quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Rua A, Casa 3

 

A rua em que eu morava ficava num conjunto residencial chamado Iapetec. A sigla vinha de Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas que, através de uma cooperativa, construía aqueles tipos de condomínios, pra lá de populares.

A casa era do meu avô que, na época era taxista, mas tinha trabalhado com outros tipos de transportes, acho que de carga, tendo por isso o direito de participar da associação.

Como naquele tempo a gente brincava muito na rua, lembro da minha mãe me treinando pra decorar o “Rua A, Casa 3”, para o caso de eu me perder pelo bairro. A gente não tinha permissão para se afastar muito de casa, nem quando saíamos de bicicleta, mas, por segurança, saber de cor o nome da rua e o número da casa era no mínimo prudente.

O Iapetec era estranho à primeira vista. Tinha uma rua principal, a Rua A, que de um lado era ocupada só por casas e do outro ficavam os prédios de apartamentos, dispostos em quadras, todas do mesmo tamanho e com um enorme espaço no centro, como se fosse uma praça. Esse vão entre as quadras era tão grande que numa parte dele cabia um estacionamento, na época bem vazio pois quase ninguém tinha carro ali, e também um campinho de futebol ou um bom espaço para outros tipos de lazer, como vôlei, queimado, pique-lata, pique-bandeira, e por aí vai.

Pelo título, obviamente eu morava na Casa 3, numa calçada que tinha 9 casas. Os ônibus paravam na esquina, onde o entroncamento com uma outra rua, de trânsito intenso, delimitava o perímetro para a criançada. Com isso, era grande o fluxo de pessoas que passavam pela nossa porta, indo ou vindo para o ponto de ônibus. Quem estivesse na varanda ou mesmo no portão de casa era o alvo dos cumprimentos, uns atrás dos outros. Naquela época as pessoas se cumprimentavam. Alguns até paravam pra conversar, falar do clima, do calor, do Flamengo, e as amizades iam se fazendo natural e prazerosamente.

Meus melhores amigos nessa época, até uns 12 anos de idade, eram o Ednelson, que tinha o apelido de Baiano, e o Marquinhos, Mola, apelido, claro. O Baiano era da minha idade, morava na Casa 6 e a gente estava sempre junto, a não ser quando eu ia andar de bicicleta, pois ele não sabia andar. Já o Marquinhos era pouco mais velho e era o cara que melhor montava um cenário de Forte Apache, um brinquedo de peças que retratava os fortes militares americanos, na época do extermínio dos índios americanos durante a colonização.

A gente passava horas montando aquele cenário, do forte, com os cavalos, os prédios, o poço, e também armando a aldeia dos índios, com as ocas, os cavalos malhados e as fogueiras. Quando a gente dava tudo por montado começava a batalha. Cada um pegava um abanador, que podia ser uma revista ou um jornal, e ia abanando do alto o espaço do adversário. Com o vento, que imitava os tiros, iam caindo os cavalos, os soldados e também os índios, naquela nossa batalha sem vencedor.

A casa do Marquinhos era a primeira da rua, embora não tivesse número algum. Ao lado dela ficava a Casa 1 e dali começava a sequência, mas ninguém entendia muito bem. Não sei se a numeração da casa dele vinha da rua de trás ou algo do gênero. O fato é que eu nunca perguntei sobre aquilo.

Outro dia mesmo, quando pensei em escrever sobre essa época, lembrei de uma só tacada de todos os detalhes da casa do Marquinhos. No meio da madrugada eu fui pra sala e comecei a escrever nomes que afloravam da memória, como o do seu Vivino e da dona Nair, os pais dele. Os irmãos Hamilton, Uosto – assim mesmo – e Areia. Lembrei também da voz da dona Nair me perguntando se eu já tinha almoçado, coisa que acontecia toda vez que ela me via entrando pela casa adentro. Ela usava uns óculos de lente forte que lhe aumentava o olho, o que contrastava com a sua voz suave e sua delicadeza com todos.

O seu Vivino era aposentado e passava os dias lendo os jornais e consertando eternamente a sua Rural azul e branca. Eu jamais vi aquele carro rodando pela rua. Mas ele sempre estava lá, com as entranhas à mostra e as ferramentas espalhadas junto com as estopas, as latas e toda aquela parafernália.

Mas eu contei tudo até aqui somente pra falar da Luísa, talvez o personagem mais enigmático da minha infância. Ela morava na casa do Marquinhos. Não era da família, mas era criada pelo casal desde sempre, embora parecesse até mais velha do que os dois. Era o braço direito – e esquerdo – da dona Nair. As duas viviam sempre juntas, tanto em casa como na feira, no mercado, no açougue e, claro, na cozinha.

A Luísa não media mais do que um metro e meio. Tinha o cabelo sempre numa trança fina e longa. Sua aparência era de uma típica peruana das montanhas, de olhos puxados, vivos e bem pretos, e uma testa arredondada que emoldurava toda uma postura de monja. Usava um vestido sem cor, de tecido rústico, de mangas curtas e comprimento até abaixo dos joelhos. Seu olhar sempre me vinha como uma bênção, um gesto de compreensão, enquanto ela sorria comedida e fazia uma pequena saudação, inclinando a cabeça.

Só quem se comunicava com ela era a dona Nair. Melhor dizendo, ela entendia o que a gente falava, mas eu jamais ouvi a voz da Luísa, porque sempre que ela falava era ao pé do ouvido da dona Nair, que se curvava em sua direção e depois respondia normalmente.

Quando anoitecia na casa do seu Vivino, e poucas vezes eu estava lá nesse período, só se podia acender uma luz por vez. Toda a família tinha isso já como hábito e quando alguém queria acender uma segunda lâmpada, ia lá e apagava a outra. Mesmo que estivesse tirando a iluminação de alguém que lia, por exemplo, a pessoa terminava com a sua tarefa, voltava e religava a luz que tinha apagado antes. Não havia qualquer briga por isso e eu sempre achei que era por motivo de economia de energia. Quando que eu presenciava esse tipo de fato eu voltava pra casa imaginando como seria na minha família, se ia dar certo.

Eu lembro claramente disso até hoje e lembro também, com curiosidade, que os interruptores eram bem altos, sendo que em alguns cômodos só vinha um fio pendurado do teto e na ponta tinha um acionador, desses iguais aos de abajur.

Uma vez, algo estranho aconteceu na casa do seu Vivino. E tinha a ver com o hábito dessa única luz acesa. Era quase noite e eu estava acabando de guardar alguns brinquedos enquanto o Marquinho tinha ido na padaria, a pedido da mãe. Numa saleta, de frente para o corredor, eu podia ver as portas dos quartos e o arco que levava à sala. Uma luz acesa trazia claridade de um dos quartos e, da tevê ligada, vinha uma névoa luminosa característica da tela azulada pelo preto e branco da transmissão.

Foi quando a luz da cozinha se acendeu, me dando a impressão de que alguém iria prontamente aparecer pra desligar a do quarto. Mas, nada. Na porta da saleta eu contive o primeiro impulso de ir lá apagar a luz. Mas no segundo eu já decidi diferente e, um passo antes de eu chegar no quarto, a luz se apagou, a tempo de eu poder ver, mesmo na penumbra, a silhueta da Luísa. Eu vi a sombra dela, mas logo apertei os olhos de novo, assim que ela desapareceu. Na hora eu pensei em como ela tinha conseguido alcançar o interruptor com a sua pouca estatura. Era ela. Mas não era possível!

Me lembro que não senti medo algum. Aquilo era só pitoresco pra mim. Como um truque de um mágico talentoso. Tentei recuperar a cena na memória e então já tive a impressão de ter visto a Luísa baixando ao chão depois de ter chegado até o interruptor, como se estivesse, de alguma maneira, voltando, pousando no solo.

Eu voltei pra saleta esperando pela chegada do Marquinhos. Ia perguntar pra ele o que tinha acontecido, se ele tinha alguma explicação para o que eu tinha visto. Nessa espera, sentado num banquinho baixo, eu não tirava os olhos da porta. De repente a luz da saleta se acendeu e apagou no mesmo instante. Eu levei um susto e logo olhei pra lâmpada e depois pra porta de novo. Lá estava a Luísa, no corredor, parada de frente pra mim. De alguma maneira eu entendi o seu gesto de mãos como um pedido de desculpas, talvez pelo meu susto ou sei lá. Então eu sorri pra ela e assenti com a cabeça.

Com os olhos em mim, ela sorriu também.

E, calmamente, trouxe o dedo indicador em riste até encostar nos lábios.

Arrumou a gola do seu vestido sem cor e lentamente se foi, em direção à cozinha.

A mim pareceu, de novo, que ela sequer tocava o chão, levitando enquanto se movia.

Quando o Marquinhos entrou em casa eu já não tinha mais nada o que perguntar.


4 comentários:

  1. Um conto de Garcia Marquez! Realismo mágico!

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  2. Maravilhoso!! Gente ele lembra de todos os detalhes, gostaria muito de rever todos.

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  3. Lembranças inesquecíveis. Só quem conviveu naquele conjunto habitacional sabe quais são os sentimentos que você relata.E sem falar nas brincadeiras como pique esconde, as cordas e etc. Parabéns

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