domingo, 31 de janeiro de 2021

Olívia


No início dos anos 90 havia um projeto de cultura que levava artistas a rodar o Brasil, principalmente fazendo shows nas capitais, fora do chamado eixo do sudeste.

Eram artistas que tinham carreiras consolidadas, mas que, por alguma razão, não eram muito conhecidos fora do circuito onde se apresentavam regularmente. Por isso o projeto.

Vale dizer que, na Bahia, se consome praticamente música baiana. Raramente a pessoa vira o dial e encontra uma estação de rádio tocando outro tipo de música que não seja a baiana. E isso não é só em relação aos anos 90, não. Até hoje é assim.

Pois bem, em Salvador, naquela época, tinha o Teatro Maria Bethânia. Ficava no Largo da Mariquita, no bairro do Rio Vermelho, famoso pelo acarajé da Cira e pela festa de Iemanjá. O teatro, que só programava shows de artistas locais, passou a receber o tal projeto de música e eu vibrava com a programação, principalmente lendo os nomes que iam se apresentar, porque era uma oportunidade para ver aqueles artistas novamente, na cidade onde eu morava, sem ter de viajar até o Rio de Janeiro para isso.

Eu estava no trabalho um dia e vi no jornal a matéria sobre o projeto, informando que o próximo show seria com a cantora Olívia Byington. Para dar a ideia de quem é esta pessoa para mim, basta eu dizer que ela é, até hoje, a única artista a quem eu pedi autógrafo em toda a minha vida.

Alguns anos antes eu a vi num café, dentro do aeroporto Santos Dumont, com seus lindos cabelos longos, e fiquei de longe, uns 10 minutos, tomando coragem. Muito simpática, Olívia nem se importou com o meu embaraço, nem com o fato de a minha caneta ter caído no chão, junto com a agenda que receberia o autógrafo, e tampouco com o fato de que eu, definitivamente, estava nervoso. Então, já com a agenda na mão e de caneta em riste ela perguntou:

– Qual o nome?

E eu respondi:

– Não sei.

– Pro autógrafo – disse, rindo.

– Ah, o meu? É... Anderson?

– Ué, você que sabe... – riu de novo.

– É, é Anderson.

É claro que eu comprei o ingresso pro show e que estava ansioso por rever minha ídola, agora em terras soteropolitanas. Ao rememorar os episódios de shows dela que eu já tinha assistido, dos discos comprados e, claro, da tarde do autógrafo, eu não tinha ideia de que naquele dia algo muito mais surpreendente estava pra acontecer, o que me leva a intuir que a arte deve ser procedente de alguma divindade, com origem em algum outro lugar no tempo e no espaço, que não esse nosso.

Logo nos primeiros minutos do show, os músicos se entreolharam, percebendo alguma coisa estranha no som. No final da segunda música, a própria Olívia falou ao microfone, diretamente com o técnico, pedindo que ele baixasse um pouco o sinal do reverb.

O show prosseguiu, mas, também nós, da plateia, passamos a ouvir alguns ruídos incômodos, o que resultou em novo pedido dela, após outra canção. Dessa vez a cantora reclamou do reverb e que o volume do seu retorno estava alterando no meio da música. Um rapaz entrou no palco apressado. Mexeu nos fios dos microfones, no tripé e depois desceu do palco e sumiu na salinha acesa da técnica, toda envidraçada, que ficava no fundo da plateia.

Todo mundo ali já estava nervoso com o problema no som. Em parte pelo clima de desentendimento entre os artistas e o técnico em si, e de outra parte pela vergonha, pela falta de infraestrutura do teatro e até pela precariedade do equipamento, afinal uma artista como a Olívia, que orbita com a mesma elogiosa competência e qualidade entre o erudito e o popular, certamente merecia um suporte técnico à altura da sua performance.

Da salinha envidraçada veio um novo sinal de ok e assim que a música começou, um novo problema, ou o mesmo problema, ninguém sabia mais nada. Um dos músicos fez um discreto sinal e todos pararam de tocar.

– Vamos fazer o seguinte: – propôs a cantora, falando com o público – se na próxima tentativa o som não funcionar ok, eu saio do microfone e continuo sem ele. Pode ser?

Um sonoro aplauso de carinho soou no teatro, abraçando a proposta da convidada que, para todos os efeitos, representava o seu respeito pelo público, que estava ali pra assistir a uma apresentação musical.

O fato é que, mesmo já sabendo do combinado – e tenho a forte desconfiança de que uma boa parte do público, no fundo, torcia justamente por ouvi-la cantar fora do microfone, como prometido – mesmo assim, o que se viu e ouviu naquela noite foi algo surpreendente. Inesquecível.

A introdução da música é linda, o gesto com a cabeça do pianista é a deixa para a cantora e, naquele instante mágico, uma voz lírica surge no meio da harmonia e vai se tornando cada vez mais forte à medida em que Olívia Byington deixa o microfone e se dirige até a frente do palco. Ela traz as duas mãos unidas pelas palmas, em posição horizontal, do modo como se postam em cena as maiores divas do canto operístico.

Ela não para de cantar em meio aos estrondosos aplausos e apenas sorri em agradecimento. Enquanto isso gesticula, interpreta a canção, e olha a todos nos olhos, com o orgulho de estar cumprindo o seu papel e de finalmente poder exibir o dom que todos ali vieram testemunhar, com alguma reverência.

Mais espetacular do que aquela voz, destinada a jamais precisar de amplificação alguma, foi a lembrança que ficou daquela noite. Uma noite em que eu vi uma querida cantora lírica abandonar o microfone e ir cantar na frente do palco. Que tinha dois metros de altura no início da música, mas que, ao final, já quase na ribalta, acabou com mais de quatro metros, de braços abertos, como um anjo que nos convida a voar.

E eu fui.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Epifanias


O mundo passou o último ano falando de Covid-19. O mundo vai passar o ano de 2021 falando de vacina. Certo é que, entre um assunto e outro, estão as responsabilidades de cada ser humano, em que parte do mundo ele estiver, e o papel dos gestores, governantes, médicos e cientistas nessa louca ocorrência pandêmica.

As notícias se sucedem a cada minuto, com seus gráficos, percentuais, medidas protetivas, lockdown e orientações de conduta emitidas pelas autoridades de saúde. E para fechar o arco das tristes atualizações de mortes e os esforços sobre a chegada das vacinas, surgem os jornalistas das redes de tevê e seus estúdios laboratórios a analisar a conjuntura da pandemia.

Faceiros, trajando suas roupas de festa, a sensação é de que estão se esgueirando da verdade, aqui e ali, como fazem os jogadores da barreira para não levar uma bolada nas ventas. As maiores barbaridades acontecem, viram notícia, e, em suas análises dos fatos, eles fazem um esforço contorcionista para se desviar do objeto central que é o entendimento perpétuo e equivocado de um indivíduo sobre a vida e a existência.

O sujeito tripudia das mortes, faz propaganda de remédio não indicado, faz apologia da tortura, enfim, não faz nada do que as autoridades de saúde recomendam, pelo contrário, faz questão de propor atos indevidos e incorretos, sempre achando uma frase que nos remete a um ser com grau considerável de psicopatia. Um presidoente.

Então, singelamente, no final da tal reportagem, surge novamente o desbotado coadjuvante com a tarefa de se indignar, de apontar as loucuras, os despautérios e os arroubos do dito ser, como se tudo aquilo fosse uma estrepitosa novidade a pegar todo o país de surpresa. Como se ele, jornalista, não fosse o primeiro culpado pela ascensão do mal e da ignorância que ele ajudou a promover.

E é exatamente nessa hora H, do dia D – frase da moda neste país belígero – que eu me pego falando sozinho, mais precisamente com a televisão, respondendo aos jornalistas, pinçando alguns impropérios e conclamando os almofadinhas de dentro do vídeo a assumir as suas responsabilidades pela existência daquele coisa na mesa em que se encontra.

– Onde vocês estavam no período da eleição? Quem indicaram, por meses a fio, como o melhor candidato? E as mentiras que contaram sobre ambos? E os vazamentos privilegiados? Quais comparações torpes vocês fizeram ao longo dos meses, ao apontar um demente como opção a um professor universitário, ex-prefeito da maior cidade do país? Como vocês vêm agora se dizendo surpresos com tudo isso?

No mesmo instante em que eu acabava de dizer essas palavras já me pegava rindo de mim mesmo, pensando no meu avô que também falava com a tevê, lá atrás, no tempo do Brizola.

Na minha epifania eu estou entrando pela redação desses jornais, abrindo cada porta, de cada sala, e notando as pessoas se esgueirando, se escondendo, se esquivando de responder quem votou nele. Então, aos poucos que eu consigo encarar, que não conseguem fugir, eu repito firme a pergunta e ouço como resposta o singelo e titubeante “não fui eu”.

– Agora não foi ninguém. Assim é fácil – rebato, contrariado.

Preocupado com esses meus arroubos, com a insanidade de responder pra tevê com vigor desproporcional, outro dia eu estava conversando com um amigo, jornalista, do Rio. A gente comentava diversos assuntos, desde futebol até a fatídica vacina, passando pela política e o confinamento extenuante junto com o trabalho remoto. Enfim, tudo junto, como deve ser um bom papo.

De repente, ele começou a enumerar os colegas que passaram a apresentar problemas psicológicos durante o confinamento. Falou que se tratava de uma fase difícil pra todos nós, tanto econômica como socialmente, esta última por não estarmos acostumados a um tipo de vida, de pouco contato com os amigos e familiares. Pra ele, tudo isso ainda vai trazer problemas. Alguns deles, de certo, só bem mais tarde a gente vai perceber.

Por um momento deu-se um silêncio na ligação, e ele já emendou na prosa:

– Meu amigo, vou te contar uma coisa. Eu acho que estou ficando doido de vez. Eu agora dei pra falar com a tevê. Dei pra responder aos apresentadores de jornais, xingando, os chamando de vendidos, de covardes. Eles falam as maiores barbaridades de lá e eu rebato tudo daqui, perguntando até em quem eles votaram pra estar tão indignados e surpresos como estão.

Quando senti a minha deixa, pra eu então contar que também falo com o jornal da tevê, ele continuou:

– Eu já estou ficando preocupado com isso. Não tem mais um jornal que eu não responda os caras. Tô ficando doido de pedra. Só pode. E se tem alguma coisa boa nisso é que, com tanta barbárie acontecendo, eu trago a consciência tranquila por não ter contribuído pra esse país estar assim. Quando alguém arrependido vem chorar do meu lado, e tem muita gente assim, pois só de cunhados amarelos eu tenho três, uma coisa que eu faço questão de dizer é um sonoro “não fui eu”. Veja só, o cara votou na arminha? Agora assume a bronca, a culpa de cada um. Tranquilo. Só que tem uns aí que se escamoteiam, ficam ali quietinhos e choram nos cantinhos. Olha, meu amigo, eu falo com a tevê, ok, mas todos eles sabiam dessa história desde o início.

Eu fiquei tão aliviado com a coisa toda que nem consegui dar a ele o consolo de saber que o seu amigo sofre do mesmíssimo mal. Que temos ambos, invariavelmente, a mesma divina epifania. E que, com alguma frequência, este seu parceiro de jornalismo também diz pro moço da tevê o memorioso “não fui eu”.

E dá boa noite.