O chefe do setor de transporte, lá onde eu trabalhava, era o Elias. Mas ele gostava de ser chamado de Rasputin. Não sei se ele conhecia o russo famoso, meio santo, meio bruxo, mas, no seu caso, o apelido era incentivado em razão de um excêntrico lutador de luta livre dos anos 60 e 70, tempo em que aquele duvidoso entretenimento televisivo fazia muito sucesso. Em suma, o cara era forte!
Eu digo entretenimento duvidoso porque estava na cara que ali era tudo ensaiado, armado, combinado e todas as lutas tinham um quê de artificialidade, deixando bem evidente o mocinho e o bandido do dia. O script era sempre o mesmo, similar ao das novelas: para que o mocinho triunfasse no final tinha de apanhar feio até o último assalto, quando então ele ressurgia do mundo dos derrotados para abater o malvado que, eventualmente, desafiava a todos na plateia, sem o menor pudor ou sentido esportivo.
Entrando na minha sala naquele dia, o Elias, ou melhor o Rasputin, cruzou com o sujeito que saía, com quem eu havia feito uma ficha de adesão a um grupo de consórcio de um carro. Tempos difíceis e de inflação alta, o consórcio era uma coisa bem popular e viável pois não tinha praticamente juros e a pessoa ia pagando até que um dia fosse sorteado ou que terminassem as parcelas. Das duas formas o bem era todinho seu.
– Chefia, que bigodinho mais safado o desse cara que saiu daqui. É seu conhecido?
– Conhecido, não. Tô comprando um carro pelo consórcio e a operadora o mandou aqui pra eu assinar uns papéis.
– Ah, tá.
O papo correu solto sobre o consórcio e logo em seguida ele me falou das agendas dos motoristas naquela semana, as vistorias que estavam previstas e das coisas do trabalho em geral.
Algumas semanas depois, quando ele novamente entrou na minha sala, eu estava acabando de fazer uma ligação com o pessoal do consórcio. Algumas coisas estranhas estavam me deixando com a pulga atrás da orelha e eu já começava a me arrepender do tal negócio. Eles não me informavam nada direito, nem em que grupo eu estava, nem quais eram os meus números para o sorteio mensal, eu não tinha sequer matrícula e, no extrato, onde dizia qual era o bem a ser adquirido, o objeto do consórcio, o campo estava em branco.
– Muito sinistro – eu comentei, desanimado, com o Rasputin.
– Chefia, se tu quiser a gente vai lá agora e tira isso tudo a limpo.
– Não, cara. Tranquilo. Não é pra tanto não.
O fato é que aquele consórcio estava com toda a pinta de golpe. Golpe, com todas as letras. E eu não tinha esse dinheiro pra ficar levando volta de quadrilha, que nem sabia enrolar direito os clientes. Quando eu ligava as pessoas não sabiam dar informações, titubeavam em claro sinal de nervosismo e quando passavam pra outros funcionários, de supostos cargos superiores, os caras não sabiam nem falar corretamente, ignorando solenemente plurais, tempos verbais e a grande maioria das concordâncias. Os poucos que vinham tentar me dar informações, assassinavam com vontade a pobre e indefesa língua portuguesa, cada um a seu modo.
Eu então decidi que não ia pagar mais nenhum boleto referente a nenhuma parcela daquele golpe. Agora o plano era pra sair rápido do imbróglio e tentar diminuir ao máximo o prejuízo, que já era grande. Aliás, o leitor há de convir que a palavra imbróglio é perfeita pra expressar o que realmente significa uma furada como essa. O próprio ato de dizer imbróglio já denota, em si, a dificuldade do fato a ele associado. E me perdoem o devaneio incontido.
Peguei tudo o que eu tinha, o contrato, os comprovantes de pagamento, as inscrições no grupo, as referências, tudo mesmo, e fui ao tal endereço do consórcio. As pessoas que antes eu só conhecia dos crimes contra a língua pátria, agora tinham nome e rosto. Me levaram pra uma sala, depois pra outra, tiraram cópias dos meus boletos, em seguida veio um rapaz me cobrar o boleto em atraso e, quando eu expliquei que parei de pagar porque ia cancelar o negócio, ele apenas disse “correto”, pra meu espanto.
Quanto mais mexia, mais eu entendia que estava levando um golpe, solene. Então, quando um dos assessores me levou um documento de destrato, de desistência, me avisou que alguns desses chamados custos de operação, taxas de administração, não seriam devolvidos. Eu até concordei, a princípio, mas aquela conta estava a reter mais do que as tais mencionadas taxas, muito mais. O golpe agora tinha números dolorosos.
Enfim, me deram um cheque com o valor a ser ressarcido – sim, era cheque ainda – e eu deveria ir na agência bancária indicada por eles pra descontar. Uma merreca, considerando o que eu tinha pago. Mas eu não tinha escolha. Era assimilar o golpe, como nas lutas livres, e tentar recuperar, ou golpear em contra-ataque.
No momento em que eu pensava nisso, quem me aparece?
– Fala chefia! Já almoçou? Tô indo ali na dona Déa. Quer almoçar comigo?
– Rasputin, vou te dizer francamente: não estou em condições de almoçar. Não tenho a mínima condição.
– O que aconteceu, chefia? Não vai me dizer que é a parada do consórcio ainda?
Eu nem precisei responder. Enquanto eu balançava a cabeça afirmativamente ele me cortou e sentenciou do jeito dele:
– Chefia, nós vamos voltar lá. E vamos agora. Eu vou contigo resolver isso na justiça. Na minha justiça.
Sem forças pra retrucar, pra retorquir, pra coisa alguma, eu fui andando ao lado do Rasputin, imaginando coisas inimagináveis, mas com o sentimento de que aquelas pessoas mereciam uma lição, aprender a respeitar o próximo, minimamente. Nem que o próximo fosse o Rasputin e a sua verve física de convencimento, se é que podemos dizer assim.
Entramos na recepção na maior calma, eu expliquei que queria falar com o assessor que tinha me atendido há pouco. Fomos pra sala do segundo andar, também na calma, e logo chegou o tal funcionário, explicando tudo de novo. Quando ele terminou o Rasputin começou:
– Olha aqui, meu amigo. Esse cara trabalha comigo há um tempão. Ele é meu chefe. Ele é um cara correto, que não engana ninguém, que não passa ninguém pra trás. Então você vai trazer aqui aquele cara que tem um bigodinho estranho, pois foi ele quem vendeu esse consórcio pra chefia. Você entendeu?
O rapaz iniciou com um quase inaudível “veja bem”, mas foi interrompido pelo tom não muito calmo do Rasputin, que apenas repetiu o mesmo “você entendeu?”, fazendo com que o rapaz saísse apressado da sala.
Um outro funcionário apareceu em seguida e informou que “infelizmente”, ele não estava nas dependências da firma, pois estava em uma reunião fora. Só que nesse exato momento, pra azar dos indivíduos mentirosos, o próprio cara do bigodinho passou no corredor, ao lado da sala, e deu pra ver que era ele pelo vidro da porta de entrada.
Numa fração de segundo, derrubando duas cadeiras na sua passagem pela porta, o Rasputin alcançou o cara do bigodinho, o segurou pelo pescoço e trouxe até a sala, imobilizado e atônito. Depois, sentou o sujeito na cadeira à nossa frente e explicou que agora ele não queria mais conversa e que iria quebrar tudo ali dentro se o assunto não fosse resolvido da maneira correta, como tinha de ser.
– O que é certo é certo. Ninguém vai dar volta em ninguém aqui. Paga tudo direitinho ao meu chefe ou a coisa vai ficar bem ruim pra vocês.
Acabou de falar isso, pegou o telefone da mesa e teclou. Quando atenderam ele disse:
– Sonel? Oi, Sonel, sou eu. Cara eu tô precisando de você aqui. Estou no prédio ao lado da Telerj, na Marechal Floriano. Vem pra cá agora. É no segundo andar, beleza? Isso. Vem pra cá agora.
Não se passaram dez minutos. Eles me pediram que devolvesse o cheque anterior, que haviam me dado, e me trouxeram um outro, com um valor bem maior. Me entregaram um termo de cancelamento de consórcio e pediram desculpas pelo acontecido. Disseram que estranharam o ocorrido pois que a empresa tem boa reputação, é idônea e que os clientes deles estão satisfeitos com os serviços prestados.
O Rasputin foi comigo no banco descontar o cheque e me contou que, quando ele chama o amigo Nelson de Sonel, Nelson ao contrário, é caso de emergência e é pra acudir rápido. Foi o próprio Nelson que me contou que com o irmão Nilson acontece a mesma coisa, ou seja, quando ele o chama por Sonil é porque “o caldo já tá entornando, quente e grosso”.
A gente deu boas risadas no almoço daquele dia. Os três contando a sua versão de toda aquela confusão e lembrando aquele final pitoresco, quando o caixa do banco, que parecia conhecer bem a “idoneidade” da tal empresa, ao ver o código do bem que estava impresso no boleto, me perguntou:
– O que você estava comprando nesse consórcio?
– Um carro. Um carro médio.
– Pois é, esse código aqui é de um trator.
Foi daí em diante que o Rasputin, eu e o Sonel, ficamos fazendo piada durante todo o almoço, conjecturando sobre o uso de um trator no Centro do Rio de Janeiro que, supostamente, eu iria usar todo dia pra ir trabalhar.
– Coitado de quem dissesse “passa por cima”, no meio do engarrafamento – disse o Rasputin, entre uma garfada e outra.