Ela faz faxina aqui em casa já há uns quatro anos. Quando apresentada por sua irmã, logo fui avisado de que, embora sendo branca, e muito branca, a dona Preta preferia ser chamada assim pois não gostava do seu nome de batismo: Alciolé.
No mesmo instante fiquei olhando pra ela e pensando em quantas vezes ela já devia ter explicado isso para as pessoas, sempre sublinhando o gosto duvidoso dos pais pela escolha envolvendo a natalidade. Logo me veio à cabeça Laudelina, nome da minha avó, e Adelino, do meu pai. Minha avó acabou preferindo ser só Lina e meu pai optou por adotar o apelido Careca, dado por seu tio ainda na infância.
Nos primeiros dias lá em casa eu esperava a chegada da dona Preta pra sair pro trabalho. Mais tarde, tendo feito uma cópia, resolvi deixar a chave de casa com o porteiro pra que fosse entregue a ela.
Naquele dia, assim que cheguei no trabalho a dona Preta me ligou, dizendo que o porteiro não queria entregar a chave. Dizia ele:
– É que o senhor disse pra entregar a chave pra dona Preta e essa moça aqui não é Preta não.
– Ô seu Pedro, é que o nome dela, quer dizer, o apelido, ou melhor, o nome que ela gosta de ser chamada é dona Preta. Mesmo ela sendo branca. Faz o favor de entregar a chave pra ela, ok?
Ao voltar pra casa, no final da tarde, ele ainda completou, se desculpando, ao mesmo tempo espantado, de como alguém que é branquinha quer ser chamada de Preta. E balançava a cabeça, como se fosse algo por demais reprovável.
A própria dona Preta ria sempre dessas tiradas que surgiam sobre o seu nome e dessa vez, com o Pedro, também não foi diferente. Ela mesma contou que ficou soletrando pra ele o nome verdadeiro até que ele concordasse que era melhor mesmo usar o tal dona Preta.
Eu já suspeitava que os fatos repetitivos estavam prestes a acontecer, quando me mudei de apartamento. Fui morar do outro lado do Centro e, pra evitar transtornos, já deixei uma cópia da chave com a dona Preta. Pedi que ela fosse até lá e desse uma cuidada geral no apê, mesmo antes da chegada da mudança, que aí já adiantava as coisas pra quando entrasse a mobília, com tudo limpinho.
Por algum erro de comunicação, meu provavelmente, a dona Preta não entendeu que a chave que eu havia deixado era a cópia dela. Então, na saída, ela a deixou com o porteiro, pedindo que me entregasse e que eu era o novo morador da unidade tal.
Assim que me viu entrar o porteiro me reconheceu e disse que tinha uma entrega. Abriu a gaveta, me deu a chave e disse que foi a dona Preta que tinha mandado me entregar. Enquanto eu me dava conta da confusão da posse da chave, que era cópia, ele todo sem jeito, cheio de dedos, me disse baixinho:
– O senhor me desculpe por chamar ela assim, mas foi ela mesma que disse que o nome dela é Preta. Eu nem entendi, porque ela é branca, mas não é falta de respeito minha não, tá?
Eu respondi que estava tudo bem e, mais uma vez, me vi explicando que era frequente as pessoas estranharem o nome dela e que tinha certeza de que não tinha sido falta de respeito da parte dele. Ele ficou aliviado com a minha concordância e quando eu pensei que o evento tinha acabado ali ele me veio com mais uma.
– Eu tenho um vizinho, que é negro, mulato eu diria. Ele é casado com uma galega, daqui de Joinville. Outro dia ele estava me contando que o filho dele fez uma pergunta que ele não soube responder. Contou que o garoto percebeu a diferença das famílias do pai e da mãe, quanto a cor da pele, e que notou que a sua está no meio do caminho entre elas. Aí ele sentou no carro do pai e, enquanto arrumava o cinto, mirando o pai pelo espelho disparou: Pai, porque na casa da minha vó eu sou preto e na casa da minha outra vó eu sou branco?
Ele riu quando acabou de contar e arrematou com um singelo “veja o senhor”. Bem, eu, como sempre recorro aos sábios do meu tempo, devolvi também com singeleza:
– Quem está certo é o mestre Caetano. Ele diz que já passou da hora do Brasil entender e admitir que, por aqui, “somos todos meio pretos”.
E fui entrando em direção aos dois elevadores.
Ambos sociais.
E iguais.