A rua em que
eu morava ficava num conjunto residencial chamado Iapetec. A sigla vinha de Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e
Transportes de Cargas que, através de uma cooperativa, construía aqueles tipos
de condomínios, pra lá de populares.
A casa era do meu avô que, na época era taxista, mas tinha
trabalhado com outros tipos de transportes, acho que de carga, tendo por isso o
direito de participar da associação.
Como naquele tempo a gente brincava muito na rua, lembro da
minha mãe me treinando pra decorar o “Rua A, Casa 3”, para o caso de eu me
perder pelo bairro. A gente não tinha permissão para se afastar muito de casa,
nem quando saíamos de bicicleta, mas, por segurança, saber de cor o nome da rua
e o número da casa era no mínimo prudente.
O Iapetec era estranho à primeira vista. Tinha uma rua
principal, a Rua A, que de um lado era ocupada só por casas e do outro ficavam
os prédios de apartamentos, dispostos em quadras, todas do mesmo tamanho e com
um enorme espaço no centro, como se fosse uma praça. Esse vão entre as quadras era
tão grande que numa parte dele cabia um estacionamento, na época bem vazio pois
quase ninguém tinha carro ali, e também um campinho de futebol ou um bom espaço
para outros tipos de lazer, como vôlei, queimado, pique-lata, pique-bandeira, e
por aí vai.
Pelo título, obviamente eu morava na Casa 3, numa calçada que
tinha 9 casas. Os ônibus paravam na esquina, onde o entroncamento com uma outra
rua, de trânsito intenso, delimitava o perímetro para a criançada. Com isso, era
grande o fluxo de pessoas que passavam pela nossa porta, indo ou vindo para o
ponto de ônibus. Quem estivesse na varanda ou mesmo no portão de casa era o
alvo dos cumprimentos, uns atrás dos outros. Naquela época as pessoas se
cumprimentavam. Alguns até paravam pra conversar, falar do clima, do calor, do
Flamengo, e as amizades iam se fazendo natural e prazerosamente.
Meus melhores amigos nessa época, até uns 12 anos de idade, eram
o Ednelson, que tinha o apelido de Baiano, e o Marquinhos, Mola, apelido,
claro. O Baiano era da minha idade, morava na Casa 6 e a gente estava sempre
junto, a não ser quando eu ia andar de bicicleta, pois ele não sabia andar. Já
o Marquinhos era pouco mais velho e era o cara que melhor montava um cenário de
Forte Apache, um brinquedo de peças que retratava os fortes militares americanos,
na época do extermínio dos índios americanos durante a colonização.
A gente passava horas montando aquele cenário, do forte, com os
cavalos, os prédios, o poço, e também armando a aldeia dos índios, com as ocas,
os cavalos malhados e as fogueiras. Quando a gente dava tudo por montado
começava a batalha. Cada um pegava um abanador, que podia ser uma revista ou um
jornal, e ia abanando do alto o espaço do adversário. Com o vento, que imitava
os tiros, iam caindo os cavalos, os soldados e também os índios, naquela nossa
batalha sem vencedor.
A casa do Marquinhos era a primeira da rua, embora não tivesse
número algum. Ao lado dela ficava a Casa 1 e dali começava a sequência, mas
ninguém entendia muito bem. Não sei se a numeração da casa dele vinha da rua de
trás ou algo do gênero. O fato é que eu nunca perguntei sobre aquilo.
Outro dia mesmo, quando pensei em escrever sobre essa época,
lembrei de uma só tacada de todos os detalhes da casa do Marquinhos. No meio da
madrugada eu fui pra sala e comecei a escrever nomes que afloravam da memória,
como o do seu Vivino e da dona Nair, os pais dele. Os irmãos Hamilton, Uosto –
assim mesmo – e Areia. Lembrei também da voz da dona Nair me perguntando se eu
já tinha almoçado, coisa que acontecia toda vez que ela me via entrando pela
casa adentro. Ela usava uns óculos de lente forte que lhe aumentava o olho, o
que contrastava com a sua voz suave e sua delicadeza com todos.
O seu Vivino era aposentado e passava os dias lendo os jornais e
consertando eternamente a sua Rural azul e branca. Eu jamais vi aquele carro
rodando pela rua. Mas ele sempre estava lá, com as entranhas à mostra e as
ferramentas espalhadas junto com as estopas, as latas e toda aquela
parafernália.
Mas eu contei tudo até aqui somente pra falar da Luísa, talvez o
personagem mais enigmático da minha infância. Ela morava na casa do Marquinhos.
Não era da família, mas era criada pelo casal desde sempre, embora parecesse
até mais velha do que os dois. Era o braço direito – e esquerdo – da dona Nair.
As duas viviam sempre juntas, tanto em casa como na feira, no mercado, no
açougue e, claro, na cozinha.
A Luísa não media mais do que um metro e meio. Tinha o cabelo
sempre numa trança fina e longa. Sua aparência era de uma típica peruana das
montanhas, de olhos puxados, vivos e bem pretos, e uma testa arredondada que
emoldurava toda uma postura de monja. Usava um vestido sem cor, de tecido
rústico, de mangas curtas e comprimento até abaixo dos joelhos. Seu olhar
sempre me vinha como uma bênção, um gesto de compreensão, enquanto ela sorria
comedida e fazia uma pequena saudação, inclinando a cabeça.
Só quem se comunicava com ela era a dona Nair. Melhor dizendo,
ela entendia o que a gente falava, mas eu jamais ouvi a voz da Luísa, porque
sempre que ela falava era ao pé do ouvido da dona Nair, que se curvava em sua
direção e depois respondia normalmente.
Quando anoitecia na casa do seu Vivino, e poucas vezes eu estava
lá nesse período, só se podia acender uma luz por vez. Toda a família tinha
isso já como hábito e quando alguém queria acender uma segunda lâmpada, ia lá e
apagava a outra. Mesmo que estivesse tirando a iluminação de alguém que lia, por
exemplo, a pessoa terminava com a sua tarefa, voltava e religava a luz que tinha
apagado antes. Não havia qualquer briga por isso e eu sempre achei que era por motivo
de economia de energia. Quando que eu presenciava esse tipo de fato eu voltava
pra casa imaginando como seria na minha família, se ia dar certo.
Eu lembro claramente disso até hoje e lembro também, com
curiosidade, que os interruptores eram bem altos, sendo que em alguns cômodos só
vinha um fio pendurado do teto e na ponta tinha um acionador, desses iguais aos
de abajur.
Uma vez, algo estranho aconteceu na casa do seu Vivino. E tinha
a ver com o hábito dessa única luz acesa. Era quase noite e eu estava acabando
de guardar alguns brinquedos enquanto o Marquinho tinha ido na padaria, a
pedido da mãe. Numa saleta, de frente para o corredor, eu podia ver as portas
dos quartos e o arco que levava à sala. Uma luz acesa trazia claridade de um
dos quartos e, da tevê ligada, vinha uma névoa luminosa característica da tela
azulada pelo preto e branco da transmissão.
Foi quando a luz da cozinha se acendeu, me dando a impressão de
que alguém iria prontamente aparecer pra desligar a do quarto. Mas, nada. Na
porta da saleta eu contive o primeiro impulso de ir lá apagar a luz. Mas no
segundo eu já decidi diferente e, um passo antes de eu chegar no quarto, a luz
se apagou, a tempo de eu poder ver, mesmo na penumbra, a silhueta da Luísa. Eu
vi a sombra dela, mas logo apertei os olhos de novo, assim que ela desapareceu.
Na hora eu pensei em como ela tinha conseguido alcançar o interruptor com a sua
pouca estatura. Era ela. Mas não era possível!
Me lembro que não senti medo algum. Aquilo era só pitoresco pra
mim. Como um truque de um mágico talentoso. Tentei recuperar a cena na memória
e então já tive a impressão de ter visto a Luísa baixando ao chão depois de ter
chegado até o interruptor, como se estivesse, de alguma maneira, voltando, pousando
no solo.
Eu voltei pra saleta esperando pela chegada do Marquinhos. Ia
perguntar pra ele o que tinha acontecido, se ele tinha alguma explicação para o
que eu tinha visto. Nessa espera, sentado num banquinho baixo, eu não tirava os
olhos da porta. De repente a luz da saleta se acendeu e apagou no mesmo
instante. Eu levei um susto e logo olhei pra lâmpada e depois pra porta de
novo. Lá estava a Luísa, no corredor, parada de frente pra mim. De alguma
maneira eu entendi o seu gesto de mãos como um pedido de desculpas, talvez pelo
meu susto ou sei lá. Então eu sorri pra ela e assenti com a cabeça.
Com os olhos em mim, ela sorriu também.
E, calmamente, trouxe o dedo indicador em riste até encostar nos
lábios.
Arrumou a gola do seu vestido sem cor e lentamente se foi, em
direção à cozinha.
A mim pareceu, de novo, que ela sequer tocava o chão, levitando
enquanto se movia.
Quando o
Marquinhos entrou em casa eu já não tinha mais nada o que perguntar.
Um conto de Garcia Marquez! Realismo mágico!
ResponderExcluirMaravilhoso!! Gente ele lembra de todos os detalhes, gostaria muito de rever todos.
ResponderExcluirLembranças inesquecíveis. Só quem conviveu naquele conjunto habitacional sabe quais são os sentimentos que você relata.E sem falar nas brincadeiras como pique esconde, as cordas e etc. Parabéns
ResponderExcluirSou a Jô do bloco 10
ResponderExcluir