terça-feira, 24 de novembro de 2020

Dona Preta


Ela faz faxina aqui em casa já há uns quatro anos. Quando apresentada por sua irmã, logo fui avisado de que, embora sendo branca, e muito branca, a dona Preta preferia ser chamada assim pois não gostava do seu nome de batismo: Alciolé.

No mesmo instante fiquei olhando pra ela e pensando em quantas vezes ela já devia ter explicado isso para as pessoas, sempre sublinhando o gosto duvidoso dos pais pela escolha envolvendo a natalidade. Logo me veio à cabeça Laudelina, nome da minha avó, e Adelino, do meu pai. Minha avó acabou preferindo ser só Lina e meu pai optou por adotar o apelido Careca, dado por seu tio ainda na infância.

Nos primeiros dias lá em casa eu esperava a chegada da dona Preta pra sair pro trabalho. Mais tarde, tendo feito uma cópia, resolvi deixar a chave de casa com o porteiro pra que fosse entregue a ela.

Naquele dia, assim que cheguei no trabalho a dona Preta me ligou, dizendo que o porteiro não queria entregar a chave. Dizia ele:

– É que o senhor disse pra entregar a chave pra dona Preta e essa moça aqui não é Preta não.

– Ô seu Pedro, é que o nome dela, quer dizer, o apelido, ou melhor, o nome que ela gosta de ser chamada é dona Preta. Mesmo ela sendo branca. Faz o favor de entregar a chave pra ela, ok?

Ao voltar pra casa, no final da tarde, ele ainda completou, se desculpando, ao mesmo tempo espantado, de como alguém que é branquinha quer ser chamada de Preta. E balançava a cabeça, como se fosse algo por demais reprovável.

A própria dona Preta ria sempre dessas tiradas que surgiam sobre o seu nome e dessa vez, com o Pedro, também não foi diferente. Ela mesma contou que ficou soletrando pra ele o nome verdadeiro até que ele concordasse que era melhor mesmo usar o tal dona Preta.

Eu já suspeitava que os fatos repetitivos estavam prestes a acontecer, quando me mudei de apartamento. Fui morar do outro lado do Centro e, pra evitar transtornos, já deixei uma cópia da chave com a dona Preta. Pedi que ela fosse até lá e desse uma cuidada geral no apê, mesmo antes da chegada da mudança, que aí já adiantava as coisas pra quando entrasse a mobília, com tudo limpinho.

Por algum erro de comunicação, meu provavelmente, a dona Preta não entendeu que a chave que eu havia deixado era a cópia dela. Então, na saída, ela a deixou com o porteiro, pedindo que me entregasse e que eu era o novo morador da unidade tal.

Assim que me viu entrar o porteiro me reconheceu e disse que tinha uma entrega. Abriu a gaveta, me deu a chave e disse que foi a dona Preta que tinha mandado me entregar. Enquanto eu me dava conta da confusão da posse da chave, que era cópia, ele todo sem jeito, cheio de dedos, me disse baixinho:

– O senhor me desculpe por chamar ela assim, mas foi ela mesma que disse que o nome dela é Preta. Eu nem entendi, porque ela é branca, mas não é falta de respeito minha não, tá?

Eu respondi que estava tudo bem e, mais uma vez, me vi explicando que era frequente as pessoas estranharem o nome dela e que tinha certeza de que não tinha sido falta de respeito da parte dele. Ele ficou aliviado com a minha concordância e quando eu pensei que o evento tinha acabado ali ele me veio com mais uma.

– Eu tenho um vizinho, que é negro, mulato eu diria. Ele é casado com uma galega, daqui de Joinville. Outro dia ele estava me contando que o filho dele fez uma pergunta que ele não soube responder. Contou que o garoto percebeu a diferença das famílias do pai e da mãe, quanto a cor da pele, e que notou que a sua está no meio do caminho entre elas. Aí ele sentou no carro do pai e, enquanto arrumava o cinto, mirando o pai pelo espelho disparou: Pai, porque na casa da minha vó eu sou preto e na casa da minha outra vó eu sou branco?

Ele riu quando acabou de contar e arrematou com um singelo “veja o senhor”. Bem, eu, como sempre recorro aos sábios do meu tempo, devolvi também com singeleza:

– Quem está certo é o mestre Caetano. Ele diz que já passou da hora do Brasil entender e admitir que, por aqui, “somos todos meio pretos”.

E fui entrando em direção aos dois elevadores.

Ambos sociais.

E iguais.


quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O Guarda-Vidas


Quando o seu Aníbal sentou na sala de espera, logo estranhou ao ver à sua volta cadeiras interditadas, com os avisos de distanciamento colados no encosto. Foi neste instante que avistou o seu velho amigo e veio sentar na fileira à sua frente. Logo os dois iniciaram um longo papo que, como veremos, vai acabar justamente no guarda-vidas da praia do Campeche.

Note que o nome do segundo personagem, o amigo do seu Aníbal, eu não relatei acima. Minhas desculpas seguem aqui, pois que eles falaram tão rápido que eu, da minha cadeira, também rodeada de outras interditadas, na mesma sala de espera, não consegui perceber quando anunciado. Eu sei que o nome é tudo. Mas posso garantir que, no caso dessa crônica, farei de tudo para que não seja algo prejudicial ao entendimento dos fatos.

Virado para a fileira de trás, seu Aníbal falava com o amigo sobre outros nomes, mas de pessoas conhecidas que não viam há tempos. Iam enfileirando comentários, acontecimentos, casamentos e até o sumiço de alguns deles quando, de repente, a ocorrência passou a ser a Covid.

Um deles contou que uma grande amiga em comum havia sido infectada e passou por maus momentos, tendo sido entubada por vários dias. Teria ficado bem ruim, mesmo depois de ter recebido alta médica e, no processo de sua recuperação, ainda estava submetida a sessões de fisioterapia respiratória, entre outras coisas.

– O que salvou a dona Izabel foi a sua fé – disse um deles. Ela é católica fervorosa, não perde uma missa. E Deus não ia fazer isso com ela. Deus salva as pessoas que merecem. E é assim que tem de ser.

– Ah, meu prezado amigo, vou te dizer uma coisa do fundo da minha alma: se existe um Deus e ele vem pra salvar só as pessoas que merecem, pra mim ele já nem devia ser Deus. Pode pedir o boné esse Deus.

– Mas amigo, como assim? Deus tem que ver se a pessoa é boa, correta. Não vai sair por aí salvando qualquer um não. Não é assim não.

– Olha aqui, se Deus é o pai e ele sabe de tudo, tu achas que ele vai olhar lá de cima e ver a dona Izabel, lá deitada na UTI, e vai ver que ela é boa pessoa, e vai salvá-la? Ao mesmo tempo, vai largar de mão quem não é igual a ela?

Foi nessa hora, de tanto trocar argumentos acerca de Deus e de merecimentos humanos, que o seu Aníbal recorreu ao nosso guarda-vidas do título.

– Ao contrário de você, eu acho que Deus tem de salvar a todos, pois todos são sua criação. Ademais, todos têm família, entes que os amam, pessoas queridas que sentirão a sua falta ou que suas vidas dependem daquela vida que está em risco. Eu moro na praia do Campeche e sempre que vou caminhar na areia vejo lá em cima, na sua casinha amarela, o guarda-vidas de prontidão. Ele está atento às pessoas dentro d’água. Agora imagine que ele vê uma pessoa se afogando, sai esbaforido em socorro dela enquanto vai nadando ao seu encontro, aí ele chega perto e pergunta se ela é uma boa pessoa, se é católica, e enfim avalia se a pessoa merece ser salva ou não.

– Isso é um absurdo.

– Sim, isso é um absurdo sim. As pessoas falam que Deus é fiel, colocam adesivo nos carros, mas elas querem que Deus seja fiel a elas somente, que se acham pessoas boas. E as outras pessoas? Deus deve dizer um sonoro “que se dane”? Que Deus é esse? Se é assim eu prefiro ser devoto do guarda-vidas, que salva todos os que ele pode, sem distinção alguma de qualquer coisa.

Enquanto eu estava adorando aquela conversa, o outro velhinho já estava aflito, olhando toda hora o número da sua senha, torcendo pra atendente chamá-lo e o tirar daquela enrascada. A única coisa que ele conseguiu dizer foi “pensando assim, você tem razão”, e o disse baixinho, quase inaudível, que só mesmo Deus conseguiu ouvir com clareza. O amigo, já meio surdo, precisou se esforçar e depois arrematou:

– A pessoa está na UTI. É a dona Izabel. Nossa querida amiga, ex-vizinha, católica, gente boa. Ok, mas se ao lado da cama dela tem um lá, também doente, talvez entubado, ele também merece a atenção de Deus, a sua misericórdia e o seu milagre. Não é justo a gente dizer que a nossa amiga Izabel se curou porque merecia a ajuda de Deus por esse ou aquele motivo. Como se o outro não merecesse!

Nesse momento, uma senhora que tinha se achegado pelo meio da conversa, veio se aproximando.

– Desculpe a intromissão, mas eu só queria contar uma passagem que aconteceu na porta da igreja lá perto de casa.

– Pois não, pode contar.

– É rapidinho. É que eu estava saindo da missa com um grupo de amigos e ficamos uns minutos conversando na frente da igreja até que um carro, em velocidade, deu uma freada na esquina que assustou a todos nós. Uma senhora do nosso grupo, que passava na esquina no exato momento, ficou tão nervosa que precisou ser amparada. Disse que ficou em estado de choque quando viu que o carro atropelou um rapaz de bicicleta, de leve, mas que o susto foi grande por causa da freada. E a senhora temia pelo pior porque achou que o ciclista era o seu filho. Quando ela chegou perto do nosso grupo disse que estava aliviada, que graças a Deus não era o seu filho. Aí, um amigo a questionou que não era o seu filho, ok, mas era o filho de alguém que tinha sido atropelado. Ele disse: então, o seu filho Deus protege, mas o filho de outra mãe que se dane?

– Que boa história, senhora. Era isso que eu estava falando com o meu amigo. Ué, cadê ele?

– Desculpe, era só isso mesmo que eu queria contar pra vocês – disse a senhora. Na verdade, eu estou esperando o meu filho vir me buscar depois da consulta. Ele trabalha de salva-vidas e está indo pro trabalho daqui a pouco e vai me dar uma carona.

– Que coincidência o seu filho ser guarda-vidas.

– Porquê? O senhor também é?

– Não exatamente. Mas eu acho que nessa vida todos devem ser salvos. Dentro ou fora d’água.

E saíram os dois conversando porta afora.

Esperando pela chegada de Deus.

Ou do salva-vidas.