Todo mundo conhece uma pessoa chata. Com alguma sorte, muitos conhecem mais que uma, nos vários âmbitos que circundam a nossa difícil convivência humana.
O chato é aquele que viu o maior disco voador, que presenciou o mais espetacular acidente de carro, que fotografou o maior avião que já caiu, se duvidar na sua rua. Além de ter saído ileso de um ataque de tubarão em Recife e de ter fugido de um enorme tigre asiático num safári na Índia, ele, ou ela, o chato, sofreu o mais cruel dos assaltos a banco, tendo posto a vida em alto risco e milagrosamente se salvado pra poder contar a história.
Eu tinha ido ao Rio de Janeiro pra participar de um seminário, barra curso, sobre arquivamento de documentos digitais. No meu caso o interesse era pela organização das fotos de obras de arte e de atividades culturais, de todos os tipos, que o órgão onde eu trabalhava promovia. Tinha também uma boa quantidade de matérias de jornais que traziam, quinzenalmente, a agenda do projeto de cinema que eu organizava.
Não só pelo seminário em si, naquela minha estada no Rio eu tinha marcado também uma conversa com uma pesquisadora da área de arquivo, a Andreia, com quem eu já havia combinado um encontro pra lhe mostrar detalhes do nosso arquivo e conseguir algumas dicas de organização, catalogação e conservação dos digitais.
O voo era cedo, o aeroporto pertinho do Centro do Rio e, naturalmente, eu acabei chegando cedo ao local do seminário. Já no auditório, logo percebi um diálogo, perto de onde eu me sentei, que fez o meu detector de chatos disparar, internamente, uma luzinha de piscação intermitente. Esse é o primeiro estágio de sensibilidade da detecção.
Pensei em me virar pra escanear a figura que falava, mas não queria dar bandeira, nem atrair a conversa pro meu tranquilo e desarmado lado. Daí, fiquei quieto, só ouvindo.
– Gente, desculpe o atraso. Peguei um engarrafamento enorme na Barra.
– Menina, eu também. Saí do Maracanã e nada andava até a Central do Brasil.
“Atraso?”, pensei eu. Mas, ainda era cedo pro seminário! E, como assim aquele “eu também”? Aquilo era coisa de gente chata, na certa. Não vou nem olhar pra não puxarem assunto comigo. E fiquei imóvel, só ouvindo as outras pessoas chegando.
– Quase que eu não venho. – disse outra voz – Meu filho está assim de gripe e eu não dormi a noite toda.
– O meu também. Acho que é um surto desses de virose, que ataca logo na chegada do inverno. Eu também não dormi nadinha essa noite.
– Pois é, eu disse pra ele me ligar e qualquer coisa dou um pulo em casa, se algo acontecer.
– Ah, eu sempre faço isso também. Eles ligam e a gente larga tudo pra trás, né?
Minha nossa, não eram nem nove horas da manhã! Cada vez que eu escutava um novo “eu também” minha alma saía de mim e dava uma volta pelos lindos jardins do Burle Marx, do outro lado da janela, a me convidar insistentemente.
Todas as típicas competições de narrativas chatas, próprias dos chatos, estiveram presentes naquela manhã. Não posso jurar, mas intuo ter ouvido algo sobre tubarões, disco voadores, doenças e assaltos, e também os famigerados acidentes diversos, incluindo os domésticos e claro, os de trânsito. Um suplício sem fim.
Logo após o almoço ia ter uma oficina, da qual eu não ia participar, pois era o momento de ir falar com a técnica Andreia, conforme combinado.
Assim que ela me recebeu na sua sala eu identifiquei logo o tom da sua voz como uma das que estavam naquela singela competição, antes mencionada. Eu dei um suspiro de chateação e fui em frente, já que não tinha outra escolha.
Ela me recebeu super bem, era mesmo uma autoridade em arquivo e sabia tudo dos códigos de catalogação, os procedimentos para conservação, tratamento e acompanhamento, inserção de novos materiais, tudo. E além disso, sabia ensinar, era bem didática e me contou que tinha preparado um tutorial, pra que eu pudesse levar comigo. Assim, caso surgisse alguma dúvida, seria só eu consultar o material.
Serviço mais que completo, aquela conversa foi realmente surpreendente. Até que eu disse qualquer coisa sobre pegar os meus óculos de perto.
Imediatamente ela disse o fatídico “eu também”, acionando o velho pisca-pisca do detector.
– Eu uso óculos, mas só pra leitura.
– Eu também – ela disse.
– Na verdade, eu uso lentes de contato.
– Eu também. Gelatinosas.
– Aí, elas corrigem só a miopia e eu tenho de usar óculos de perto, só mesmo pra ler e pro computador.
– Eu também.
– E a minha miopia, como é muito alta, eu não pude fazer a cirurgia.
– Eu também, a médica disse que não podia corrigir tudo.
Eu dei uma parada. Suspirei de novo, olhei sério pra ela e sentenciei:
– Olha só, eu tenho 10,5 no olho direito e 12 graus no esquerdo. Tá?
– Eu também. Só que o meu grau é 23. Em cada olho. Tá?
– Caceta!
– Como?
– Desculpa. Foi só a surpresa. Perdão. Preciso de uma água.
E ela passou a contar que usa óculos desde bem criança, que não podia brincar como as outras amiguinhas, que os meninos não olhavam pra ela, que a mãe protegia demais por causa dos óculos etc etc etc.
Eu ouvia tudo com a maior vontade de dizer alguns “eu também”. Mas me segurava a cada vontade dessa, pra não passar de chato. Ora.
No final, ela veio comigo até a porta me dizendo que estaria à disposição e que eu ligasse quando quisesse. E disse ainda que achou bem legal encontrar alguém com um quadro de miopia parecido e que usa lente de contato e óculos junto. Ao que eu respondi:
– Eu também.
O chato era eu!
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