Uma das coisas
mais irritantes é quando o mercado está vazio e mesmo assim as filas não andam.
Sempre que isso acontece eu logo penso nos dias em que ele está cheio. E me pergunto se
os funcionários seriam mais ágeis numa hora dessas ou, justamente, se se entregariam ao conformismo por não poderem fazer nada e resolver a situação.
Pelo sim ou
pelo não, a minha sensação naquele dia era de pura impotência, enquanto eu
olhava pra todos os lados, à procura de um caixa menos cheio ou, quem sabe, um guichê
com um veloz funcionário do mês à procura de elogios da chefia.
Perto de mim,
um rapaz de mochila dizia ao amigo:
– Que nome
você daria ao caixa rápido, cujo atendente mais parece um caixa lento?
– Um caixa-rápido-lento
– brincou o outro.
Foi então que
a minha má vontade se instalou em definitivo. Eu nem tinha percebido direito a
aproximação dela mas, provocada pelo diálogo próximo, logo aquela contaminação de
ânimo foi alcançando a todos nós da fila, sem restrição.
Eu olhava por
cima da pequena aglomeração e podia ver uma senhora, lá na frente, numa
vagarosidade peculiar, digna de efeito das câmeras de cinema. Ela conversava com
a mocinha do caixa, parecia até que falava em segredo, olhava a validade de
alguns produtos da sua sacola e depois tornava a se inclinar para a atendente,
como que para ouvir melhor o que ela respondia.
O contraste
entre a nossa disposição, ali na fila, e a paciência com que a funcionária
atendia aquela senhora chegava rapidamente ao limite da irritação e todos ali
em volta já se rendiam à sua coletiva má vontade, dando nomes aos culpados,
conforme a crença de cada um.
– O gerente. Cadê
o gerente que não vê isso?
– E os apoios
de caixa, aquele pessoal que destrava as máquinas, que recolhe a féria e substitui
as notas graúdas por miúdas, para fazer troco? Nessas horas eles não aparecem.
– Não pode
abrir algum outro guichê?
– Concordo. Tem
tantos fechados no lado de lá que era só abrir mais um dos rápidos aqui.
É
impressionante como alguns tipos de sensações, mesmo não sendo genuinamente
nossos, passam a fazer parte da nossa conduta, assim, quase sem explicação. Eu achei
que nem estava tão incomodado antes, mas passei a ficar depois de ouvir todas
aquelas reclamações juntas. Foi algo crescente que parecia que me lavava numa
enxurrada, ou boiada, sem que eu me desse conta.
Tentando descobrir o que era afinal a conversa da tal senhora com a moça do caixa, de repente eu
me dei conta de algo perturbador. Imediatamente então eu entendi tudo. Pelos
gestos da senhora eu pude perceber que não era bem uma conversa amena que se
desenrolava ali. Não era a validade dos itens que ela olhava, mas sim o preço deles.
E para minha surpresa, na verdade ela estava indicando à moça alguns produtos
que deveriam ser subtraídos das suas compras, deixando-os pra trás,
simplesmente.
Muitas vezes
eu tinha a nítida impressão de que ela olhava pro dinheiro que tinha nas mãos e
voltava a apontar para um produto, decidindo o que ia levar e o que ficaria no
supermercado. Só que era tudo muito sutil naquela cena, dado que, além de
distante de mim, tanto a senhora como a moça procuravam de alguma forma ocultar,
preservar o que estava realmente acontecendo.
Intuo aqui que,
no mesmíssimo instante que a minha ficha caiu, a dos outros clientes também teve
o mesmo destino. E no momento em que aquelas pessoas tomaram ciência do caso por completo, tudo mudou. Mudou radicalmente. Onde antes havia só egoísmo e irritação,
de um segundo pro outro se tornou empatia, compaixão e, enfim, humanidade, algo
raro nesse atual e estranho Brasil.
A pressa
sumiu, a impaciência se foi, o egoísmo se esvaiu por completo. Até que o
gerente da bateria de caixas se aproximou do guichê e todos nós pudemos notar o
modo como ele gesticulava com a senhora, a ênfase que dava às próprias argumentações, chegando a apontar por vezes a fila onde estávamos, como que reclamando da
demora no pagamento das compras.
A reação que
surgiu foi imediata e surpreendente para todos nós, já por demais envolvidos com aquele
episódio. O primeiro que levantou a voz em defesa da pobre senhora logo foi seguido
pelos demais, cada qual com mais firmeza a reivindicar o respeito para com ela,
ainda mais sendo uma senhora idosa. Outro pedia ao superior que a deixasse em
paz, para que terminasse de decidir as suas compras com calma, cuidando para não
fazer qualquer menção à falta de dinheiro.
O gerente,
meio sem entender direito o que fazer ou mesmo qual seria o seu papel naquele
cenário, fingiu estar sendo chamado em outro local da loja e saiu,
cumprimentando a todos e recebendo como resposta o nosso aceno de assentimento.
Lentamente passamos a nos entreolhar ali na fila, talvez nos reconhecendo como gente, como brasileiros e
como o povo fraterno que um dia fomos.
Um pouco de
vergonha, misturada a um sentimento de indignidade pelo comportamento que
tivemos, tomou conta de quase todos nós. Primeiro a má vontade, depois a
impaciência, o egoísmo e a imperdoável ausência de empatia. A seguir, a
verdade, a rudeza daquela existência, veio como um tapa na cara. Por fim, restava
exposta a crueza da condição humana a se impor como triste realidade
brasileira.
A nossa má
vontade com a vida, com o outro, com aquela senhora e seu impreciso destino. É
tudo muito difícil de ser explicado com palavras. Só mesmo os olhares das
pessoas que viveram aquela mesma experiência comigo é que jamais vão sair da
minha lembrança. Tenho plena certeza disso!