O pai e a mãe
já têm mais de 80 anos. Só de casados, são quase 60. Esses números querem dizer
muitas coisas. Algumas comorbidades, muitas manias de parte a parte, mas também
uma boa dose de companheirismo e parceria.
Morando sozinhos,
os filhos se revezam na ajuda do dia a dia, normalmente atuando em tarefas
administrativas referentes a alimentação, remédios, médicos e algum cuidado da
casa, das roupas e das contas.
São dois
filhos, a moça que mora nos Estados Unidos, e que ajuda mensalmente com uma boa
graninha, e o rapaz, que mora perto e que é responsável pela manutenção de uma
espécie de ponte neste pequeno núcleo familiar. Uma ponte por onde passam as
notícias, as conversas e também os problemas.
Uma sobrinha surgiu
de repente no grupo, oferecendo ajuda. Em troca, ela apenas tinha a intenção de
deixar a sua cidade e passar a morar com tios-avôs no Rio de Janeiro. Queria
estudar, iniciar a vida e o projeto de crescer profissionalmente na cidade
grande encaixava certinho nos seus planos.
Consultadas as
partes envolvidas e diante do acordo comum, ela foi recebida como uma grande
ajuda por todos. A filha passou a mandar uma graninha também pra moça, a
sobrinha, como ajuda e incentivo nos cuidados com os pais, e tudo corria bem
nos primeiros meses, até que, um belo dia, ela entrou com uma amiga em casa,
dizendo que a tal, a amiga, iria ajudar também no que fosse preciso e que a
proposta era uma espécie de revezamento nas tarefas diárias, tanto com a casa, em
geral, como com os idosos da residência.
O tempo passou
e aquela ajuda foi se tornando um tanto mais frequente do que o almejado, ou
combinado. Logo o filho descobriu que a sobrinha, usando de alguma malandragem,
teria “contratado” a amiga justamente para executar as suas funções na casa e,
para espanto de todos, o motivo era bem simples: a moça tinha arranjado um
emprego, um bom emprego, e, portanto, estava tipo repassando o cargo à amiga.
Assim, do dinheiro que a filha do casal mandava dos EUA, ela ficava com uma boa
parte e dava à “sua” funcionária o quinhão combinado.
Malandragem
pura, disse o pai, maneando a cabeça, e mostrando o seu total desacordo com a
mãe, que insistia em esconder o assunto da filha. Primeiro para não a aborrecer
com mais problemas e, segundo, por supor que tudo aquilo, de alguma forma,
poderia significar alguma redução da ajuda que era enviada dos States e,
ademais, tal atitude poderia trazer novo desequilíbrio financeiro, o que não
era bom pra ninguém.
Enfim, com o
passar do tempo, a amiga, a contratada, se revelou um doce de pessoa. Atenciosa
com os idosos e mais ainda com a lida na casa, os dias logo se tornaram um mar
de rosas e seus dotes culinários surpreendentes, faziam grande sucesso.
Um dia ela
perguntou ao filho se poderia levar a mãe para assistir ao culto na sua igreja.
O rapaz estranhou o rumo da conversa, mas a própria mãe advogou que a menina
era um amor, evangélica, muito religiosa, e que sempre falava maravilhas da
igreja que frequentava. Dizia que as músicas eram lindas e que a senhora ia
adorar tudo por lá, inclusive o pastor, que era tido como um profeta.
Com um olho no
peixe e outro no gato – sim, porque não ficaria bem eu escrever um olho no
padre, outro na missa –, o filho finalmente concordou com a ida da mãe à
igreja. A menina, por sua vez, em sua malandragem, percebeu como havia se dado
aquela concordância e sabia que estava sendo observada em todos os seus passos,
bem medidos e pesados, a cada minuto.
No dia
combinado, lá foram as duas para a igreja. Saíram alegres e bem-vestidas como
se fossem a uma festa. Na volta, a senhora era puro júbilo, contando as
maravilhas que vivenciou. As músicas lindas, uma cantora ótima, instrumentos
musicais diversos e até uma bateria.
– E a palavra
santa do pastor? Nossa, gente, uma coisa especial. Tocando mesmo o coração da
gente – sublinhou a mãe, enquanto o filho apenas apertava os olhos, ouvindo com
atenção toda a narrativa.
– Palavra
santa do pastor, mãe?
– Claro, o
sujeito é mesmo um abençoado, filho.
Ela passou
dias contanto os novos detalhes que ia lembrando, no jantar, no meio do café da
tarde ou mesmo vendo televisão, à noite. E sempre surgia alguma outra maravilha
que ela tinha testemunhado. A menina, por sua vez, era só contentamento, e
parecia saborear o orgulho por ter sido a responsável por aquela tarde-noite
maravilhosa. E abençoada, nas palavras repetidas da envaidecida senhora.
Na terça-feira
seguinte, no finzinho da tarde, na saída do trabalho, o filho passou na casa
dos pais, como fazia até com certa regularidade. A moça, que também já estava
quase encerrando o seu expediente, vinha da cozinha com um pano de prato no
ombro. Ela acabou de secar as mãos, parou diante do filho e, olhando para os
próprios dedos, disse:
– Ô seu Júlio,
eu queria pedir um favorzinho. Coisa pouca. Bobagem mesmo. É que eu queria
comprar uma coisinha pela internet, nada caro não, e queria saber se o senhor
me empresta o seu cartão de crédito.
– Não.
– Quê?
– Não empresto
o cartão. Não.
– Poxa, seu Júlio,
eu vou levar isso pro coração!
– Você pode
levar pro coração, pro seu pastor, pro bispo Macedo, pro Malafaia, pra quem
você quiser. Meu cartão eu não empresto não. Nem para o Papa.
A moça olhou
para a mãe, depois pro pai do Júlio, levou o pano de prato até a cozinha, pegou
a sua bolsa no caminho de volta para a sala e saiu porta afora, sem nem dizer
boa noite.
A mãe levantou
as sobrancelhas. O pai juntou as palmas das mãos e ficou tocando nos lábios, em
silêncio.
Todos ali
sabiam que a moça nunca mais ia voltar. E não voltou.
Até a sobrinha
sabia. E sabia que ia ter de dar outro jeito qualquer, se quisesse continuar naquela
cidade.
O silêncio da
cena só foi quebrado algum tempo depois, quando o filho, o Júlio, se levantou
da cadeira, espreguiçou com calma e saiu cantando:
– Quem sabe eu
ainda sou uma garotinha...