Foi meu amigo
Silvio que me chamou pra ir ver o carro. Ele estudava na minha sala e foi quem
me ajudou nos passos iniciais como colecionador de moedas antigas. Um dia ele
levou a sua caixinha de moedas e literalmente parou a aula pra gente ver as preciosidades.
Alguns dias depois, na saída da escola, ele disse que ia na casa de uma tia,
ajudar na venda de um carro e me chamou pra ir junto.
Ele morava em
Bonsucesso e a gente pegava o mesmo ônibus. Então, foi só ir mais adiante, até
o bairro de Olaria, e chagar à casa da Tia Teresa, como ele me apresentou a
então dona do carro.
Enquanto a
gente ia atravessando a sala e a área dos fundos, até chegar à garagem da casa,
eu ia entendendo todo o processo da venda e a necessidade de espaço para mais carros.
A tia
explicava que o veículo era o xodó do marido, já falecido havia dois anos, e
que ela sempre deixava o próprio carro na rua com medo de arranhar ou danificar
a tal joia, sendo que as brigas eram constantes quando o assunto era o pouco espaço da
garagem. E como ela saía mais vezes durante o dia, seja para ir ao mercado ou
cumprir os vários compromissos médicos, sociais e de trabalho, a novela pra estacionar
era sempre interminável.
Foi depois
desses dois longos anos que a esposa, finalmente, se decidiu a vender o carro, depois
de ouvir as opiniões de toda a família, sublinhando sempre que ela respeitava o
apego do marido e a sua adoração pelo modelo.
De repente a
gente chega na porta da garagem e o Silvio me diz “se prepare”, batendo com a
mão no meu ombro. Ao mesmo tempo em que a Tia Teresa ia acendendo as luzes, o
Silvio ia tirando o enorme pano que cobria aquela silhueta, revelando um SP2 da
Volkswagen, no-vi-nho.
Eu nem sou
assim um admirador de carros, fanático por motores e tal, mas o carro era
lindo, branquinho, com duas listras na lateral, uma vermelha e outra azul,
pneus novinhos, tudo impecável de brilhante, apesar de o modelo já ter saído de
linha há algum tempo. Era o tipo de carro que a pessoa vê e logo se imagina dono,
dirigindo ou mesmo se acomodando pra ligar o rádio e apreciar a viagem.
À primeira
vista parecia até um carro de brinquedo. O SP2 tinha somente dois lugares, era
baixinho, com uma aerodinâmica esportiva e arrojada, pronto pra querer voar.
Pra completar, quando o Silvio virou a chave surgiu aquele ronco do bom e velho
Fusca, ecoando por toda a garagem.
O sobrinho
então perguntou:
– E quando é
que o homem, o possível comprador, chega?
– Ah, meu
filho, logo logo. Daqui a pouco ele aparece.
Era possível
sentir uma certa melancolia naquelas palavras, mas não tinha como eu ir além
dessa percepção superficial, até por não conhecer direito a tia do meu amigo.
Mas algo me intuía nesse sentido.
Finalmente os
interessados chegaram. Eram dois. Olharam tudo, mexeram em tudo, abriram tudo,
avaliaram tudo. Só elogios. Tia Teresa era toda orgulho. Do carro e do marido.
Ligaram novamente o motor e depois pediram pra dar uma volta, como última
análise, coisa rápida, ao redor do quarteirão.
Assim que viu
o carro saindo pela rua a tia estremeceu:
– Silvinho, querido,
meu coração tá apertadinho aqui dentro do peito. Parece que estou vendo o Cazé
ali ao volante, dirigindo e sorrindo pra todo mundo, com aqueles seus eternos óculos
Ray-Ban.
– Que bom, tia,
é uma lembrança boa isso. Eu também tenho ótimas memórias do tio dento do SP2.
– Ai, meu
Deus. O que eu faço? – voltou a lamentar.
– Como assim?
O que a senhora faz sobre o quê?
– Ah, sei lá. Talvez
seja só implicância minha. Essa garagem é tão grande. Se eu der uma boa
arrumada, uma geral aqui, até vai caber o meu carro também. E aí eu não preciso vender o do Tio Cazé. Pelo menos não agora. Acho que não estou preparada.
– Mas tia, se
a senhora está com dúvida então não vende. Deixa pra uma outra hora.
– Será,
Silvinho?
– Se eu disser
que venho aqui lhe dar uma mãozinha na arrumação da garagem, pra ver se
conseguimos mais espaço pra o outro carro, o seu carro, isso ajuda?
– Ah, demais.
Aí vai ter uma pessoa a mais pra decidir junto comigo o que jogar fora e a conseguir
espaço, que é mesmo o meu maior problema. Essa garagem tem umas caixas ali pra
cima que eu nem sei o que tem dentro. É tudo coisa do Cazé.
– Pronto.
Então decidimos assim. Eu venho ajudar na geral da garagem.
Ela deu um
sorrisinho acanhado, fez que sim com o polegar e depois fechou as mãos uma na
outra.
Quando os
rapazes retornaram e entraram com o SP2 na garagem, o mais velho já veio sacando
a carteira com o talão de cheques e a caneta. Assim que viu a cena a Tia Teresa
nem deixou o homem falar. Puxou ele de lado, deu uma desculpa qualquer e pediu
pra adiar o negócio. Disse que era uma coisa de família, que precisava de maior
reflexão e ela não poderia decidir a tempo.
De um momento
para o outro estávamos todos aliviados com o desfecho daquela não-compra – ou
não-venda. Enquanto a gente arrumava o carro de novo na garagem, cobrindo o
bicho com o carinho que ele merecia, o Silvio disse:
– Então tia,
marca o dia que eu venho te ajudar na arrumação aí da garagem e a gente vê o
que jogar fora e o que guardar. Vai ficar tudo certinho e a senhora vai poder
botar o seu carro aqui dentro também, juntinho com o do tio.
Contagiado
pela empolgação do meu amigo eu arrematei:
– Se quiserem eu
venho ajudar também. Isso promete ser uma aventura e tanto! Então, tô dentro.
– Aí tia, agora
já temos até um ajudante. E alto o bastante pra alcançar as prateleiras lá de
cima.
Depois de tudo
terminado, com as devidas despedidas, eu e o Sílvio pegamos o caminho de volta
pra casa, ambos pensando no combinado que havíamos acabado de acertar. Depois
de um tempo ele começou:
– Me diz uma
coisa: se eu disser que o meu interesse em ajudar a Tia Teresa passa pela
possibilidade de esse carro do Tio um dia ser meu, eu vou ser a pessoa mais
mesquinha e maquiavélica desse mundo?
– Hum...
Talvez... E se eu disser que o meu interesse passa por, na eventualidade de o
SP2 um dia ser seu, você me chamar pra dar umas voltas, vou ser eu o mesquinho?
– Hum, talvez!
E demos, cada
um, uma risadinha marota.
– A gente não
vale nada.
– Deus está
vendo.
– Tá vendo tudo.
Batemos as
mãos espalmadas e saímos correndo pra pegar o ônibus que já quase deixava o ponto.
alegrou minha noite...
ResponderExcluirMaravilha de crônica.
ResponderExcluirParabéns caro Anderson.
O corre-corre cotidianos só permitiu a leitura dessa linda crônica agora enquanto aguardo o voo para Santiago que atrasou quase cinco horas porque o avião que veio nos buscar no horário furou o pneu e então tiveram que mandar outro de Santiago do Chile.
Grande abraço.