quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Malandragem

  

O pai e a mãe já têm mais de 80 anos. Só de casados, são quase 60. Esses números querem dizer muitas coisas. Algumas comorbidades, muitas manias de parte a parte, mas também uma boa dose de companheirismo e parceria.

Morando sozinhos, os filhos se revezam na ajuda do dia a dia, normalmente atuando em tarefas administrativas referentes a alimentação, remédios, médicos e algum cuidado da casa, das roupas e das contas.

São dois filhos, a moça que mora nos Estados Unidos, e que ajuda mensalmente com uma boa graninha, e o rapaz, que mora perto e que é responsável pela manutenção de uma espécie de ponte neste pequeno núcleo familiar. Uma ponte por onde passam as notícias, as conversas e também os problemas.

Uma sobrinha surgiu de repente no grupo, oferecendo ajuda. Em troca, ela apenas tinha a intenção de deixar a sua cidade e passar a morar com tios-avôs no Rio de Janeiro. Queria estudar, iniciar a vida e o projeto de crescer profissionalmente na cidade grande encaixava certinho nos seus planos.

Consultadas as partes envolvidas e diante do acordo comum, ela foi recebida como uma grande ajuda por todos. A filha passou a mandar uma graninha também pra moça, a sobrinha, como ajuda e incentivo nos cuidados com os pais, e tudo corria bem nos primeiros meses, até que, um belo dia, ela entrou com uma amiga em casa, dizendo que a tal, a amiga, iria ajudar também no que fosse preciso e que a proposta era uma espécie de revezamento nas tarefas diárias, tanto com a casa, em geral, como com os idosos da residência.

O tempo passou e aquela ajuda foi se tornando um tanto mais frequente do que o almejado, ou combinado. Logo o filho descobriu que a sobrinha, usando de alguma malandragem, teria “contratado” a amiga justamente para executar as suas funções na casa e, para espanto de todos, o motivo era bem simples: a moça tinha arranjado um emprego, um bom emprego, e, portanto, estava tipo repassando o cargo à amiga. Assim, do dinheiro que a filha do casal mandava dos EUA, ela ficava com uma boa parte e dava à “sua” funcionária o quinhão combinado.

Malandragem pura, disse o pai, maneando a cabeça, e mostrando o seu total desacordo com a mãe, que insistia em esconder o assunto da filha. Primeiro para não a aborrecer com mais problemas e, segundo, por supor que tudo aquilo, de alguma forma, poderia significar alguma redução da ajuda que era enviada dos States e, ademais, tal atitude poderia trazer novo desequilíbrio financeiro, o que não era bom pra ninguém.

Enfim, com o passar do tempo, a amiga, a contratada, se revelou um doce de pessoa. Atenciosa com os idosos e mais ainda com a lida na casa, os dias logo se tornaram um mar de rosas e seus dotes culinários surpreendentes, faziam grande sucesso.

Um dia ela perguntou ao filho se poderia levar a mãe para assistir ao culto na sua igreja. O rapaz estranhou o rumo da conversa, mas a própria mãe advogou que a menina era um amor, evangélica, muito religiosa, e que sempre falava maravilhas da igreja que frequentava. Dizia que as músicas eram lindas e que a senhora ia adorar tudo por lá, inclusive o pastor, que era tido como um profeta.

Com um olho no peixe e outro no gato – sim, porque não ficaria bem eu escrever um olho no padre, outro na missa –, o filho finalmente concordou com a ida da mãe à igreja. A menina, por sua vez, em sua malandragem, percebeu como havia se dado aquela concordância e sabia que estava sendo observada em todos os seus passos, bem medidos e pesados, a cada minuto.

No dia combinado, lá foram as duas para a igreja. Saíram alegres e bem-vestidas como se fossem a uma festa. Na volta, a senhora era puro júbilo, contando as maravilhas que vivenciou. As músicas lindas, uma cantora ótima, instrumentos musicais diversos e até uma bateria.

– E a palavra santa do pastor? Nossa, gente, uma coisa especial. Tocando mesmo o coração da gente – sublinhou a mãe, enquanto o filho apenas apertava os olhos, ouvindo com atenção toda a narrativa.

– Palavra santa do pastor, mãe?

– Claro, o sujeito é mesmo um abençoado, filho.

Ela passou dias contanto os novos detalhes que ia lembrando, no jantar, no meio do café da tarde ou mesmo vendo televisão, à noite. E sempre surgia alguma outra maravilha que ela tinha testemunhado. A menina, por sua vez, era só contentamento, e parecia saborear o orgulho por ter sido a responsável por aquela tarde-noite maravilhosa. E abençoada, nas palavras repetidas da envaidecida senhora.

Na terça-feira seguinte, no finzinho da tarde, na saída do trabalho, o filho passou na casa dos pais, como fazia até com certa regularidade. A moça, que também já estava quase encerrando o seu expediente, vinha da cozinha com um pano de prato no ombro. Ela acabou de secar as mãos, parou diante do filho e, olhando para os próprios dedos, disse:

– Ô seu Júlio, eu queria pedir um favorzinho. Coisa pouca. Bobagem mesmo. É que eu queria comprar uma coisinha pela internet, nada caro não, e queria saber se o senhor me empresta o seu cartão de crédito.

– Não.

– Quê?

– Não empresto o cartão. Não.

– Poxa, seu Júlio, eu vou levar isso pro coração!

– Você pode levar pro coração, pro seu pastor, pro bispo Macedo, pro Malafaia, pra quem você quiser. Meu cartão eu não empresto não. Nem para o Papa.

A moça olhou para a mãe, depois pro pai do Júlio, levou o pano de prato até a cozinha, pegou a sua bolsa no caminho de volta para a sala e saiu porta afora, sem nem dizer boa noite.

A mãe levantou as sobrancelhas. O pai juntou as palmas das mãos e ficou tocando nos lábios, em silêncio.

 

Todos ali sabiam que a moça nunca mais ia voltar. E não voltou.

Até a sobrinha sabia. E sabia que ia ter de dar outro jeito qualquer, se quisesse continuar naquela cidade.

O silêncio da cena só foi quebrado algum tempo depois, quando o filho, o Júlio, se levantou da cadeira, espreguiçou com calma e saiu cantando:

– Quem sabe eu ainda sou uma garotinha...

 

 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A Praia


A gente morava longe da praia. Esse não era um programa simples para uma família de Ramos, mesmo tendo a famosa praia do bairro ali, bem pertinho. E, isso, por uma simples razão da época: a praia de Ramos já não era nem tão bela, nem tão limpa quanto nas décadas de 50 e 60, quando era tipo uma pérola no fundo da já tão maltratada Baía de Guanabara.

No início dos anos 1970 as praias mais viáveis pra nós eram as da Ilha do Governador. Tinha de pegar ônibus, ok, mas era algo tranquilo, embora necessitasse de preparativos de véspera para tal empreitada. Levar sanduíche e refresco era tão importante quanto a esteira, o guarda-sol e o protetor solar.

Com tudo combinado e preparado, fomos dormir naquele sábado ávidos pela chegada do tão almejado domingo de sol.

Minha mãe veio me acordar, me informando que horas eram e eu dei uma espreguiçada reforçada. Fiquei ali na cama por mais um tempo e, por puro descabimento, querendo talvez alguma atenção especial, resmunguei pra minha mãe que não queria mais ir à praia. Disse isso e fiquei fingindo dormir, esperando a reação dela, enquanto mantinha um dos olhos abertos, espreitando.

Eu esperava que ela fosse rir de mim, fazer alguma piada porque sabia que eu adorava ir à praia e não ia perder aquela oportunidade de jeito nenhum. Então, de tanto esperar por ela, por sua entrada no quarto mais uma vez pra me chamar, eu acabei dormindo de verdade e só acordei bem mais tarde, lá pelas dez horas. Dei um salto da cama, já pegando os óculos na mesinha ao lado, e corri pra sala sem entender o que tinha acontecido.

A bença, mãe. O que aconteceu que a gente não foi para a praia?

– Deus te abençoe. Ué, a mim que você vem perguntar? Eu fui chamando vocês e cada um dizia que não queria ir à praia! Aí deixei vocês dormirem e fui cuidar das minhas coisas, fazer o almoço, tratar das minhas plantas.

– Puxa vida. Eu queria tanto ter ido à praia.

– Seu pai disse a mesma coisa, mas só levantou ainda agora. E aí, já não dá mais tempo. Os ônibus estão inviáveis, lotados a uma hora dessas.

Eu saí desolado da cozinha. Não sabia o que fazer e nem tinha o tino de sequer escovar os dentes, de tão desnorteado que estava. Falei com o meu pai e ele disse que também não entendeu nada, que teve alguma dificuldade pra acordar e esperava que minha mãe o chamasse outras vezes, algo que não aconteceu. E ele acabou pegando no sono de novo.

– Seu irmão ainda está dormindo – comentou, percebendo o meu descontentamento.

Eu fiquei rememorando os fatos daquela manhã, quando minha mãe veio me acordar, e tudo o mais que havia acontecido mais cedo. O arrependimento foi mesmo enorme e eu já não podia fazer nada. Pensei que, poxa, eu não queria ter dormido de novo, aliás, eu sou sempre o primeiro a acordar pra ir à praia, sempre ajudo a chamar os outros e a arrumar as bolsas com os sandubas. Justo no dia em que eu deixei a preguiça ganhar terreno, ninguém acordou e o programa do domingo furou.

Depois do almoço meu pai estava consertando alguma coisa no quintal e eu fui sentar perto dele. Ainda chateado por não ter acordado a tempo, eu falei do meu arrependimento.

– Eu tenho que confessar uma coisa, filho. Eu fiz isso por pura brincadeira. E o pior é que deu tudo errado. De manhã, quando sua mãe veio me acordar, eu deliberadamente fiz corpo mole, fingi que não queria levantar, que não queria ir à praia, mas era com o intuito de que vocês, você e seu irmão, viessem me chamar, me acordar, me sacudir e aí eu ia levantar rápido e dizer que estava fingindo. Mas deu tudo errado. Eu acho que peguei no sono de novo e, depois, quando levantei, só fui perguntar pra sua mãe se ela estava chateada comigo. Aí ela disse que não e eu fiquei mais tranquilo. Mas, mesmo assim, não tive coragem de contar que eu tinha fingido.

O tempo que eu fiquei ali, pensando nas palavras do meu pai, eu nem sei quanto foi. Do fundo dos meus pensamentos eu só fui resgatado pela voz dele, lá no fundo, perguntando se eu estava bem.

– Sim, tudo bem. Só estou tentando visualizar a cena, depois que o senhor me contou isso tudo.

Mal sabia ele que eu tinha feito a mesma coisa. E, pior, que não tive a coragem dele pra confessar. Só fiquei com o meu arrependimento mesmo, ruminando, por horas a fio, engolindo em seco.

No início da noite, antes da janta, meu pai chamou a mim e meu irmão pra irmos à padaria. Íamos tomar sorvete e trazer pra casa um tijolo, que era como se chamava a embalagem de 1 litro. Como minha irmã ainda era um bebê, minha mãe não quis ir. E então a gente ia trazer o tijolo pra ela.

No meio do caminho meu irmão falou:

– Porquê vocês não me chamaram pra ir à praia, hoje de manhã? Eu até ouvi alguns barulhos, acho que era vocês levantando, arrumando as coisas. Mas depois acho que peguei no sono de novo. Vocês sabem o que rolou?

Eu olhei pro meu pai, ele me olhou também e a gente estava pronto pra apoiar a confissão um do outro – à essa altura ele já sabia, ou intuía, o que eu tinha feito. Então ele disse apenas que deu um problema no despertador e que aquilo não ia acontecer de novo, já entrando na padaria.

 

Muitos anos depois eu contei essa história pra minha mãe. Ela estava no hospital, por ocasião de uma cirurgia na coluna e eu estava de acompanhante. Ela me esperou terminar e disse que meu pai já havia contado tudo aquilo e que, na ocasião, ele tinha ficado preocupado porque eu fiquei mudo quando ele me falou que tinha simulado o lance de não acordar.

A gente ficou em silêncio um tempo até que ela disse:

– Você fez a mesma coisa, né? Por isso ficou tão acabrunhado durante todo o dia. Ele sabia. Ele sabia disso. Não me disse que sabia, não. Mas ele sabia. Tenho certeza.

A cada dia que me olho no espelho, mais eu vejo a fisionomia do meu pai. Cada dia estou mais parecido com ele. Os olhos, as rugas, o cabelo.

Às vezes ele me sorri, como quem diz “é claro que eu sabia”.

E eu apenas rio, em retribuição.