sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A Barraca da Dona Ana

 

Quando chegou ao trabalho, naquela manhã, a enfermeira notou que a barraca de lanche tinha se mudado para o outro lado da rua. Ainda estava em frente ao posto de saúde, mas na calçada oposta. Ela estranhou, mas, na correria pelo início do dia de trabalho – e dos atendimentos – deixou pra mais tarde a ideia de ir saber o motivo da troca.

Num bairro de subúrbio como este, um posto de saúde é fundamental, pois as pessoas que ali vivem não possuem renda suficiente para pagar um plano de assistência médica. O que, nesse país, pareceria óbvio em outros tempos, atualmente é quase uma questão de defender a própria vida. Os pobres, nos dias atuais, não são mais os beneficiários e nem fazem parte das políticas públicas, sendo a estes negados muitos direitos, como à cidadania, à educação e ao amparo social.

E nesse contexto o próprio comércio local, aí incluída a barraquinha de lanche, é de suma importância para os usuários do posto de saúde. No frio eles tomam um cafezinho pra esquentar e no verão um refresco pra aliviar os 40 graus diários. Tudo baratinho, a um preço que eles podem pagar, enquanto passam quase o dia todo ali, aguardando um simples atendimento.

Foi então que no começo da tarde a enfermeira teve um tempinho e foi falar com a dona da barraca.

– Boa tarde, dona Ana. Como vai a senhora?

– Oi Alyne. A gente vai como Deus quer, não é mesmo?

A enfermeira então percebeu que a dona Ana tinha um pano de copa perto do balcão, que ela usava pra enxugar as mãos e os utensílios de uso, mas também levava no ombro uma pequena toalha de mão, que passava pelo rosto muito frequentemente. Vendo que a amiga notou o pano, ela foi logo explicando.

– Muito calor, colega. Tá demais isso aqui. Não sei onde eles vão parar acabando com as florestas.

– Mas, me diz uma coisa, porque a senhora mudou de lugar e trouxe a barraca aqui, pro sol? Ali do outro lado era uma sombrinha tão boa!

– Sim, mas eu também preferia ficar lá. Aqui desse lado derrete todo o meu gelo, as balas e doces ficam ruins e estraga muito mais coisa por causa do sol e do calor. Os salgados, então, azedam direto, aos montes.

– E porque você mudou pra cá então, oras?

– Ah, eu não sei de nada. Só sei que um dia o guarda aí do posto veio falar que era pra eu vir pro lado de cá. Disse que eu estava atrapalhando a entrada do posto e que a ordem era pra eu vir pro outro lado da rua.

– Mas quem mandou o guarda vir falar com você? Foi ordem de quem?

– Ah, dona Alyne, isso eu não sei não.

Realmente, olhando em volta, até para o pessoal que vinha buscar um refresco de laranja, era melhor ir tomar do outro lado da rua, na sombra, claro. E dava pra notar os recipientes, todos suando pelo lado de fora, já que o gelo não dava conta de manter qualquer coisa minimamente fresca.

A enfermeira passou pelo guarda da portaria, já olhando feio pra ele. E parece que ele notou. Dali, ela foi até a sala da chefia, que não estava no posto, e então decidiu tirar aquilo a limpo.

– Atenção, aqui, pessoal. Quem foi que mandou tirar a barraca da dona Ana aqui da frente do posto? Quem falou pra ela ir pro outro lado da rua? Gente, ela não pode ficar naquele sol. Ela vai ter um troço. Tá estragando tudo dela. Os refrescos, tudo quente. Os salgados azedando.

– Não sei quem falou pra ela mudar não – disse uma voz, lá no final do corredor.

– Ok, a questão é que alguém falou ou mandou falar! Alguém deu essa ordem.

– Eu até vi que ela tá com uma toalhinha, se secando o tempo todo. Coitada da pessoa – falou a médica.

– Coitada mesmo. Isso é pura maldade. Ela presta um serviço pra gente e pros nossos usuários também. Da mesma forma que a gente toma um refresco, um café, as pessoas que estão esperando atendimento também vão lá comer alguma coisa ou beber uma água. Agora, com a barraca no sol, todos nós perdemos. Não sacrificamos só ela, não. Ela é a pior vítima, ok. Mas a gente também perde com isso, gente.

– Pergunta pra ela quem foi que mandou – sugeriu uma auxiliar do Eletrocardiograma.

– Eu já perguntei. Foi o guarda que levou a ordem pra ela, sem dizer de quem partiu. Mas, boa ideia, eu vou lá perguntar direto ao guarda.

O serviço de vigilância é uma função terceirizada. É prestado através de contrato com uma empresa e é bem rotativo, sempre com gente nova na portaria. Talvez por isso o guarda, por medo ou covardia, não quis dizer quem lhe deu a tal incumbência, se reservando a declarar que não estava autorizado a revelar a autoria do mando, ou do desmando.

Na mesma hora, quase todos os servidores da saúde daquele posto saíram juntos em direção a barraca da dona Ana. Ali, enquanto uns explicavam o que estava acontecendo, outros já tiravam as travas das rodas e puxavam a barraca pra sombra, fresquinha, da frente do posto. Ela veio atrás, trazendo o seu banquinho, algumas sacolas e o guarda-sol, que ela nunca mais usou.

Jamais se soube quem mandou trocar a barraca de lugar. Nas conversas entre os servidores eles riem tentando adivinhar quem terá sido o autor e sempre tem alguém que comenta que é da natureza humana a necessidade de exercer o poder, assim que surge a oportunidade. Mesmo mesquinho, o poder é inebriante. E como diz o compositor Billy Blanco, mais alto o coqueiro, maior é o tombo.

Quando a enfermeira Alyne foi embora aquele dia, como sempre fazia, passou pela dona Ana pra dar um até amanhã.

– Poxa, eu tomei um susto naquela hora, minha filha.

– Que hora? Susto por quê?

– Eu vi todo mundo de branco, saindo junto do posto e vindo na minha direção. Eu paralisei.

– Ah, sim, naquela hora. Você achou que era o quê?

– Achei que vocês iam me expulsar de vez daqui. Eu já estava até passando mal.

As duas continuaram rindo, enquanto a enfermeira ganhava o final da rua, sempre olhando pra trás, pra enxergar a dona da barraca, que acenava com a sua toalhinha vermelha, até que ela sumisse na esquina.

 

 

Essa história aconteceu no verão de 2019.

Dona Ana morreu em outubro deste ano de 2021.

De Covid.

 

 


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Israel

 

O que os músicos e os cronistas têm em comum é a grande variedade de histórias que vivem no seu dia a dia. Se por um lado os músicos sempre aumentam os pontos em seus contos, cada vez que os contam, os cronistas, por sua vez, não se importam quando alguém diz que eles são capazes de lembrar de coisas que jamais aconteceram. É o que repetem os netos da escritora chilena Isabel Allende para a avó, até com uma certa frequência.

Dito isto, meu irmão, que é o artista da família, tocava num restaurante do Centro do Rio, anexo de um tradicional hotel da cidade, que ficava quase na esquina da Avenida Rio Branco. À princípio, ele começou fazendo o happy hour com o seu violão e um parceiro, de guitarra. Mas em algumas temporadas o duo mudava, ora se completando com a luxuosa companhia de um percussionista, ora com uma pegada mais harmoniosa, como quando formava com o cara da gaita de boca, o Israel.

A gaita, como instrumento de solo, já agrada normalmente quando o assunto é um jazz ou um blues, gêneros que o Israel dominava lindamente. Mas, quando o rapaz fazia os floreios e as investidas no meio das canções, os aplausos vinham fortes tanto nos sambas, nas bossas, enfim, em quase tudo que ele solava, surgindo lá do fundo do palco, segurando a gaita e o microfone com uma das mãos e deixando a outra livre para os vibratos, sempre precisos. Era um show aquilo.

Pois uma tarde eu abri o jornal e li que ia ter uma apresentação de uma orquestra sinfônica na Igreja da Candelária, ali perto. O solista era nada mais, nada menos, que Rildo Hora, talvez o maior gaitista que o Brasil já teve até hoje. Exímio na gaita de boca, Rildo é também violonista, cantor, compositor e arranjador, além de maestro excepcional. Eu então resolvi que ia passar lá no restaurante, apenas pra dar um alô pro meu irmão e, de lá, iria pra Candelária.

Assim que eu falei do show o Israel se antecipou:

– O Rildo Hora é demais, cara. O melhor de todos. Minha inspiração. Só isso que eu posso dizer.

Preparado pra ouvir mais algumas histórias típicas dos músicos, eu me sentei na poltrona perto do palco, aproveitando que eles ainda não tinham começado a tocar naquele início de noite. Só que o meu gesto deu margem para mais causos do Israel.

– Já toquei com ele uma vez, lá em Copacabana. Era num estúdio que tava rolando uma gravação e a gente já se conhecia de antes. Naquele dia ele me deu uns toques sobre o instrumento e tal. Até marcamos de ir na Lapa, onde tinha uma roda de chorinho. Mas eu nunca fui. Na verdade, eu fiquei com vergonha de tocar perto dele, pô.

Me lembro que o rapaz emendou uma fala na outra e não parava de contar as suas aventuras com o mestre da gaita de boca. Até que eu disse que ia para a igreja e comecei a me despedir dos dois, pegando a minha bolsa. Lamentando que não podia ir junto o Israel pôs a mão no meu ombro:

– Cara, posso te pedir um favor? Um favor de amigo mesmo? Tu manda um abraço pro seu Rildo por mim? Diz que foi o Israel que mandou. Ele vai lembrar de mim, tenho certeza. Faz isso pra mim?

Eu não tinha a menor dúvida de que aquilo ia ser uma baita furada. Mas concordei com o pedido dele e disse um “pode deixar comigo”, meio de praxe, automático, e fui saindo do restaurante.

A orquestra estava demais, o repertório mesclou obras eruditas e populares, sem esquecer dos famosos chorinhos, e o Rildo, seu Rildo, como disse o Israel, sempre muito simpático, falou sobre o realejo, que é como ele chama a gaita, e sobre algumas composições do programa, numa conversa simpática e ao mesmo tempo educativa com a plateia, esta completamente embevecida com a aula.

Quase ao final, o maestro anunciou que alguns CDs estariam à venda na sala ao lado. Quem quisesse, poderia adquirir e, de quebra, ainda levar um autógrafo do mestre. Eu queria comprar, mas, imediatamente pensei se mandaria ou não o abraço do Israel. A menos que eu não fosse comprar o CD, aí sim, diria pro rapaz que não tive oportunidade de atender ao seu pedido. Mas, eu ir até a sala anexa, ficar de frente com o mestre, significava optar pelo pacote completo, com o abraço incluído.

Ainda na fila eu pensei de novo em desistir. Imaginei o mico que seria se eu mandasse o abraço e ele nem soubesse de quem se tratava. “Quem é esse Israel? Eu não o conheço.” E a minha cara ia ao chão em segundos, sem CD, sem nada.

Diante do músico, depois de ele perguntar o meu nome para o autógrafo, eu senti alguma receptividade:

– Se o senhor me permite, eu tenho um abraço que me mandaram lhe transmitir.

Sem levantar os olhos, enquanto escrevia, ele balbuciou um hã-hã, para que eu continuasse.

– O nome dele é Israel e mandou um grande abraço para o senhor. Ele está...

– Você é amigo do Israel? Puxa, que sujeito bacana. Um grande músico e um estudioso da gaita. Aquele rapaz vai longe. Um talento. Pois mande um abraço pra ele de volta e diga que eu quero que ele venha me visitar. Grande Israel.

Estupefato eu estava, estupefato continuei. Também fiquei mudo por uns instantes e a seguir perplexo, depois daquele breve diálogo, até porque todos em volta estavam olhando pra mim, como se eu fosse alguém do círculo de amizade do professor Rildo Hora, como alguns ali se referiam a ele.

Me lembro que na vez subsequente que fui ver o Israel tocar com o meu irmão, fiquei observando o seu jeito e pensando no enorme talento que ele tinha. E como ele era bom com aquela gaita na boca, como as canções brilhavam com o acréscimo de qualidade que ele emprestava a elas.

No intervalo ele me ouviu dar a resposta do seu Rildo, mandando um abraço de volta, com a maior simplicidade do mundo, como se não esperasse coisa diferente. E dali em diante eu decidi que jamais duvidaria dos causos, às vezes inacreditáveis, que os músicos contam.

Pelo menos, não do Israel.