu irmão ficamos ali, só olhando, sem ação.
Durante todo o fim de semana a gente ficou tentando imaginar algum de nós dizendo aquelas insanidades, e logo pro grande Arthur Maia. Claro que não tinha o menor cabimento. E cada vez que chegava alguém novo lá na casa da minha mãe a gente tornava a contar toda a história do tal Galo Cego. Só pra dar mais risadas. Só pra desconfiar, cada vez mais, daquele impagável motorista, amigo dos músicos. E dos Cavaleiros Peidões.