quarta-feira, 30 de junho de 2021

O Advogado

 

Todo mundo concorda que, nessa vida, a melhor coisa é ter um amigo advogado pra nos aconselhar em momentos adversos. Às vezes um simples alerta, vindo de alguém que conhece os códigos e as leis, pode fazer toda a diferença entre estar em maus lençóis e continuar em liberdade.

Foi então, naquela noite de sexta-feira, que o telefone do advogado tocou e ele imediatamente percebeu que seu amigo não tinha dado ouvidos às suas recomendações acerca de um vizinho, com quem as desavenças já vinham de um bom tempo empilhando capítulos e mais capítulos, em um folhetim que se mostrava, ao mesmo tempo, suburbano e policialesco, só pra dizer o mínimo.

– Doutor, do nada ele parou na calçada em frente lá de casa e ficou apontando pra mim. Isso de tarde, no meio da tarde. Eu estava no telefone, na janela, e não podia ouvir o que ele falava. Só sei que ele estava ao lado de um sujeito, que eu não conheço, e apontava na minha direção várias vezes.

– Isso não está me cheirando bem. Mas vai, prossiga.

– Depois que desliguei o celular eu fui lá no bar falar com ele, saber porque ele estava me apontando. Mas aí ele não estava mais com o outro cara e se acovardou. Disse que a rua era pública e que não tinha que me dar satisfações. Nessa hora eu estava até bem calmo e só disse que se ele fizesse aquilo de novo, apontando pra minha casa, eu ia encher a cara dele. Disse na frente de todo mundo no bar pra mostrar que eu não estava ameaçando e, sim, apenas avisando. E quem avisa, amigo é.

– Mas isso já é ameaça, rapaz. Avisar é uma coisa. Dizer que vai quebrar a cara é outra, bem diferente.

– Eu fiquei no bar ainda um tempo. Depois, de noitinha, eu fui pra casa ver o jogo e estava na paz.

– Ainda estou sentindo um cheiro bem ruim do que vem pela frente.

– Como eu estava dizendo, eu estava na paz, vendo o jogo, quando bateram na porta. Era o filho de uma égua e trazia um policial junto. O guarda disse que ele tinha feito uma ocorrência e chamado a patrulha porque eu tinha prometido ensopar a cara dele. Eu estava bem calmo e expliquei pra autoridade que eu nunca falei em ensopar ninguém, e que eu apenas tinha avisado que o comportamento dele, vindo pra frente da minha casa, apontando o dedo daquele jeito, não era legal.

– Sim, ok. E o que disse o policial?

– Ele contou que a partir do chamado ia abrir a tal ocorrência e que eu ia ter de explicar a minha atitude em juízo e que ia ser agendada uma sessão de arrumação.

– Seria audiência de conciliação?

– Isso. Isso mesmo, doutor. O senhor é mesmo foda. Mas só que, nesse momento, tudo o que eu falava, tentando narrar o que aconteceu no bar, ele me cortava. O guarda mandou ele ficar calado umas três vezes e ele insistia em me interromper, dizendo que eu estava mentindo, que eu estava inventando, que ele não disse tal coisa, que ele não me xingou, aí eu fui me enraivando e buff, dei um socão na testa dele. Era pra pegar no lado do rosto, na lateral, sabe? Mas acabou que pegou na testa.

– Na frente do policial!

– Isso mesmo. Na frente do guarda. Na porta da minha casa.

– Minha nossa.

– Essas coisas, essas batidas na testa, doutor, são chatas porque incham na hora. Faz um galo. Fica feio mesmo. E olha que nem foi tão forte assim a pancada. Mas, na testa, o inchaço é na hora mesmo. Aí, depois de uns minutos, o guarda levantou do chão o tonto, com o galo, e disse que ia ter de me levar pra delegacia, que ele não tinha outra saída, já que eu tinha agredido o próprio reclamante, no caso o meu vizinho, na frente da autoridade, no caso o policial. Ele quis até me algemar e tudo, mas aí eu disse que eu ia ficar tranquilo, que eu era uma boa pessoa, e ele mudou de ideia.

– Ah, claro. Ótima pessoa. Já vi tudo. Você então está na delegacia, né? Tá me ligando na frente do delegado.

– Exatamente doutor. O delegado fez essa caridade pra mim e deixou ligar pro senhor.

– O problema é que eu vou demorar pra chegar aí. Essa delegacia é longe daqui de casa e eu estava indo tomar banho nesse momento. Veja se eu não posso ajudar daqui mesmo, talvez falando com o delegado por celular, que aí a gente já vê o que pode ou não fazer.

– Não chefia. Não precisa vir na delegacia não. Eu só liguei porque queria saber sobre um papel que o delegado quer que eu assine aqui. Sabe como é, eu não assino nada sem o meu advogado dar um ok.

– Sei. Pra dar um soco na cara do vizinho você não me liga antes, né? Agora, pra assinar a ocorrência na delegacia, aí precisa do advogado. Onde eu fui amarrar a minha zebra!

– O delegado conversou comigo e disse que eu tenho de assinar um boletim de agressão. E que depois eu vou ter de vir na delegacia pra esclarecer, pra ser interrogado e tal, e que o juiz vai decidir a pena depois, quando for ler todo o processo.

– Tá. Os termos não são exatamente esses, mas você entendeu bem o trâmite daqui em diante. Bem, sim, você deve assinar esse termo, esse B.O. do delegado, e saiba que nesse tempo em que o processo está correndo você não pode se envolver em nenhum delito. Nenhum, entendeu? É como se fosse uma condicional.

– Tranquilo, doutor. Condicional eu entendo o que é. Já vi muitos filmes em que os caras estavam em condicional.

– Isso mesmo. É essa condicional mesmo que eu estou falando.

No mesmo instante em que o advogado encerrou a ligação, o delegado voltou pra sua mesa com um copo de café. Lentamente, ele pegou o papel, leu em voz alta e perguntou se o agressor tinha alguma dúvida, se precisava de algum esclarecimento.

– Não senhor. Nenhuma dúvida. Falei com o advogado e está tudo esclarecido.

– Assim é bem melhor.

– Mas, me diga só uma coisinha: o que acontece se eu me recusar a assinar esse papel? Nesse país, ninguém é obrigado a fazer nada que não queira. Não é assim a lei? Então, se eu não quiser assinar esse termo aí, eu não assino e pronto. Quem vai me obrigar, não é mesmo?

Primeiro suspirando e depois bufando, após virar na boca o resto do café, o delegado franziu a testa com alguma surpresa.

– Bem, o senhor tem todo o direito de não assinar. Realmente, nesse país ninguém é obrigado a nada. Eu mesmo não posso obrigá-lo a assinar este termo. Mas nesse caso eu vou ter de prendê-lo. Imediatamente. Simples assim. Tenho de mandá-lo pra carceragem, que fica bem ali do lado. Sabe o que é isso? Cana, detenção, xilindró.

– Qual a linha mesmo que eu assino, doutor?

E o caso foi encerrado singelamente, com alguns breves sorrisos de parte a parte.

De alívio, por parte do delegado, que já buscava por outro café.

De nervoso, por parte do corajoso cidadão. Um sortudo que tem um amigo de infância que se tornou advogado.

Pobre advogado.



sexta-feira, 18 de junho de 2021

A Febre


Meus pais moravam na rota do aeroporto Tom Jobim. E toda vez que eu ia ao Rio meu pai recomendava, em tom de troça, que nas proximidades da aterrissagem eu deveria abrir a janelinha do avião e dar um tchauzinho pra baixo, pois nesse momento ele estaria olhando da varanda de casa.

Uma dessas vezes eu cheguei um tanto debilitado, até pensando em esconder deles um possível estado febril. Não era nada grave, mas sim uma incômoda falta de energia, de forças, algo parecendo com os sintomas da dengue, que era muito comum naquela época.

Eu não tinha vontade de comer nada. Sentia que nada passaria na minha garganta sem uma boa dose de esforço, de quebra com alguma ânsia, de modo a dificultar o que já estava complicado. Minha mãe repetia a todo instante que sem comer não tem como a pessoa melhorar, e eu tornava a avaliar alguma comida, sem que surgisse o menor ânimo para tal.

As horas se passaram e, já quase pelas 10 da noite, meu pai voltou da cozinha com um mingau de leite. Botou o prato na mesa e voltou pra buscar uma colher, um copo e um guardanapo. O cheiro daquele mingau estava demais. Entrou pelo meu nariz e, surpreendentemente, considerando a minha falta de apetite recente, deu até água na boca.

Assim que sentou à mesa meu pai se virou pra mim e disse:

– Quer provar? Está quentinho?

O aroma, o visual do prato, com a colher e o guardanapo arrumadinhos na mesa, ajudaram a compor o cenário, de modo a ser impossível pra mim recusar o doce. Eu até que me esforcei, dizendo que aquele mingau era dele, que ele tinha preparado pra si, que eu ainda não tinha certeza se ia querer comer e tal, mas nessa altura ele já tinha se levantado e me dado o lugar na mesa.

– Então, senta aqui, come a quantidade que você quiser e depois eu faço um outro pra mim. Tranquilo. Não se preocupa.

Eu devorei o mingau. Quentinho, refazedor, restaurador, um santo remédio pra, sei lá, o que fosse que eu tinha. Enquanto eu comia, ficamos ali conversando os três e, mesmo quando eu terminei, a conversa foi ainda longe, eu na mesa e meus pais no sofá, como que me assistindo comer o mingau e depois contar os meus causos de sempre, da vida em Floripa e do trabalho.

Quando meu pai anunciou que ia dormir e veio dar boa noite eu nem me dei conta de que, afinal, ele não tinha feito outro mingau pra ele. Na hora, sumiu da minha percepção. E quando mais tarde eu perguntei pra minha mãe, pra que ela me esclarecesse o que tinha acontecido, ela maneou a cabeça:

– Olha, filho, eu nem me lembro a última vez que o seu pai comeu mingau de maisena. Na verdade, eu juro, nem achei que ele sabia fazer esse mingau. Esse e qualquer outro. Mas, não sei te dizer a razão disso e nem o que aconteceu pra ele não fazer um outro pra ele comer. Eu também não entendi muito. Mas não esquenta.

A porta do quarto ficava entreaberta e eu pude parar bem em frente a ela. Fiquei ali, perdido em mil suposições, olhando o meu pai dormir e agradecendo a ele, em pensamento, pelo mingau.

Na manhã seguinte, minha mãe fazia as recomendações de praxe, pra telefonar assim chegasse em casa, quando meu pai surgiu com a minha mochila nas costas, dizendo que ia me levar até o taxi.

Caminhamos juntos até a frente da vila e o carro logo chegou. Ele me perguntou como eu estava me sentindo e eu disse que estava bem melhor.

– Muito melhor depois daquele “seu” mingau – falei, procurando os seus olhos.

– Que bom. Então deu tudo certo.

Foi então que eu percebi que o plano do meu pai era mesmo fazer o mingau pra mim, e não pra ele. Era isso. Desde o início. A ficha acabou de cair. Quando ele veio pra mesa já estava com tudo planejado. Fingiu que o doce era pra ele, que não tinha sido feito especialmente pra mim, embora a ideia fosse que ao menos eu experimentasse e aí eu já teria sido fisgado. Plano de pai, enfim.

Assim que eu entrei no taxi ele fez um sinal e eu baixei o vidro. Depois de cumprimentar o motorista, virou pra mim e, com o velho risinho no rosto, começou:

– Quando o avião decolar e passar aqui por cima, não esquece de abrir a janelinha e dar um tchauzinho pra baixo, que eu vou estar aqui olhando, tá?

Eu concordei, rindo também, e o carro partiu.

Me olhando pelo retrovisor, o homem até quis perguntar algo sobre a abertura da tal janelinha do avião. Mas, percebeu, pela minha fisionomia, que aquela era uma piada interna entre pai e filho e apenas balbuciou um leve “Ok, entendi”, encerrando o assunto e maneando a cabeça, enquanto continuava a dirigir.


Algumas histórias sobre o meu pai voltam sempre a esse blog. E eu dou graças, sempre que me lembro de uma nova, como essa aqui.

Recentemente, depois de um tratamento de dentes, bem dolorido e de recuperação demorada, fiquei um tempo em convalescença, com certa dificuldade pra comer e dormir. Encolhido pela dor no canto do sofá, em algumas noites me deparei com a lembrança daquele mingau.

Do meu pai. Querido pai.