O mundo passou o último ano falando de Covid-19. O mundo vai passar o ano de 2021 falando de vacina. Certo é que, entre um assunto e outro, estão as responsabilidades de cada ser humano, em que parte do mundo ele estiver, e o papel dos gestores, governantes, médicos e cientistas nessa louca ocorrência pandêmica.
As notícias se sucedem a cada minuto, com seus gráficos, percentuais, medidas protetivas, lockdown e orientações de conduta emitidas pelas autoridades de saúde. E para fechar o arco das tristes atualizações de mortes e os esforços sobre a chegada das vacinas, surgem os jornalistas das redes de tevê e seus estúdios laboratórios a analisar a conjuntura da pandemia.
Faceiros, trajando suas roupas de festa, a sensação é de que estão se esgueirando da verdade, aqui e ali, como fazem os jogadores da barreira para não levar uma bolada nas ventas. As maiores barbaridades acontecem, viram notícia, e, em suas análises dos fatos, eles fazem um esforço contorcionista para se desviar do objeto central que é o entendimento perpétuo e equivocado de um indivíduo sobre a vida e a existência.
O sujeito tripudia das mortes, faz propaganda de remédio não indicado, faz apologia da tortura, enfim, não faz nada do que as autoridades de saúde recomendam, pelo contrário, faz questão de propor atos indevidos e incorretos, sempre achando uma frase que nos remete a um ser com grau considerável de psicopatia. Um presidoente.
Então, singelamente, no final da tal reportagem, surge novamente o desbotado coadjuvante com a tarefa de se indignar, de apontar as loucuras, os despautérios e os arroubos do dito ser, como se tudo aquilo fosse uma estrepitosa novidade a pegar todo o país de surpresa. Como se ele, jornalista, não fosse o primeiro culpado pela ascensão do mal e da ignorância que ele ajudou a promover.
E é exatamente nessa hora H, do dia D – frase da moda neste país belígero – que eu me pego falando sozinho, mais precisamente com a televisão, respondendo aos jornalistas, pinçando alguns impropérios e conclamando os almofadinhas de dentro do vídeo a assumir as suas responsabilidades pela existência daquele coisa na mesa em que se encontra.
– Onde vocês estavam no período da eleição? Quem indicaram, por meses a fio, como o melhor candidato? E as mentiras que contaram sobre ambos? E os vazamentos privilegiados? Quais comparações torpes vocês fizeram ao longo dos meses, ao apontar um demente como opção a um professor universitário, ex-prefeito da maior cidade do país? Como vocês vêm agora se dizendo surpresos com tudo isso?
No mesmo instante em que eu acabava de dizer essas palavras já me pegava rindo de mim mesmo, pensando no meu avô que também falava com a tevê, lá atrás, no tempo do Brizola.
Na minha epifania eu estou entrando pela redação desses jornais, abrindo cada porta, de cada sala, e notando as pessoas se esgueirando, se escondendo, se esquivando de responder quem votou nele. Então, aos poucos que eu consigo encarar, que não conseguem fugir, eu repito firme a pergunta e ouço como resposta o singelo e titubeante “não fui eu”.
– Agora não foi ninguém. Assim é fácil – rebato, contrariado.
Preocupado com esses meus arroubos, com a insanidade de responder pra tevê com vigor desproporcional, outro dia eu estava conversando com um amigo, jornalista, do Rio. A gente comentava diversos assuntos, desde futebol até a fatídica vacina, passando pela política e o confinamento extenuante junto com o trabalho remoto. Enfim, tudo junto, como deve ser um bom papo.
De repente, ele começou a enumerar os colegas que passaram a apresentar problemas psicológicos durante o confinamento. Falou que se tratava de uma fase difícil pra todos nós, tanto econômica como socialmente, esta última por não estarmos acostumados a um tipo de vida, de pouco contato com os amigos e familiares. Pra ele, tudo isso ainda vai trazer problemas. Alguns deles, de certo, só bem mais tarde a gente vai perceber.
Por um momento deu-se um silêncio na ligação, e ele já emendou na prosa:
– Meu amigo, vou te contar uma coisa. Eu acho que estou ficando doido de vez. Eu agora dei pra falar com a tevê. Dei pra responder aos apresentadores de jornais, xingando, os chamando de vendidos, de covardes. Eles falam as maiores barbaridades de lá e eu rebato tudo daqui, perguntando até em quem eles votaram pra estar tão indignados e surpresos como estão.
Quando senti a minha deixa, pra eu então contar que também falo com o jornal da tevê, ele continuou:
– Eu já estou ficando preocupado com isso. Não tem mais um jornal que eu não responda os caras. Tô ficando doido de pedra. Só pode. E se tem alguma coisa boa nisso é que, com tanta barbárie acontecendo, eu trago a consciência tranquila por não ter contribuído pra esse país estar assim. Quando alguém arrependido vem chorar do meu lado, e tem muita gente assim, pois só de cunhados amarelos eu tenho três, uma coisa que eu faço questão de dizer é um sonoro “não fui eu”. Veja só, o cara votou na arminha? Agora assume a bronca, a culpa de cada um. Tranquilo. Só que tem uns aí que se escamoteiam, ficam ali quietinhos e choram nos cantinhos. Olha, meu amigo, eu falo com a tevê, ok, mas todos eles sabiam dessa história desde o início.
Eu fiquei tão aliviado com a coisa toda que nem consegui dar a ele o consolo de saber que o seu amigo sofre do mesmíssimo mal. Que temos ambos, invariavelmente, a mesma divina epifania. E que, com alguma frequência, este seu parceiro de jornalismo também diz pro moço da tevê o memorioso “não fui eu”.
E dá boa noite.
Esse texto é vitamina, essência de utilidade pública, o mundo vai passar 2021, espero que passe bem, mas essas palavras vão ficar pra gente não esquecer de sempre lembrar de exercer cidadania.
ResponderExcluirA boa crônica é aquela que nos deixa pensando! Neste sentido, esta é ótima (nos outros também!)! E me lembra um termo fora de uso, porém que, na presente circunstância, merece restauração: Estupefaciente!
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