segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Filosofia


Em tempos de ignorância, crueldade e egoísmo, parece que estamos cada vez mais nos afastando das práticas civilizatórias que vimos desenvolvendo desde sempre. A gente até vinha evoluindo, mas, de repente tudo mudou. Até bem pouco tempo éramos uma sociedade fraterna, fomentando minimamente atitudes que apontavam para o reconhecimento dos direitos individuais e coletivos.

Pois, no meio do caminho, bichos estranhos começaram a sair de suas tocas, aqui e ali, dando voz aos irracionais e iletrados, para não dizer analfabetos, dotados de arrogância generalizada e prepotência sistêmica a dar e vender, sem vergonha alguma, diante do mundo, da sua torpe condição arcaica.

Pois bem, Leandro era um sujeito que procurava emprego havia um bom tempo. Recém chegado a cidade, tinha certa urgência em se manter, apesar de toda a amizade que o cercava e que lhe dava moradia e compreensão, além de grande incentivo pessoal. Não era urgente a sua procura, mas o incomodava o fato de não poder retribuir à altura tudo o que recebia.

Claro que numa situação dessas o rapaz, muitas vezes, duvidava da própria sorte, da sua capacidade de conseguir trabalho e de suas competências, visto que as entrevistas se sucediam e nada de vir uma efetivação. Constantemente ele abria mais e mais o seu leque de possibilidades, aceitando o que viesse e topando qualquer colocação.

Foi assim que surgiu a entrevista para um trabalho de meio expediente. Era numa papelaria, uma loja grande e bem farta, que tinha um bom movimento de clientes e ainda havia a comissão de praxe pelas vendas. Depois de muito tempo, pudemos ver o Leandro alegre com os seus dias. Finalmente.

A busca, entretanto, continuava ativa, já que havia todo um turno da tarde a reclamar o encaixe de mais trabalho, muito ansiado e muito necessitado. E o tempo se arrastava, rareando até as entrevistas, uma vez que quase todas eram agendadas na parte da manhã, justamente quando ele estava na papelaria.

Na porta de uma Ong, que ficava perto do terminal de ônibus, um belo dia ele resolveu olhar o mural de avisos, onde se colocavam as ofertas de emprego, com vagas de todos os tipos e horários. Percorreu tudo, de cima a baixo, e nada parecia interessante. Até chamadas para serviços voluntários tinha ali, o que acabou por trazer um tanto de melancolia à sua procura.

Chegou em casa e, ao comentar sobre o tal trabalho voluntário que tinha ficado na sua cabeça, logo um amigo deu todo o incentivo e argumentou que, parado por parado, ele estaria fazendo algo de bom para alguém e que, por isso, ele deveria ao menos ir ver do que se tratava. E ele foi.

Era uma associação de familiares e acompanhantes de crianças em tratamento de saúde. O paciente, quase sempre criança, vinha de outra cidade para se tratar na capital, na companhia dos pais ou de algum outro membro da família. Durante o tratamento ou enquanto faziam os exames, que podiam demorar alguns dias, os acompanhantes não tinham condições adequadas de acomodação, tampouco de alimentação ou acolhida, sendo que era essa associação que propiciava, através de doações, os meios para tal.

Assim que o Leandro tomou conhecimento da situação, já se animou em poder ajudar. Ele não tinha ideia de que haviam pessoas passando por tais percalços e que precisavam tanto de ajuda, não só no aspecto da saúde de seus entes, como na parte emocional e psicológica como acompanhantes, prontos, como se espera deles, para prestar o apoio e a assistência, bastante para abrir caminho para a cura.

Todos os amigos contam como foi incrível a mudança de ânimo do rapaz, a partir do momento em que passou a ser voluntário, pois ele jamais teria se sentido tão útil. O seu bom-humor, a sua disponibilidade e a atenção com as pessoas foi algo sentido não só pelos colegas ou os clientes da associação, mas, até na papelaria, todos sentiram aquela alteração. Aliás, sempre que era perguntado sobre essa sua mudança, Leandro mencionava o que para ele era uma nova visão de mundo, uma nova filosofia de vida, e não perdia a oportunidade de contar as suas vivências, incentivando que todos deveriam tirar um tempo em suas vidas para se permitirem tal experiência. Em volta dele era comum se juntar uma turma só para ouvir os seus relatos, sempre apoiados em vitórias e curas, e também em fraternidade, solidariedade e gratidão de parte a parte, tanto de quem recebia, quanto de quem se doava à causa. Ao final da narrativa, olhos brilhando, era normal que a emoção tomasse a todos.

Curado da sua depressão, que hoje ele admite ter vencido, Leandro tem uma bonita história de vida, a partir das práticas e ações que delas frutificaram. Estão todas sempre em mente. À mão, para que cada futura decisão sua seja tomada a partir daquilo que testemunhou.

É para isso que servem as filosofias. Para a sabedoria. Para a evolução do homem. Isso muda o mundo.

Por causa dele, muitas vezes penso em ser voluntário em causas similares. Não sei se tenho estrutura mental para tal empreitada. Ainda mais com crianças. Mas, como ele diz, se a gente não tentar não vai descobrir.

Talvez Leandro não saiba o tamanho da minha admiração por ele. Pelo homem que ele é. Pela resiliência que ele teve e tem.

Perdi uma boa oportunidade de falar tudo isso pra ele, quando da sua viagem de retorno à sua terra “natal”, Portugal.

Que Deus te ilumine e guarde, Nano.

 

 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Rua A, Casa 3

 

A rua em que eu morava ficava num conjunto residencial chamado Iapetec. A sigla vinha de Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas que, através de uma cooperativa, construía aqueles tipos de condomínios, pra lá de populares.

A casa era do meu avô que, na época era taxista, mas tinha trabalhado com outros tipos de transportes, acho que de carga, tendo por isso o direito de participar da associação.

Como naquele tempo a gente brincava muito na rua, lembro da minha mãe me treinando pra decorar o “Rua A, Casa 3”, para o caso de eu me perder pelo bairro. A gente não tinha permissão para se afastar muito de casa, nem quando saíamos de bicicleta, mas, por segurança, saber de cor o nome da rua e o número da casa era no mínimo prudente.

O Iapetec era estranho à primeira vista. Tinha uma rua principal, a Rua A, que de um lado era ocupada só por casas e do outro ficavam os prédios de apartamentos, dispostos em quadras, todas do mesmo tamanho e com um enorme espaço no centro, como se fosse uma praça. Esse vão entre as quadras era tão grande que numa parte dele cabia um estacionamento, na época bem vazio pois quase ninguém tinha carro ali, e também um campinho de futebol ou um bom espaço para outros tipos de lazer, como vôlei, queimado, pique-lata, pique-bandeira, e por aí vai.

Pelo título, obviamente eu morava na Casa 3, numa calçada que tinha 9 casas. Os ônibus paravam na esquina, onde o entroncamento com uma outra rua, de trânsito intenso, delimitava o perímetro para a criançada. Com isso, era grande o fluxo de pessoas que passavam pela nossa porta, indo ou vindo para o ponto de ônibus. Quem estivesse na varanda ou mesmo no portão de casa era o alvo dos cumprimentos, uns atrás dos outros. Naquela época as pessoas se cumprimentavam. Alguns até paravam pra conversar, falar do clima, do calor, do Flamengo, e as amizades iam se fazendo natural e prazerosamente.

Meus melhores amigos nessa época, até uns 12 anos de idade, eram o Ednelson, que tinha o apelido de Baiano, e o Marquinhos, Mola, apelido, claro. O Baiano era da minha idade, morava na Casa 6 e a gente estava sempre junto, a não ser quando eu ia andar de bicicleta, pois ele não sabia andar. Já o Marquinhos era pouco mais velho e era o cara que melhor montava um cenário de Forte Apache, um brinquedo de peças que retratava os fortes militares americanos, na época do extermínio dos índios americanos durante a colonização.

A gente passava horas montando aquele cenário, do forte, com os cavalos, os prédios, o poço, e também armando a aldeia dos índios, com as ocas, os cavalos malhados e as fogueiras. Quando a gente dava tudo por montado começava a batalha. Cada um pegava um abanador, que podia ser uma revista ou um jornal, e ia abanando do alto o espaço do adversário. Com o vento, que imitava os tiros, iam caindo os cavalos, os soldados e também os índios, naquela nossa batalha sem vencedor.

A casa do Marquinhos era a primeira da rua, embora não tivesse número algum. Ao lado dela ficava a Casa 1 e dali começava a sequência, mas ninguém entendia muito bem. Não sei se a numeração da casa dele vinha da rua de trás ou algo do gênero. O fato é que eu nunca perguntei sobre aquilo.

Outro dia mesmo, quando pensei em escrever sobre essa época, lembrei de uma só tacada de todos os detalhes da casa do Marquinhos. No meio da madrugada eu fui pra sala e comecei a escrever nomes que afloravam da memória, como o do seu Vivino e da dona Nair, os pais dele. Os irmãos Hamilton, Uosto – assim mesmo – e Areia. Lembrei também da voz da dona Nair me perguntando se eu já tinha almoçado, coisa que acontecia toda vez que ela me via entrando pela casa adentro. Ela usava uns óculos de lente forte que lhe aumentava o olho, o que contrastava com a sua voz suave e sua delicadeza com todos.

O seu Vivino era aposentado e passava os dias lendo os jornais e consertando eternamente a sua Rural azul e branca. Eu jamais vi aquele carro rodando pela rua. Mas ele sempre estava lá, com as entranhas à mostra e as ferramentas espalhadas junto com as estopas, as latas e toda aquela parafernália.

Mas eu contei tudo até aqui somente pra falar da Luísa, talvez o personagem mais enigmático da minha infância. Ela morava na casa do Marquinhos. Não era da família, mas era criada pelo casal desde sempre, embora parecesse até mais velha do que os dois. Era o braço direito – e esquerdo – da dona Nair. As duas viviam sempre juntas, tanto em casa como na feira, no mercado, no açougue e, claro, na cozinha.

A Luísa não media mais do que um metro e meio. Tinha o cabelo sempre numa trança fina e longa. Sua aparência era de uma típica peruana das montanhas, de olhos puxados, vivos e bem pretos, e uma testa arredondada que emoldurava toda uma postura de monja. Usava um vestido sem cor, de tecido rústico, de mangas curtas e comprimento até abaixo dos joelhos. Seu olhar sempre me vinha como uma bênção, um gesto de compreensão, enquanto ela sorria comedida e fazia uma pequena saudação, inclinando a cabeça.

Só quem se comunicava com ela era a dona Nair. Melhor dizendo, ela entendia o que a gente falava, mas eu jamais ouvi a voz da Luísa, porque sempre que ela falava era ao pé do ouvido da dona Nair, que se curvava em sua direção e depois respondia normalmente.

Quando anoitecia na casa do seu Vivino, e poucas vezes eu estava lá nesse período, só se podia acender uma luz por vez. Toda a família tinha isso já como hábito e quando alguém queria acender uma segunda lâmpada, ia lá e apagava a outra. Mesmo que estivesse tirando a iluminação de alguém que lia, por exemplo, a pessoa terminava com a sua tarefa, voltava e religava a luz que tinha apagado antes. Não havia qualquer briga por isso e eu sempre achei que era por motivo de economia de energia. Quando que eu presenciava esse tipo de fato eu voltava pra casa imaginando como seria na minha família, se ia dar certo.

Eu lembro claramente disso até hoje e lembro também, com curiosidade, que os interruptores eram bem altos, sendo que em alguns cômodos só vinha um fio pendurado do teto e na ponta tinha um acionador, desses iguais aos de abajur.

Uma vez, algo estranho aconteceu na casa do seu Vivino. E tinha a ver com o hábito dessa única luz acesa. Era quase noite e eu estava acabando de guardar alguns brinquedos enquanto o Marquinho tinha ido na padaria, a pedido da mãe. Numa saleta, de frente para o corredor, eu podia ver as portas dos quartos e o arco que levava à sala. Uma luz acesa trazia claridade de um dos quartos e, da tevê ligada, vinha uma névoa luminosa característica da tela azulada pelo preto e branco da transmissão.

Foi quando a luz da cozinha se acendeu, me dando a impressão de que alguém iria prontamente aparecer pra desligar a do quarto. Mas, nada. Na porta da saleta eu contive o primeiro impulso de ir lá apagar a luz. Mas no segundo eu já decidi diferente e, um passo antes de eu chegar no quarto, a luz se apagou, a tempo de eu poder ver, mesmo na penumbra, a silhueta da Luísa. Eu vi a sombra dela, mas logo apertei os olhos de novo, assim que ela desapareceu. Na hora eu pensei em como ela tinha conseguido alcançar o interruptor com a sua pouca estatura. Era ela. Mas não era possível!

Me lembro que não senti medo algum. Aquilo era só pitoresco pra mim. Como um truque de um mágico talentoso. Tentei recuperar a cena na memória e então já tive a impressão de ter visto a Luísa baixando ao chão depois de ter chegado até o interruptor, como se estivesse, de alguma maneira, voltando, pousando no solo.

Eu voltei pra saleta esperando pela chegada do Marquinhos. Ia perguntar pra ele o que tinha acontecido, se ele tinha alguma explicação para o que eu tinha visto. Nessa espera, sentado num banquinho baixo, eu não tirava os olhos da porta. De repente a luz da saleta se acendeu e apagou no mesmo instante. Eu levei um susto e logo olhei pra lâmpada e depois pra porta de novo. Lá estava a Luísa, no corredor, parada de frente pra mim. De alguma maneira eu entendi o seu gesto de mãos como um pedido de desculpas, talvez pelo meu susto ou sei lá. Então eu sorri pra ela e assenti com a cabeça.

Com os olhos em mim, ela sorriu também.

E, calmamente, trouxe o dedo indicador em riste até encostar nos lábios.

Arrumou a gola do seu vestido sem cor e lentamente se foi, em direção à cozinha.

A mim pareceu, de novo, que ela sequer tocava o chão, levitando enquanto se movia.

Quando o Marquinhos entrou em casa eu já não tinha mais nada o que perguntar.