sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A Praia


A gente morava longe da praia. Esse não era um programa simples para uma família de Ramos, mesmo tendo a famosa praia do bairro ali, bem pertinho. E, isso, por uma simples razão da época: a praia de Ramos já não era nem tão bela, nem tão limpa quanto nas décadas de 50 e 60, quando era tipo uma pérola no fundo da já tão maltratada Baía de Guanabara.

No início dos anos 1970 as praias mais viáveis pra nós eram as da Ilha do Governador. Tinha de pegar ônibus, ok, mas era algo tranquilo, embora necessitasse de preparativos de véspera para tal empreitada. Levar sanduíche e refresco era tão importante quanto a esteira, o guarda-sol e o protetor solar.

Com tudo combinado e preparado, fomos dormir naquele sábado ávidos pela chegada do tão almejado domingo de sol.

Minha mãe veio me acordar, me informando que horas eram e eu dei uma espreguiçada reforçada. Fiquei ali na cama por mais um tempo e, por puro descabimento, querendo talvez alguma atenção especial, resmunguei pra minha mãe que não queria mais ir à praia. Disse isso e fiquei fingindo dormir, esperando a reação dela, enquanto mantinha um dos olhos abertos, espreitando.

Eu esperava que ela fosse rir de mim, fazer alguma piada porque sabia que eu adorava ir à praia e não ia perder aquela oportunidade de jeito nenhum. Então, de tanto esperar por ela, por sua entrada no quarto mais uma vez pra me chamar, eu acabei dormindo de verdade e só acordei bem mais tarde, lá pelas dez horas. Dei um salto da cama, já pegando os óculos na mesinha ao lado, e corri pra sala sem entender o que tinha acontecido.

A bença, mãe. O que aconteceu que a gente não foi para a praia?

– Deus te abençoe. Ué, a mim que você vem perguntar? Eu fui chamando vocês e cada um dizia que não queria ir à praia! Aí deixei vocês dormirem e fui cuidar das minhas coisas, fazer o almoço, tratar das minhas plantas.

– Puxa vida. Eu queria tanto ter ido à praia.

– Seu pai disse a mesma coisa, mas só levantou ainda agora. E aí, já não dá mais tempo. Os ônibus estão inviáveis, lotados a uma hora dessas.

Eu saí desolado da cozinha. Não sabia o que fazer e nem tinha o tino de sequer escovar os dentes, de tão desnorteado que estava. Falei com o meu pai e ele disse que também não entendeu nada, que teve alguma dificuldade pra acordar e esperava que minha mãe o chamasse outras vezes, algo que não aconteceu. E ele acabou pegando no sono de novo.

– Seu irmão ainda está dormindo – comentou, percebendo o meu descontentamento.

Eu fiquei rememorando os fatos daquela manhã, quando minha mãe veio me acordar, e tudo o mais que havia acontecido mais cedo. O arrependimento foi mesmo enorme e eu já não podia fazer nada. Pensei que, poxa, eu não queria ter dormido de novo, aliás, eu sou sempre o primeiro a acordar pra ir à praia, sempre ajudo a chamar os outros e a arrumar as bolsas com os sandubas. Justo no dia em que eu deixei a preguiça ganhar terreno, ninguém acordou e o programa do domingo furou.

Depois do almoço meu pai estava consertando alguma coisa no quintal e eu fui sentar perto dele. Ainda chateado por não ter acordado a tempo, eu falei do meu arrependimento.

– Eu tenho que confessar uma coisa, filho. Eu fiz isso por pura brincadeira. E o pior é que deu tudo errado. De manhã, quando sua mãe veio me acordar, eu deliberadamente fiz corpo mole, fingi que não queria levantar, que não queria ir à praia, mas era com o intuito de que vocês, você e seu irmão, viessem me chamar, me acordar, me sacudir e aí eu ia levantar rápido e dizer que estava fingindo. Mas deu tudo errado. Eu acho que peguei no sono de novo e, depois, quando levantei, só fui perguntar pra sua mãe se ela estava chateada comigo. Aí ela disse que não e eu fiquei mais tranquilo. Mas, mesmo assim, não tive coragem de contar que eu tinha fingido.

O tempo que eu fiquei ali, pensando nas palavras do meu pai, eu nem sei quanto foi. Do fundo dos meus pensamentos eu só fui resgatado pela voz dele, lá no fundo, perguntando se eu estava bem.

– Sim, tudo bem. Só estou tentando visualizar a cena, depois que o senhor me contou isso tudo.

Mal sabia ele que eu tinha feito a mesma coisa. E, pior, que não tive a coragem dele pra confessar. Só fiquei com o meu arrependimento mesmo, ruminando, por horas a fio, engolindo em seco.

No início da noite, antes da janta, meu pai chamou a mim e meu irmão pra irmos à padaria. Íamos tomar sorvete e trazer pra casa um tijolo, que era como se chamava a embalagem de 1 litro. Como minha irmã ainda era um bebê, minha mãe não quis ir. E então a gente ia trazer o tijolo pra ela.

No meio do caminho meu irmão falou:

– Porquê vocês não me chamaram pra ir à praia, hoje de manhã? Eu até ouvi alguns barulhos, acho que era vocês levantando, arrumando as coisas. Mas depois acho que peguei no sono de novo. Vocês sabem o que rolou?

Eu olhei pro meu pai, ele me olhou também e a gente estava pronto pra apoiar a confissão um do outro – à essa altura ele já sabia, ou intuía, o que eu tinha feito. Então ele disse apenas que deu um problema no despertador e que aquilo não ia acontecer de novo, já entrando na padaria.

 

Muitos anos depois eu contei essa história pra minha mãe. Ela estava no hospital, por ocasião de uma cirurgia na coluna e eu estava de acompanhante. Ela me esperou terminar e disse que meu pai já havia contado tudo aquilo e que, na ocasião, ele tinha ficado preocupado porque eu fiquei mudo quando ele me falou que tinha simulado o lance de não acordar.

A gente ficou em silêncio um tempo até que ela disse:

– Você fez a mesma coisa, né? Por isso ficou tão acabrunhado durante todo o dia. Ele sabia. Ele sabia disso. Não me disse que sabia, não. Mas ele sabia. Tenho certeza.

A cada dia que me olho no espelho, mais eu vejo a fisionomia do meu pai. Cada dia estou mais parecido com ele. Os olhos, as rugas, o cabelo.

Às vezes ele me sorri, como quem diz “é claro que eu sabia”.

E eu apenas rio, em retribuição.

 


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