quinta-feira, 30 de junho de 2022

O Mudo

 

Pouca coisa que eu sabia sobre ele era fruto de alguma certeza. No geral, foram-se formando histórias sobre a sua vida, as quais, mesmo sem a confirmação de alguém capaz, iam se juntando e se incorporando como informações verídicas.

Seu nome era Fernando. Contam que, ainda criança, morando numa chácara onde os pais eram caseiros, teria levado um coice de um burro. O coice, certeiro na fronte, teria ainda imprensado a cabeça do menino na lateral do celeiro, o que provavelmente provocou o problema neural que afetou a fala. Socorrido e internado por alguns dias foi um alívio tê-lo vivo, mesmo sem audição e com a emissão permanentemente prejudicada.

Com mais alguns anos, não podendo desenvolver a termo as tarefas da chácara, seu pai o enviou a um amigo na capital, onde ele foi trabalhar em uma padaria, como ajudante de forno. Não sei se o termo é esse exato, mas era algo assim, visto que sua função era ajudar em todo o trabalho que fosse ligado ao assamento ou cozimento dos produtos da panificadora.

Foi na padaria que ele conheceu o seu Antônio, um português que também começou no forno, mas que na época da sua chegada já era um dos sócios do negócio, tendo mais tarde se tornado o único dono. Cada um ao seu tempo, ambos haviam dormido perto do forno, com o propósito de se aquecerem durante as madrugadas, o que de alguma maneira criou um laço de amizade entre os dois.

As histórias da vida, todas elas, possuem uma peculiaridade interessante em relação ao tempo, que muito me toca. Sempre que falamos de vidas o tempo é o senhor de tudo. Senhor dos encontros, das vivências, das experiências. Tem pessoas, vidas, que vieram antes, que estiveram durante, que cessaram e nos deixaram. E tem também as que estarão aí muito tempo depois. As trajetórias chegam a se tocar, mas logo depois cada qual segue em sua órbita. E sabe-se lá quando se aproximarão outra vez.

Sempre me interessou saber, conviver e conhecer essas intermitências. O antes de mim, que são os velhos, os que estão no meio do caminho, que são os que estão aqui agora, junto conosco, e por fim os jovens, que certamente estarão por aqui depois e depois e depois. Na memória, entretanto, estamos todos aí. Estamos todos aqui. No meio do caminho dessa vida vinda antes de nós. Estamos todos no meio. Quem chegou e quem faz tempo que veio. Ninguém está no início ou no fim, pois todas as vidas virão. Certamente, outros verão esses outros verões e comprovarão, impávidos ao alvorecer, toda essa roda da vida a circular.

Pois bem, o Fernando ficou amigo do seu Antônio muito antes. Na casa em que o seu Antônio foi morar quando se aposentou e se casou, Fernando foi morar nos fundos, no térreo. E quando eu me tornei genro do seu Antônio, fui morar no andar superior dessa mesma casa dos fundos. Ali então eu conheci melhor aquela amizade que, como dito, veio bem antes de mim.

Todo mundo o conhecia por Mudo, embora eu relutasse um pouco no início. Enfim, ele também se aposentou da padaria e passou a ajudar na igreja, a mesma em que eu, anos antes, fui convidado pra tocar violão em uma peça de teatro e acabei ficando.

Eu já o conhecia de vista. Não só pelas funções de coroinha nas missas, tocando os sinos na Consagração, mas também quando o via varrendo ou arrumando algumas salas ou mesmo o salão de festas, nos finais de semana. Entretanto, a amizade mesmo começou quando eu fui morar naquela casa. Daquele dia em diante deu-se início a uma convivência muito fraterna, parceira eu diria, com muitas passagens alegres que até hoje me trazem boas lembranças do Mudo.

Começando pelas coisas que ele queria me “contar” das tarefas da igreja, as situações inusitadas do dia a dia, tudo era envolto em muita risada. Primeiro porque eu não entendia muito bem os seus gestos e suas tentativas de comunicação. Depois porque, seja lá o que eu entendesse, era bom motivo pra ele rir de mim, talvez me achando um burro, igual ao que lhe dera o coice na infância, talvez desistindo de me fazer entender algo pra ele tão simples.

Me lembro bem do gesto que ele fazia pra “falar” do Flamengo, que era fazendo com os dedos as listras na camisa. Ele lia – eu acho – as notícias do Jornal dos Sports que sempre estava por ali por casa e depois vinha me atualizar sobre os jogos e os jogadores.

Outra coisa inesquecível do Mudo, que hoje eu encaro como uma enorme generosidade da parte dele era os doces que ele trazia pra casa. Como ele ficava até o final das festas pra arrumar o salão da igreja, ele ganhava muita coisa que sobrava dos bufês. Ele ajudava o pessoal no momento da limpeza final, trazia os latões de lixo pra perto do salão, as vassouras da igreja e os demais apetrechos e botava a mão na massa pra que tudo terminasse logo. Aí, no final, ele ganhava um monte de coisa que sobrava da festa.

Chegava em casa ali perto das 11 horas da noite. Pelo jeito de o portão bater a gente já sabia. Aí ele dava um jeito de acender a luz do pátio, na frente da garagem, pra que a gente não tivesse dúvida da sua chegada. Nessa hora a copa e a cozinha se iluminavam e era só esperar pela chegada não só dos sogros, mas da filha e do genro, no caso eu.

Era bolo, era doce de todos os tipos e cores, cremes e frutas, uma festa depois da festa. Se alguém na mesa reclamava que ultimamente ele trazia mais doces do que salgados, o que antes não acontecia, eu dava um risinho escondido pensando que aquela era uma das suas gentilezas, pois sabia que eu gostava muito mais dos doces.

Às vezes, enquanto a gente ficava ali comendo, um de nós começava:

– Teve uma grande briga na festa de casamento hoje, lá na igreja.

– Como você sabe? Você nem foi na festa.

E a resposta era:

– O Mudo que me falou.

Quando a pessoa acabava de responder isso todos caíam na risada, dizendo “ah, tá, o Mudo te contou, ha ha”, puxando a fila dos risos e das piadas que se sucediam.

No fundo a gente sabia que ele conseguia contar as coisas. Do jeito dele, mas contava. E a gente entendia. Só não podíamos dizer daquela maneira, que o mudo falou, senão era uma troça só, interminável.

Tenho me lembrado muito do Mudo ultimamente. Não sei porquê. Outro dia mesmo, conversando com meu filho, perguntei se ele lembrava dele e do seu nome. E ele respondeu de pronto: Fernando. Eu então passei a contar do tempo que vivi naquela casa e do quanto o Mudo gostava dele e do Daniel. Falamos do quanto ele fazia as vontades deles, ainda pequenos, que entrava em todas as brincadeiras e que sempre se mostrava disposto a interagir com eles.

Quando o Fernando morreu eu estava morando em Salvador. Não pude me despedir nem o ver uma última vez. Quando soube do passamento, imediatamente lembrei da sua fisionomia, do riso mostrando a foto do Flamengo no Jornal dos Sports e do suspense brincalhão à mesa, quando abria as caixas de salgados e doces vindas das festas da igreja.

Uma grande figura. Um bom amigo. Uma lembrança que gosto de revisitar. Por todos os que vieram antes de mim.

 





segunda-feira, 20 de junho de 2022

SP2

 

Foi meu amigo Silvio que me chamou pra ir ver o carro. Ele estudava na minha sala e foi quem me ajudou nos passos iniciais como colecionador de moedas antigas. Um dia ele levou a sua caixinha de moedas e literalmente parou a aula pra gente ver as preciosidades. Alguns dias depois, na saída da escola, ele disse que ia na casa de uma tia, ajudar na venda de um carro e me chamou pra ir junto.

Ele morava em Bonsucesso e a gente pegava o mesmo ônibus. Então, foi só ir mais adiante, até o bairro de Olaria, e chagar à casa da Tia Teresa, como ele me apresentou a então dona do carro.

Enquanto a gente ia atravessando a sala e a área dos fundos, até chegar à garagem da casa, eu ia entendendo todo o processo da venda e a necessidade de espaço para mais carros.

A tia explicava que o veículo era o xodó do marido, já falecido havia dois anos, e que ela sempre deixava o próprio carro na rua com medo de arranhar ou danificar a tal joia, sendo que as brigas eram constantes quando o assunto era o pouco espaço da garagem. E como ela saía mais vezes durante o dia, seja para ir ao mercado ou cumprir os vários compromissos médicos, sociais e de trabalho, a novela pra estacionar era sempre interminável.

Foi depois desses dois longos anos que a esposa, finalmente, se decidiu a vender o carro, depois de ouvir as opiniões de toda a família, sublinhando sempre que ela respeitava o apego do marido e a sua adoração pelo modelo.

De repente a gente chega na porta da garagem e o Silvio me diz “se prepare”, batendo com a mão no meu ombro. Ao mesmo tempo em que a Tia Teresa ia acendendo as luzes, o Silvio ia tirando o enorme pano que cobria aquela silhueta, revelando um SP2 da Volkswagen, no-vi-nho.

Eu nem sou assim um admirador de carros, fanático por motores e tal, mas o carro era lindo, branquinho, com duas listras na lateral, uma vermelha e outra azul, pneus novinhos, tudo impecável de brilhante, apesar de o modelo já ter saído de linha há algum tempo. Era o tipo de carro que a pessoa vê e logo se imagina dono, dirigindo ou mesmo se acomodando pra ligar o rádio e apreciar a viagem.

À primeira vista parecia até um carro de brinquedo. O SP2 tinha somente dois lugares, era baixinho, com uma aerodinâmica esportiva e arrojada, pronto pra querer voar. Pra completar, quando o Silvio virou a chave surgiu aquele ronco do bom e velho Fusca, ecoando por toda a garagem.

O sobrinho então perguntou:

– E quando é que o homem, o possível comprador, chega?

– Ah, meu filho, logo logo. Daqui a pouco ele aparece.

Era possível sentir uma certa melancolia naquelas palavras, mas não tinha como eu ir além dessa percepção superficial, até por não conhecer direito a tia do meu amigo. Mas algo me intuía nesse sentido.

Finalmente os interessados chegaram. Eram dois. Olharam tudo, mexeram em tudo, abriram tudo, avaliaram tudo. Só elogios. Tia Teresa era toda orgulho. Do carro e do marido. Ligaram novamente o motor e depois pediram pra dar uma volta, como última análise, coisa rápida, ao redor do quarteirão.

Assim que viu o carro saindo pela rua a tia estremeceu:

– Silvinho, querido, meu coração tá apertadinho aqui dentro do peito. Parece que estou vendo o Cazé ali ao volante, dirigindo e sorrindo pra todo mundo, com aqueles seus eternos óculos Ray-Ban.

– Que bom, tia, é uma lembrança boa isso. Eu também tenho ótimas memórias do tio dento do SP2.

– Ai, meu Deus. O que eu faço? – voltou a lamentar.

– Como assim? O que a senhora faz sobre o quê?

– Ah, sei lá. Talvez seja só implicância minha. Essa garagem é tão grande. Se eu der uma boa arrumada, uma geral aqui, até vai caber o meu carro também. E aí eu não preciso vender o do Tio Cazé. Pelo menos não agora. Acho que não estou preparada.

– Mas tia, se a senhora está com dúvida então não vende. Deixa pra uma outra hora.

– Será, Silvinho?

– Se eu disser que venho aqui lhe dar uma mãozinha na arrumação da garagem, pra ver se conseguimos mais espaço pra o outro carro, o seu carro, isso ajuda?

– Ah, demais. Aí vai ter uma pessoa a mais pra decidir junto comigo o que jogar fora e a conseguir espaço, que é mesmo o meu maior problema. Essa garagem tem umas caixas ali pra cima que eu nem sei o que tem dentro. É tudo coisa do Cazé.

– Pronto. Então decidimos assim. Eu venho ajudar na geral da garagem.

Ela deu um sorrisinho acanhado, fez que sim com o polegar e depois fechou as mãos uma na outra.

Quando os rapazes retornaram e entraram com o SP2 na garagem, o mais velho já veio sacando a carteira com o talão de cheques e a caneta. Assim que viu a cena a Tia Teresa nem deixou o homem falar. Puxou ele de lado, deu uma desculpa qualquer e pediu pra adiar o negócio. Disse que era uma coisa de família, que precisava de maior reflexão e ela não poderia decidir a tempo.

De um momento para o outro estávamos todos aliviados com o desfecho daquela não-compra  ou não-venda. Enquanto a gente arrumava o carro de novo na garagem, cobrindo o bicho com o carinho que ele merecia, o Silvio disse:

– Então tia, marca o dia que eu venho te ajudar na arrumação aí da garagem e a gente vê o que jogar fora e o que guardar. Vai ficar tudo certinho e a senhora vai poder botar o seu carro aqui dentro também, juntinho com o do tio.

Contagiado pela empolgação do meu amigo eu arrematei:

– Se quiserem eu venho ajudar também. Isso promete ser uma aventura e tanto! Então, tô dentro.

– Aí tia, agora já temos até um ajudante. E alto o bastante pra alcançar as prateleiras lá de cima.

 

Depois de tudo terminado, com as devidas despedidas, eu e o Sílvio pegamos o caminho de volta pra casa, ambos pensando no combinado que havíamos acabado de acertar. Depois de um tempo ele começou:

– Me diz uma coisa: se eu disser que o meu interesse em ajudar a Tia Teresa passa pela possibilidade de esse carro do Tio um dia ser meu, eu vou ser a pessoa mais mesquinha e maquiavélica desse mundo?

– Hum... Talvez... E se eu disser que o meu interesse passa por, na eventualidade de o SP2 um dia ser seu, você me chamar pra dar umas voltas, vou ser eu o mesquinho?

– Hum, talvez!

E demos, cada um, uma risadinha marota.

– A gente não vale nada.

– Deus está vendo.

– Tá vendo tudo.

Batemos as mãos espalmadas e saímos correndo pra pegar o ônibus que já quase deixava o ponto.