Quando o seu Aníbal sentou na sala de espera, logo estranhou ao ver à sua volta cadeiras interditadas, com os avisos de distanciamento colados no encosto. Foi neste instante que avistou o seu velho amigo e veio sentar na fileira à sua frente. Logo os dois iniciaram um longo papo que, como veremos, vai acabar justamente no guarda-vidas da praia do Campeche.
Note que o nome do segundo personagem, o amigo do seu Aníbal, eu não relatei acima. Minhas desculpas seguem aqui, pois que eles falaram tão rápido que eu, da minha cadeira, também rodeada de outras interditadas, na mesma sala de espera, não consegui perceber quando anunciado. Eu sei que o nome é tudo. Mas posso garantir que, no caso dessa crônica, farei de tudo para que não seja algo prejudicial ao entendimento dos fatos.
Virado para a fileira de trás, seu Aníbal falava com o amigo sobre outros nomes, mas de pessoas conhecidas que não viam há tempos. Iam enfileirando comentários, acontecimentos, casamentos e até o sumiço de alguns deles quando, de repente, a ocorrência passou a ser a Covid.
Um deles contou que uma grande amiga em comum havia sido infectada e passou por maus momentos, tendo sido entubada por vários dias. Teria ficado bem ruim, mesmo depois de ter recebido alta médica e, no processo de sua recuperação, ainda estava submetida a sessões de fisioterapia respiratória, entre outras coisas.
– O que salvou a dona Izabel foi a sua fé – disse um deles. Ela é católica fervorosa, não perde uma missa. E Deus não ia fazer isso com ela. Deus salva as pessoas que merecem. E é assim que tem de ser.
– Ah, meu prezado amigo, vou te dizer uma coisa do fundo da minha alma: se existe um Deus e ele vem pra salvar só as pessoas que merecem, pra mim ele já nem devia ser Deus. Pode pedir o boné esse Deus.
– Mas amigo, como assim? Deus tem que ver se a pessoa é boa, correta. Não vai sair por aí salvando qualquer um não. Não é assim não.
– Olha aqui, se Deus é o pai e ele sabe de tudo, tu achas que ele vai olhar lá de cima e ver a dona Izabel, lá deitada na UTI, e vai ver que ela é boa pessoa, e vai salvá-la? Ao mesmo tempo, vai largar de mão quem não é igual a ela?
Foi nessa hora, de tanto trocar argumentos acerca de Deus e de merecimentos humanos, que o seu Aníbal recorreu ao nosso guarda-vidas do título.
– Ao contrário de você, eu acho que Deus tem de salvar a todos, pois todos são sua criação. Ademais, todos têm família, entes que os amam, pessoas queridas que sentirão a sua falta ou que suas vidas dependem daquela vida que está em risco. Eu moro na praia do Campeche e sempre que vou caminhar na areia vejo lá em cima, na sua casinha amarela, o guarda-vidas de prontidão. Ele está atento às pessoas dentro d’água. Agora imagine que ele vê uma pessoa se afogando, sai esbaforido em socorro dela enquanto vai nadando ao seu encontro, aí ele chega perto e pergunta se ela é uma boa pessoa, se é católica, e enfim avalia se a pessoa merece ser salva ou não.
– Isso é um absurdo.
– Sim, isso é um absurdo sim. As pessoas falam que Deus é fiel, colocam adesivo nos carros, mas elas querem que Deus seja fiel a elas somente, que se acham pessoas boas. E as outras pessoas? Deus deve dizer um sonoro “que se dane”? Que Deus é esse? Se é assim eu prefiro ser devoto do guarda-vidas, que salva todos os que ele pode, sem distinção alguma de qualquer coisa.
Enquanto eu estava adorando aquela conversa, o outro velhinho já estava aflito, olhando toda hora o número da sua senha, torcendo pra atendente chamá-lo e o tirar daquela enrascada. A única coisa que ele conseguiu dizer foi “pensando assim, você tem razão”, e o disse baixinho, quase inaudível, que só mesmo Deus conseguiu ouvir com clareza. O amigo, já meio surdo, precisou se esforçar e depois arrematou:
– A pessoa está na UTI. É a dona Izabel. Nossa querida amiga, ex-vizinha, católica, gente boa. Ok, mas se ao lado da cama dela tem um lá, também doente, talvez entubado, ele também merece a atenção de Deus, a sua misericórdia e o seu milagre. Não é justo a gente dizer que a nossa amiga Izabel se curou porque merecia a ajuda de Deus por esse ou aquele motivo. Como se o outro não merecesse!
Nesse momento, uma senhora que tinha se achegado pelo meio da conversa, veio se aproximando.
– Desculpe a intromissão, mas eu só queria contar uma passagem que aconteceu na porta da igreja lá perto de casa.
– Pois não, pode contar.
– É rapidinho. É que eu estava saindo da missa com um grupo de amigos e ficamos uns minutos conversando na frente da igreja até que um carro, em velocidade, deu uma freada na esquina que assustou a todos nós. Uma senhora do nosso grupo, que passava na esquina no exato momento, ficou tão nervosa que precisou ser amparada. Disse que ficou em estado de choque quando viu que o carro atropelou um rapaz de bicicleta, de leve, mas que o susto foi grande por causa da freada. E a senhora temia pelo pior porque achou que o ciclista era o seu filho. Quando ela chegou perto do nosso grupo disse que estava aliviada, que graças a Deus não era o seu filho. Aí, um amigo a questionou que não era o seu filho, ok, mas era o filho de alguém que tinha sido atropelado. Ele disse: então, o seu filho Deus protege, mas o filho de outra mãe que se dane?
– Que boa história, senhora. Era isso que eu estava falando com o meu amigo. Ué, cadê ele?
– Desculpe, era só isso mesmo que eu queria contar pra vocês – disse a senhora. Na verdade, eu estou esperando o meu filho vir me buscar depois da consulta. Ele trabalha de salva-vidas e está indo pro trabalho daqui a pouco e vai me dar uma carona.
– Que coincidência o seu filho ser guarda-vidas.
– Porquê? O senhor também é?
– Não exatamente. Mas eu acho que nessa vida todos devem ser salvos. Dentro ou fora d’água.
E saíram os dois conversando porta afora.
Esperando pela chegada de Deus.
Ou do salva-vidas.
Adorei! Um viva ao seu Aníbal, e aos guarda-vidas!
ResponderExcluirMuito bom!
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