segunda-feira, 20 de junho de 2022

SP2

 

Foi meu amigo Silvio que me chamou pra ir ver o carro. Ele estudava na minha sala e foi quem me ajudou nos passos iniciais como colecionador de moedas antigas. Um dia ele levou a sua caixinha de moedas e literalmente parou a aula pra gente ver as preciosidades. Alguns dias depois, na saída da escola, ele disse que ia na casa de uma tia, ajudar na venda de um carro e me chamou pra ir junto.

Ele morava em Bonsucesso e a gente pegava o mesmo ônibus. Então, foi só ir mais adiante, até o bairro de Olaria, e chagar à casa da Tia Teresa, como ele me apresentou a então dona do carro.

Enquanto a gente ia atravessando a sala e a área dos fundos, até chegar à garagem da casa, eu ia entendendo todo o processo da venda e a necessidade de espaço para mais carros.

A tia explicava que o veículo era o xodó do marido, já falecido havia dois anos, e que ela sempre deixava o próprio carro na rua com medo de arranhar ou danificar a tal joia, sendo que as brigas eram constantes quando o assunto era o pouco espaço da garagem. E como ela saía mais vezes durante o dia, seja para ir ao mercado ou cumprir os vários compromissos médicos, sociais e de trabalho, a novela pra estacionar era sempre interminável.

Foi depois desses dois longos anos que a esposa, finalmente, se decidiu a vender o carro, depois de ouvir as opiniões de toda a família, sublinhando sempre que ela respeitava o apego do marido e a sua adoração pelo modelo.

De repente a gente chega na porta da garagem e o Silvio me diz “se prepare”, batendo com a mão no meu ombro. Ao mesmo tempo em que a Tia Teresa ia acendendo as luzes, o Silvio ia tirando o enorme pano que cobria aquela silhueta, revelando um SP2 da Volkswagen, no-vi-nho.

Eu nem sou assim um admirador de carros, fanático por motores e tal, mas o carro era lindo, branquinho, com duas listras na lateral, uma vermelha e outra azul, pneus novinhos, tudo impecável de brilhante, apesar de o modelo já ter saído de linha há algum tempo. Era o tipo de carro que a pessoa vê e logo se imagina dono, dirigindo ou mesmo se acomodando pra ligar o rádio e apreciar a viagem.

À primeira vista parecia até um carro de brinquedo. O SP2 tinha somente dois lugares, era baixinho, com uma aerodinâmica esportiva e arrojada, pronto pra querer voar. Pra completar, quando o Silvio virou a chave surgiu aquele ronco do bom e velho Fusca, ecoando por toda a garagem.

O sobrinho então perguntou:

– E quando é que o homem, o possível comprador, chega?

– Ah, meu filho, logo logo. Daqui a pouco ele aparece.

Era possível sentir uma certa melancolia naquelas palavras, mas não tinha como eu ir além dessa percepção superficial, até por não conhecer direito a tia do meu amigo. Mas algo me intuía nesse sentido.

Finalmente os interessados chegaram. Eram dois. Olharam tudo, mexeram em tudo, abriram tudo, avaliaram tudo. Só elogios. Tia Teresa era toda orgulho. Do carro e do marido. Ligaram novamente o motor e depois pediram pra dar uma volta, como última análise, coisa rápida, ao redor do quarteirão.

Assim que viu o carro saindo pela rua a tia estremeceu:

– Silvinho, querido, meu coração tá apertadinho aqui dentro do peito. Parece que estou vendo o Cazé ali ao volante, dirigindo e sorrindo pra todo mundo, com aqueles seus eternos óculos Ray-Ban.

– Que bom, tia, é uma lembrança boa isso. Eu também tenho ótimas memórias do tio dento do SP2.

– Ai, meu Deus. O que eu faço? – voltou a lamentar.

– Como assim? O que a senhora faz sobre o quê?

– Ah, sei lá. Talvez seja só implicância minha. Essa garagem é tão grande. Se eu der uma boa arrumada, uma geral aqui, até vai caber o meu carro também. E aí eu não preciso vender o do Tio Cazé. Pelo menos não agora. Acho que não estou preparada.

– Mas tia, se a senhora está com dúvida então não vende. Deixa pra uma outra hora.

– Será, Silvinho?

– Se eu disser que venho aqui lhe dar uma mãozinha na arrumação da garagem, pra ver se conseguimos mais espaço pra o outro carro, o seu carro, isso ajuda?

– Ah, demais. Aí vai ter uma pessoa a mais pra decidir junto comigo o que jogar fora e a conseguir espaço, que é mesmo o meu maior problema. Essa garagem tem umas caixas ali pra cima que eu nem sei o que tem dentro. É tudo coisa do Cazé.

– Pronto. Então decidimos assim. Eu venho ajudar na geral da garagem.

Ela deu um sorrisinho acanhado, fez que sim com o polegar e depois fechou as mãos uma na outra.

Quando os rapazes retornaram e entraram com o SP2 na garagem, o mais velho já veio sacando a carteira com o talão de cheques e a caneta. Assim que viu a cena a Tia Teresa nem deixou o homem falar. Puxou ele de lado, deu uma desculpa qualquer e pediu pra adiar o negócio. Disse que era uma coisa de família, que precisava de maior reflexão e ela não poderia decidir a tempo.

De um momento para o outro estávamos todos aliviados com o desfecho daquela não-compra  ou não-venda. Enquanto a gente arrumava o carro de novo na garagem, cobrindo o bicho com o carinho que ele merecia, o Silvio disse:

– Então tia, marca o dia que eu venho te ajudar na arrumação aí da garagem e a gente vê o que jogar fora e o que guardar. Vai ficar tudo certinho e a senhora vai poder botar o seu carro aqui dentro também, juntinho com o do tio.

Contagiado pela empolgação do meu amigo eu arrematei:

– Se quiserem eu venho ajudar também. Isso promete ser uma aventura e tanto! Então, tô dentro.

– Aí tia, agora já temos até um ajudante. E alto o bastante pra alcançar as prateleiras lá de cima.

 

Depois de tudo terminado, com as devidas despedidas, eu e o Sílvio pegamos o caminho de volta pra casa, ambos pensando no combinado que havíamos acabado de acertar. Depois de um tempo ele começou:

– Me diz uma coisa: se eu disser que o meu interesse em ajudar a Tia Teresa passa pela possibilidade de esse carro do Tio um dia ser meu, eu vou ser a pessoa mais mesquinha e maquiavélica desse mundo?

– Hum... Talvez... E se eu disser que o meu interesse passa por, na eventualidade de o SP2 um dia ser seu, você me chamar pra dar umas voltas, vou ser eu o mesquinho?

– Hum, talvez!

E demos, cada um, uma risadinha marota.

– A gente não vale nada.

– Deus está vendo.

– Tá vendo tudo.

Batemos as mãos espalmadas e saímos correndo pra pegar o ônibus que já quase deixava o ponto.

 

 

2 comentários:

  1. Maravilha de crônica.
    Parabéns caro Anderson.
    O corre-corre cotidianos só permitiu a leitura dessa linda crônica agora enquanto aguardo o voo para Santiago que atrasou quase cinco horas porque o avião que veio nos buscar no horário furou o pneu e então tiveram que mandar outro de Santiago do Chile.
    Grande abraço.

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