O que os músicos e os cronistas têm em comum é a grande
variedade de histórias que vivem no seu dia a dia. Se por um lado os músicos sempre aumentam os
pontos em seus contos, cada vez que os contam, os cronistas, por sua vez, não
se importam quando alguém diz que eles são capazes de lembrar de coisas que
jamais aconteceram. É o que repetem os netos da escritora chilena Isabel
Allende para a avó, até com uma certa frequência.
Dito isto, meu irmão, que é o artista da família,
tocava num restaurante do Centro do Rio, anexo de um tradicional hotel da
cidade, que ficava quase na esquina da Avenida Rio Branco. À princípio, ele começou
fazendo o happy hour com o seu violão e um parceiro, de guitarra. Mas em
algumas temporadas o duo mudava, ora se completando com a luxuosa companhia de
um percussionista, ora com uma pegada mais harmoniosa, como quando formava com
o cara da gaita de boca, o Israel.
A gaita, como instrumento de solo, já agrada
normalmente quando o assunto é um jazz ou um blues, gêneros que o Israel
dominava lindamente. Mas, quando o rapaz fazia os floreios e as investidas no
meio das canções, os aplausos vinham fortes tanto nos sambas, nas bossas,
enfim, em quase tudo que ele solava, surgindo lá do fundo do palco, segurando a
gaita e o microfone com uma das mãos e deixando a outra livre para os vibratos,
sempre precisos. Era um show aquilo.
Pois uma tarde eu abri o jornal e li que ia ter uma
apresentação de uma orquestra sinfônica na Igreja da Candelária, ali perto. O
solista era nada mais, nada menos, que Rildo Hora, talvez o maior gaitista que
o Brasil já teve até hoje. Exímio na gaita de boca, Rildo é também violonista, cantor,
compositor e arranjador, além de maestro excepcional. Eu então resolvi que ia
passar lá no restaurante, apenas pra dar um alô pro meu irmão e, de lá, iria
pra Candelária.
Assim que eu falei do show o Israel se antecipou:
– O Rildo Hora é demais, cara. O melhor de todos.
Minha inspiração. Só isso que eu posso dizer.
Preparado pra ouvir mais algumas histórias típicas dos
músicos, eu me sentei na poltrona perto do palco, aproveitando que eles ainda não
tinham começado a tocar naquele início de noite. Só que o meu gesto deu margem
para mais causos do Israel.
– Já toquei com ele uma vez, lá em Copacabana. Era num
estúdio que tava rolando uma gravação e a gente já se conhecia de antes. Naquele
dia ele me deu uns toques sobre o instrumento e tal. Até marcamos de ir na
Lapa, onde tinha uma roda de chorinho. Mas eu nunca fui. Na verdade, eu fiquei
com vergonha de tocar perto dele, pô.
Me lembro que o rapaz emendou uma fala na outra e não
parava de contar as suas aventuras com o mestre da gaita de boca. Até que eu
disse que ia para a igreja e comecei a me despedir dos dois, pegando a minha
bolsa. Lamentando que não podia ir junto o Israel pôs a mão no meu ombro:
– Cara, posso te pedir um favor? Um favor de amigo
mesmo? Tu manda um abraço pro seu Rildo por mim? Diz que foi o Israel que
mandou. Ele vai lembrar de mim, tenho certeza. Faz isso pra mim?
Eu não tinha a menor dúvida de que aquilo ia ser uma
baita furada. Mas concordei com o pedido dele e disse um “pode deixar comigo”,
meio de praxe, automático, e fui saindo do restaurante.
A orquestra estava demais, o repertório mesclou obras
eruditas e populares, sem esquecer dos famosos chorinhos, e o Rildo, seu Rildo,
como disse o Israel, sempre muito simpático, falou sobre o realejo, que é como
ele chama a gaita, e sobre algumas composições do programa, numa conversa
simpática e ao mesmo tempo educativa com a plateia, esta completamente embevecida
com a aula.
Quase ao final, o maestro anunciou que alguns CDs
estariam à venda na sala ao lado. Quem quisesse, poderia adquirir e, de quebra,
ainda levar um autógrafo do mestre. Eu queria comprar, mas, imediatamente
pensei se mandaria ou não o abraço do Israel. A menos que eu não fosse comprar
o CD, aí sim, diria pro rapaz que não tive oportunidade de atender ao seu
pedido. Mas, eu ir até a sala anexa, ficar de frente com o mestre, significava
optar pelo pacote completo, com o abraço incluído.
Ainda na fila eu pensei de novo em desistir. Imaginei
o mico que seria se eu mandasse o abraço e ele nem soubesse de quem se tratava.
“Quem é esse Israel? Eu não o conheço.” E a minha cara ia ao chão em segundos,
sem CD, sem nada.
Diante do músico, depois de ele perguntar o meu nome
para o autógrafo, eu senti alguma receptividade:
– Se o senhor me permite, eu tenho um abraço que me
mandaram lhe transmitir.
Sem levantar os olhos, enquanto escrevia, ele balbuciou
um hã-hã, para que eu continuasse.
– O nome dele é Israel e mandou um grande abraço para
o senhor. Ele está...
– Você é amigo do Israel? Puxa, que sujeito bacana. Um
grande músico e um estudioso da gaita. Aquele rapaz vai longe. Um talento. Pois
mande um abraço pra ele de volta e diga que eu quero que ele venha me visitar.
Grande Israel.
Estupefato eu estava, estupefato continuei. Também
fiquei mudo por uns instantes e a seguir perplexo, depois daquele breve diálogo,
até porque todos em volta estavam olhando pra mim, como se eu fosse alguém do
círculo de amizade do professor Rildo Hora, como alguns ali se referiam a ele.
Me lembro que na vez subsequente que fui ver o Israel
tocar com o meu irmão, fiquei observando o seu jeito e pensando no enorme
talento que ele tinha. E como ele era bom com aquela gaita na boca, como as canções
brilhavam com o acréscimo de qualidade que ele emprestava a elas.
No intervalo ele me ouviu dar a resposta do seu Rildo,
mandando um abraço de volta, com a maior simplicidade do mundo, como se não
esperasse coisa diferente. E dali em diante eu decidi que jamais duvidaria dos
causos, às vezes inacreditáveis, que os músicos contam.
Pelo menos, não do Israel.
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