No início dos anos 90 havia um projeto de cultura que levava artistas a rodar o Brasil, principalmente fazendo shows nas capitais, fora do chamado eixo do sudeste.
Eram artistas que tinham carreiras consolidadas, mas que, por alguma razão, não eram muito conhecidos fora do circuito onde se apresentavam regularmente. Por isso o projeto.
Vale dizer que, na Bahia, se consome praticamente música baiana. Raramente a pessoa vira o dial e encontra uma estação de rádio tocando outro tipo de música que não seja a baiana. E isso não é só em relação aos anos 90, não. Até hoje é assim.
Pois bem, em Salvador, naquela época, tinha o Teatro Maria Bethânia. Ficava no Largo da Mariquita, no bairro do Rio Vermelho, famoso pelo acarajé da Cira e pela festa de Iemanjá. O teatro, que só programava shows de artistas locais, passou a receber o tal projeto de música e eu vibrava com a programação, principalmente lendo os nomes que iam se apresentar, porque era uma oportunidade para ver aqueles artistas novamente, na cidade onde eu morava, sem ter de viajar até o Rio de Janeiro para isso.
Eu estava no trabalho um dia e vi no jornal a matéria sobre o projeto, informando que o próximo show seria com a cantora Olívia Byington. Para dar a ideia de quem é esta pessoa para mim, basta eu dizer que ela é, até hoje, a única artista a quem eu pedi autógrafo em toda a minha vida.
Alguns anos antes eu a vi num café, dentro do aeroporto Santos Dumont, com seus lindos cabelos longos, e fiquei de longe, uns 10 minutos, tomando coragem. Muito simpática, Olívia nem se importou com o meu embaraço, nem com o fato de a minha caneta ter caído no chão, junto com a agenda que receberia o autógrafo, e tampouco com o fato de que eu, definitivamente, estava nervoso. Então, já com a agenda na mão e de caneta em riste ela perguntou:
– Qual o nome?
E eu respondi:
– Não sei.
– Pro autógrafo – disse, rindo.
– Ah, o meu? É... Anderson?
– Ué, você que sabe... – riu de novo.
– É, é Anderson.
É claro que eu comprei o ingresso pro show e que estava ansioso por rever minha ídola, agora em terras soteropolitanas. Ao rememorar os episódios de shows dela que eu já tinha assistido, dos discos comprados e, claro, da tarde do autógrafo, eu não tinha ideia de que naquele dia algo muito mais surpreendente estava pra acontecer, o que me leva a intuir que a arte deve ser procedente de alguma divindade, com origem em algum outro lugar no tempo e no espaço, que não esse nosso.
Logo nos primeiros minutos do show, os músicos se entreolharam, percebendo alguma coisa estranha no som. No final da segunda música, a própria Olívia falou ao microfone, diretamente com o técnico, pedindo que ele baixasse um pouco o sinal do reverb.
O show prosseguiu, mas, também nós, da plateia, passamos a ouvir alguns ruídos incômodos, o que resultou em novo pedido dela, após outra canção. Dessa vez a cantora reclamou do reverb e que o volume do seu retorno estava alterando no meio da música. Um rapaz entrou no palco apressado. Mexeu nos fios dos microfones, no tripé e depois desceu do palco e sumiu na salinha acesa da técnica, toda envidraçada, que ficava no fundo da plateia.
Todo mundo ali já estava nervoso com o problema no som. Em parte pelo clima de desentendimento entre os artistas e o técnico em si, e de outra parte pela vergonha, pela falta de infraestrutura do teatro e até pela precariedade do equipamento, afinal uma artista como a Olívia, que orbita com a mesma elogiosa competência e qualidade entre o erudito e o popular, certamente merecia um suporte técnico à altura da sua performance.
Da salinha envidraçada veio um novo sinal de ok e assim que a música começou, um novo problema, ou o mesmo problema, ninguém sabia mais nada. Um dos músicos fez um discreto sinal e todos pararam de tocar.
– Vamos fazer o seguinte: – propôs a cantora, falando com o público – se na próxima tentativa o som não funcionar ok, eu saio do microfone e continuo sem ele. Pode ser?
Um sonoro aplauso de carinho soou no teatro, abraçando a proposta da convidada que, para todos os efeitos, representava o seu respeito pelo público, que estava ali pra assistir a uma apresentação musical.
O fato é que, mesmo já sabendo do combinado – e tenho a forte desconfiança de que uma boa parte do público, no fundo, torcia justamente por ouvi-la cantar fora do microfone, como prometido – mesmo assim, o que se viu e ouviu naquela noite foi algo surpreendente. Inesquecível.
A introdução da música é linda, o gesto com a cabeça do pianista é a deixa para a cantora e, naquele instante mágico, uma voz lírica surge no meio da harmonia e vai se tornando cada vez mais forte à medida em que Olívia Byington deixa o microfone e se dirige até a frente do palco. Ela traz as duas mãos unidas pelas palmas, em posição horizontal, do modo como se postam em cena as maiores divas do canto operístico.
Ela não para de cantar em meio aos estrondosos aplausos e apenas sorri em agradecimento. Enquanto isso gesticula, interpreta a canção, e olha a todos nos olhos, com o orgulho de estar cumprindo o seu papel e de finalmente poder exibir o dom que todos ali vieram testemunhar, com alguma reverência.
Mais espetacular do que aquela voz, destinada a jamais precisar de amplificação alguma, foi a lembrança que ficou daquela noite. Uma noite em que eu vi uma querida cantora lírica abandonar o microfone e ir cantar na frente do palco. Que tinha dois metros de altura no início da música, mas que, ao final, já quase na ribalta, acabou com mais de quatro metros, de braços abertos, como um anjo que nos convida a voar.
E eu fui.