A gente morava
longe da praia. Esse não era um programa simples para uma família de Ramos,
mesmo tendo a famosa praia do bairro ali, bem pertinho. E, isso, por uma
simples razão da época: a praia de Ramos já não era nem tão bela, nem tão limpa
quanto nas décadas de 50 e 60, quando era tipo uma pérola no fundo da já tão
maltratada Baía de Guanabara.
No início dos
anos 1970 as praias mais viáveis pra nós eram as da Ilha do Governador. Tinha
de pegar ônibus, ok, mas era algo tranquilo, embora necessitasse de
preparativos de véspera para tal empreitada. Levar sanduíche e refresco era tão
importante quanto a esteira, o guarda-sol e o protetor solar.
Com tudo combinado
e preparado, fomos dormir naquele sábado ávidos pela chegada do tão almejado
domingo de sol.
Minha mãe veio
me acordar, me informando que horas eram e eu dei uma espreguiçada reforçada.
Fiquei ali na cama por mais um tempo e, por puro descabimento, querendo talvez
alguma atenção especial, resmunguei pra minha mãe que não queria mais ir à
praia. Disse isso e fiquei fingindo dormir, esperando a reação dela, enquanto
mantinha um dos olhos abertos, espreitando.
Eu esperava
que ela fosse rir de mim, fazer alguma piada porque sabia que eu adorava ir à
praia e não ia perder aquela oportunidade de jeito nenhum. Então, de tanto
esperar por ela, por sua entrada no quarto mais uma vez pra me chamar, eu
acabei dormindo de verdade e só acordei bem mais tarde, lá pelas dez horas. Dei
um salto da cama, já pegando os óculos na mesinha ao lado, e corri pra sala sem
entender o que tinha acontecido.
– A bença,
mãe. O que aconteceu que a gente não foi para a praia?
– Deus te
abençoe. Ué, a mim que você vem perguntar? Eu fui chamando vocês e cada um
dizia que não queria ir à praia! Aí deixei vocês dormirem e fui cuidar das
minhas coisas, fazer o almoço, tratar das minhas plantas.
– Puxa vida.
Eu queria tanto ter ido à praia.
– Seu pai
disse a mesma coisa, mas só levantou ainda agora. E aí, já não dá mais tempo. Os
ônibus estão inviáveis, lotados a uma hora dessas.
Eu saí
desolado da cozinha. Não sabia o que fazer e nem tinha o tino de sequer escovar
os dentes, de tão desnorteado que estava. Falei com o meu pai e ele disse que
também não entendeu nada, que teve alguma dificuldade pra acordar e esperava
que minha mãe o chamasse outras vezes, algo que não aconteceu. E ele acabou
pegando no sono de novo.
– Seu irmão
ainda está dormindo – comentou, percebendo o meu descontentamento.
Eu fiquei
rememorando os fatos daquela manhã, quando minha mãe veio me acordar, e
tudo o mais que havia acontecido mais cedo. O arrependimento foi mesmo enorme e
eu já não podia fazer nada. Pensei que, poxa, eu não queria ter dormido de
novo, aliás, eu sou sempre o primeiro a acordar pra ir à praia, sempre ajudo a
chamar os outros e a arrumar as bolsas com os sandubas. Justo no dia em que eu
deixei a preguiça ganhar terreno, ninguém acordou e o programa do domingo
furou.
Depois do
almoço meu pai estava consertando alguma coisa no quintal e eu fui sentar perto
dele. Ainda chateado por não ter acordado a tempo, eu falei do meu
arrependimento.
– Eu tenho que
confessar uma coisa, filho. Eu fiz isso por pura brincadeira. E o pior é que
deu tudo errado. De manhã, quando sua mãe veio me acordar, eu deliberadamente
fiz corpo mole, fingi que não queria levantar, que não queria ir à praia, mas
era com o intuito de que vocês, você e seu irmão, viessem me chamar, me
acordar, me sacudir e aí eu ia levantar rápido e dizer que estava fingindo. Mas
deu tudo errado. Eu acho que peguei no sono de novo e, depois, quando levantei,
só fui perguntar pra sua mãe se ela estava chateada comigo. Aí ela disse que
não e eu fiquei mais tranquilo. Mas, mesmo assim, não tive coragem de contar
que eu tinha fingido.
O tempo que eu
fiquei ali, pensando nas palavras do meu pai, eu nem sei quanto foi. Do fundo
dos meus pensamentos eu só fui resgatado pela voz dele, lá no fundo,
perguntando se eu estava bem.
– Sim, tudo
bem. Só estou tentando visualizar a cena, depois que o senhor me contou isso
tudo.
Mal sabia ele
que eu tinha feito a mesma coisa. E, pior, que não tive a coragem dele pra
confessar. Só fiquei com o meu arrependimento mesmo, ruminando, por horas a
fio, engolindo em seco.
No início da
noite, antes da janta, meu pai chamou a mim e meu irmão pra irmos à padaria.
Íamos tomar sorvete e trazer pra casa um tijolo, que era como se chamava a
embalagem de 1 litro. Como minha irmã ainda era um bebê, minha mãe não quis ir.
E então a gente ia trazer o tijolo pra ela.
No meio do
caminho meu irmão falou:
– Porquê vocês
não me chamaram pra ir à praia, hoje de manhã? Eu até ouvi alguns barulhos, acho
que era vocês levantando, arrumando as coisas. Mas depois acho que peguei no
sono de novo. Vocês sabem o que rolou?
Eu olhei pro
meu pai, ele me olhou também e a gente estava pronto pra apoiar a confissão um
do outro – à essa altura ele já sabia, ou intuía, o que eu tinha feito. Então
ele disse apenas que deu um problema no despertador e que aquilo não ia
acontecer de novo, já entrando na padaria.
Muitos anos
depois eu contei essa história pra minha mãe. Ela estava no hospital, por
ocasião de uma cirurgia na coluna e eu estava de acompanhante. Ela me esperou
terminar e disse que meu pai já havia contado tudo aquilo e que, na ocasião, ele
tinha ficado preocupado porque eu fiquei mudo quando ele me falou que tinha
simulado o lance de não acordar.
A gente ficou
em silêncio um tempo até que ela disse:
– Você fez a
mesma coisa, né? Por isso ficou tão acabrunhado durante todo o dia. Ele sabia.
Ele sabia disso. Não me disse que sabia, não. Mas ele sabia. Tenho certeza.
A cada dia que
me olho no espelho, mais eu vejo a fisionomia do meu pai. Cada dia estou mais
parecido com ele. Os olhos, as rugas, o cabelo.
Às vezes ele
me sorri, como quem diz “é claro que eu sabia”.
E eu apenas rio,
em retribuição.
amoroso!
ResponderExcluiradoro a tua mãe.
ResponderExcluirÊita saudades desses Véios...
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