Pouca coisa
que eu sabia sobre ele era fruto de alguma certeza. No geral, foram-se formando
histórias sobre a sua vida, as quais, mesmo sem a confirmação de alguém capaz,
iam se juntando e se incorporando como informações verídicas.
Seu nome era
Fernando. Contam que, ainda criança, morando numa chácara onde os pais eram
caseiros, teria levado um coice de um burro. O coice, certeiro na fronte, teria
ainda imprensado a cabeça do menino na lateral do celeiro, o que provavelmente
provocou o problema neural que afetou a fala. Socorrido e internado por alguns
dias foi um alívio tê-lo vivo, mesmo sem audição e com a emissão permanentemente
prejudicada.
Com mais
alguns anos, não podendo desenvolver a termo as tarefas da chácara, seu pai o
enviou a um amigo na capital, onde ele foi trabalhar em uma padaria, como
ajudante de forno. Não sei se o termo é esse exato, mas era algo assim, visto
que sua função era ajudar em todo o trabalho que fosse ligado ao assamento ou
cozimento dos produtos da panificadora.
Foi na padaria
que ele conheceu o seu Antônio, um português que também começou no forno, mas
que na época da sua chegada já era um dos sócios do negócio, tendo mais tarde
se tornado o único dono. Cada um ao seu tempo, ambos haviam dormido perto do forno,
com o propósito de se aquecerem durante as madrugadas, o que de alguma maneira
criou um laço de amizade entre os dois.
As histórias
da vida, todas elas, possuem uma peculiaridade interessante em relação ao tempo,
que muito me toca. Sempre que falamos de vidas o tempo é o senhor de tudo. Senhor
dos encontros, das vivências, das experiências. Tem pessoas, vidas, que vieram
antes, que estiveram durante, que cessaram e nos deixaram. E tem também as que
estarão aí muito tempo depois. As trajetórias chegam a se tocar, mas logo
depois cada qual segue em sua órbita. E sabe-se lá quando se aproximarão outra
vez.
Sempre me
interessou saber, conviver e conhecer essas intermitências. O antes de mim, que
são os velhos, os que estão no meio do caminho, que são os que estão aqui
agora, junto conosco, e por fim os jovens, que certamente estarão por aqui
depois e depois e depois. Na memória, entretanto, estamos todos aí. Estamos
todos aqui. No meio do caminho dessa vida vinda antes de nós. Estamos todos no
meio. Quem chegou e quem faz tempo que veio. Ninguém está no início ou no fim,
pois todas as vidas virão. Certamente, outros verão esses outros verões e
comprovarão, impávidos ao alvorecer, toda essa roda da vida a circular.
Pois bem, o
Fernando ficou amigo do seu Antônio muito antes. Na casa em que o seu Antônio
foi morar quando se aposentou e se casou, Fernando foi morar nos fundos, no
térreo. E quando eu me tornei genro do seu Antônio, fui morar no andar
superior dessa mesma casa dos fundos. Ali então eu conheci melhor aquela amizade que,
como dito, veio bem antes de mim.
Todo mundo o
conhecia por Mudo, embora eu relutasse um pouco no início. Enfim, ele também se
aposentou da padaria e passou a ajudar na igreja, a mesma em que eu, anos
antes, fui convidado pra tocar violão em uma peça de teatro e acabei ficando.
Eu já o
conhecia de vista. Não só pelas funções de coroinha nas missas, tocando os
sinos na Consagração, mas também quando o via varrendo ou arrumando algumas salas
ou mesmo o salão de festas, nos finais de semana. Entretanto, a amizade mesmo
começou quando eu fui morar naquela casa. Daquele dia em diante deu-se início a uma
convivência muito fraterna, parceira eu diria, com muitas passagens alegres que
até hoje me trazem boas lembranças do Mudo.
Começando
pelas coisas que ele queria me “contar” das tarefas da igreja, as situações
inusitadas do dia a dia, tudo era envolto em muita risada. Primeiro porque eu
não entendia muito bem os seus gestos e suas tentativas de comunicação. Depois
porque, seja lá o que eu entendesse, era bom motivo pra ele rir de mim, talvez
me achando um burro, igual ao que lhe dera o coice na infância, talvez
desistindo de me fazer entender algo pra ele tão simples.
Me lembro bem
do gesto que ele fazia pra “falar” do Flamengo, que era fazendo com os dedos as
listras na camisa. Ele lia – eu acho – as notícias do Jornal dos Sports que
sempre estava por ali por casa e depois vinha me atualizar sobre os jogos e os
jogadores.
Outra coisa
inesquecível do Mudo, que hoje eu encaro como uma enorme generosidade da parte
dele era os doces que ele trazia pra casa. Como ele ficava até o final das
festas pra arrumar o salão da igreja, ele ganhava muita coisa que sobrava dos
bufês. Ele ajudava o pessoal no momento da limpeza final, trazia os latões de
lixo pra perto do salão, as vassouras da igreja e os demais apetrechos e botava
a mão na massa pra que tudo terminasse logo. Aí, no final, ele ganhava um monte
de coisa que sobrava da festa.
Chegava em casa ali
perto das 11 horas da noite. Pelo jeito de o portão bater a gente já sabia. Aí ele dava um jeito de acender a luz do pátio, na frente da garagem, pra
que a gente não tivesse dúvida da sua chegada. Nessa hora a copa e a cozinha se
iluminavam e era só esperar pela chegada não só dos sogros, mas da filha e do
genro, no caso eu.
Era bolo, era
doce de todos os tipos e cores, cremes e frutas, uma festa depois da festa. Se
alguém na mesa reclamava que ultimamente ele trazia mais doces do que salgados,
o que antes não acontecia, eu dava um risinho escondido pensando que aquela era uma das suas gentilezas, pois sabia que eu gostava muito
mais dos doces.
Às vezes,
enquanto a gente ficava ali comendo, um de nós começava:
– Teve uma
grande briga na festa de casamento hoje, lá na igreja.
– Como você
sabe? Você nem foi na festa.
E a resposta era:
– O Mudo que
me falou.
Quando a
pessoa acabava de responder isso todos caíam na risada, dizendo “ah, tá, o Mudo
te contou, ha ha”, puxando a fila dos risos e das piadas que se sucediam.
No fundo a
gente sabia que ele conseguia contar as coisas. Do jeito dele, mas contava. E a gente
entendia. Só não podíamos dizer daquela maneira, que o mudo falou, senão era
uma troça só, interminável.
Tenho me
lembrado muito do Mudo ultimamente. Não sei porquê. Outro dia mesmo, conversando
com meu filho, perguntei se ele lembrava dele e do seu nome. E ele respondeu de
pronto: Fernando. Eu então passei a contar do tempo que vivi naquela casa e do
quanto o Mudo gostava dele e do Daniel. Falamos do quanto ele fazia as vontades deles, ainda pequenos, que entrava em todas as brincadeiras e que sempre se mostrava disposto
a interagir com eles.
Quando o
Fernando morreu eu estava morando em Salvador. Não pude me despedir nem o ver
uma última vez. Quando soube do passamento, imediatamente lembrei da sua
fisionomia, do riso mostrando a foto do Flamengo no Jornal dos Sports e do
suspense brincalhão à mesa, quando abria as caixas de salgados e doces vindas
das festas da igreja.
Uma grande
figura. Um bom amigo. Uma lembrança que gosto de revisitar. Por todos os que
vieram antes de mim.