Meus pais moravam na rota do aeroporto Tom Jobim. E toda vez que eu ia ao Rio meu pai recomendava, em tom de troça, que nas proximidades da aterrissagem eu deveria abrir a janelinha do avião e dar um tchauzinho pra baixo, pois nesse momento ele estaria olhando da varanda de casa.
Uma dessas vezes eu cheguei um tanto debilitado, até pensando em esconder deles um possível estado febril. Não era nada grave, mas sim uma incômoda falta de energia, de forças, algo parecendo com os sintomas da dengue, que era muito comum naquela época.
Eu não tinha vontade de comer nada. Sentia que nada passaria na minha garganta sem uma boa dose de esforço, de quebra com alguma ânsia, de modo a dificultar o que já estava complicado. Minha mãe repetia a todo instante que sem comer não tem como a pessoa melhorar, e eu tornava a avaliar alguma comida, sem que surgisse o menor ânimo para tal.
As horas se passaram e, já quase pelas 10 da noite, meu pai voltou da cozinha com um mingau de leite. Botou o prato na mesa e voltou pra buscar uma colher, um copo e um guardanapo. O cheiro daquele mingau estava demais. Entrou pelo meu nariz e, surpreendentemente, considerando a minha falta de apetite recente, deu até água na boca.
Assim que sentou à mesa meu pai se virou pra mim e disse:
– Quer provar? Está quentinho?
O aroma, o visual do prato, com a colher e o guardanapo arrumadinhos na mesa, ajudaram a compor o cenário, de modo a ser impossível pra mim recusar o doce. Eu até que me esforcei, dizendo que aquele mingau era dele, que ele tinha preparado pra si, que eu ainda não tinha certeza se ia querer comer e tal, mas nessa altura ele já tinha se levantado e me dado o lugar na mesa.
– Então, senta aqui, come a quantidade que você quiser e depois eu faço um outro pra mim. Tranquilo. Não se preocupa.
Eu devorei o mingau. Quentinho, refazedor, restaurador, um santo remédio pra, sei lá, o que fosse que eu tinha. Enquanto eu comia, ficamos ali conversando os três e, mesmo quando eu terminei, a conversa foi ainda longe, eu na mesa e meus pais no sofá, como que me assistindo comer o mingau e depois contar os meus causos de sempre, da vida em Floripa e do trabalho.
Quando meu pai anunciou que ia dormir e veio dar boa noite eu nem me dei conta de que, afinal, ele não tinha feito outro mingau pra ele. Na hora, sumiu da minha percepção. E quando mais tarde eu perguntei pra minha mãe, pra que ela me esclarecesse o que tinha acontecido, ela maneou a cabeça:
– Olha, filho, eu nem me lembro a última vez que o seu pai comeu mingau de maisena. Na verdade, eu juro, nem achei que ele sabia fazer esse mingau. Esse e qualquer outro. Mas, não sei te dizer a razão disso e nem o que aconteceu pra ele não fazer um outro pra ele comer. Eu também não entendi muito. Mas não esquenta.
A porta do quarto ficava entreaberta e eu pude parar bem em frente a ela. Fiquei ali, perdido em mil suposições, olhando o meu pai dormir e agradecendo a ele, em pensamento, pelo mingau.
Na manhã seguinte, minha mãe fazia as recomendações de praxe, pra telefonar assim chegasse em casa, quando meu pai surgiu com a minha mochila nas costas, dizendo que ia me levar até o taxi.
Caminhamos juntos até a frente da vila e o carro logo chegou. Ele me perguntou como eu estava me sentindo e eu disse que estava bem melhor.
– Muito melhor depois daquele “seu” mingau – falei, procurando os seus olhos.
– Que bom. Então deu tudo certo.
Foi então que eu percebi que o plano do meu pai era mesmo fazer o mingau pra mim, e não pra ele. Era isso. Desde o início. A ficha acabou de cair. Quando ele veio pra mesa já estava com tudo planejado. Fingiu que o doce era pra ele, que não tinha sido feito especialmente pra mim, embora a ideia fosse que ao menos eu experimentasse e aí eu já teria sido fisgado. Plano de pai, enfim.
Assim que eu entrei no taxi ele fez um sinal e eu baixei o vidro. Depois de cumprimentar o motorista, virou pra mim e, com o velho risinho no rosto, começou:
– Quando o avião decolar e passar aqui por cima, não esquece de abrir a janelinha e dar um tchauzinho pra baixo, que eu vou estar aqui olhando, tá?
Eu concordei, rindo também, e o carro partiu.
Me olhando pelo retrovisor, o homem até quis perguntar algo sobre a abertura da tal janelinha do avião. Mas, percebeu, pela minha fisionomia, que aquela era uma piada interna entre pai e filho e apenas balbuciou um leve “Ok, entendi”, encerrando o assunto e maneando a cabeça, enquanto continuava a dirigir.
Algumas histórias sobre o meu pai voltam sempre a esse blog. E eu dou graças, sempre que me lembro de uma nova, como essa aqui.
Recentemente, depois de um tratamento de dentes, bem dolorido e de recuperação demorada, fiquei um tempo em convalescença, com certa dificuldade pra comer e dormir. Encolhido pela dor no canto do sofá, em algumas noites me deparei com a lembrança daquele mingau.
Do meu pai. Querido pai.
Tem coisas entre pai e filho que só pai e filho entendem, eu sou pai e tenho muitas historias com meus filhos, só não sei contar com a sua graça! Mas tem uma que vale a pena tentar contar, o Daniel e a Fernanda, meus dois filhos menores, estudavam no colégio em Chapecó, na saída do colégio havia uma fruteira de um amigomeu, ao chegar em frente a colégio, para apanha-mos, tarefa diária, eu percebi que os dois estavam dentro da fruteira, ambos chorando, eu logo questionei meu amigo, o que houve com os meninos? Meu amigo surpreso e já preocupado, tentou me explicar que, diariamente ele sofria pequenos furtos de michiricas pela criançada que esperavam a carononas de seis país e que por sorte sua e azar do Daniel e da Fernanda ele os frágou roubando michiricas, a Fernanda mais que de pressa tentou justificar que eles estavam com muita vontade de comer a tal michiricas. Eu como bom pai, comprei logo um saco de michiricas, me desculpei com o quitandeiro e fui pra casa, não precisa dizer que o silêncio na pequena viagem foi ensurdecedor! O silêncio só foi quebrado quando chegamos em casa e eu comecei a descascar as michiricas e pedi gentilmente que eles as comessem, uma a uma, até o último gominho! Toda vez que nós encontramos, o que é bem raro, eles fazem questão de contar essa história, e claro, dizer o quanto eu era cruel.
ResponderExcluirAh, o título não representa o texto, teria de ser a meu ver: mingau, o alimento de corpo e alma. Ou um anjo de pai. Já o amigo do comentário acima entrou pros anais da psicologia com o trauma da mixirica... Ah, que p... saudade de papai, meu anjo protetor...
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