quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Má Vontade


Uma das coisas mais irritantes é quando o mercado está vazio e mesmo assim as filas não andam. Sempre que isso acontece eu logo penso nos dias em que ele está cheio. E me pergunto se os funcionários seriam mais ágeis numa hora dessas ou, justamente, se se entregariam ao conformismo por não poderem fazer nada e resolver a situação.

Pelo sim ou pelo não, a minha sensação naquele dia era de pura impotência, enquanto eu olhava pra todos os lados, à procura de um caixa menos cheio ou, quem sabe, um guichê com um veloz funcionário do mês à procura de elogios da chefia.

Perto de mim, um rapaz de mochila dizia ao amigo:

– Que nome você daria ao caixa rápido, cujo atendente mais parece um caixa lento?

– Um caixa-rápido-lento – brincou o outro.

Foi então que a minha má vontade se instalou em definitivo. Eu nem tinha percebido direito a aproximação dela mas, provocada pelo diálogo próximo, logo aquela contaminação de ânimo foi alcançando a todos nós da fila, sem restrição.

Eu olhava por cima da pequena aglomeração e podia ver uma senhora, lá na frente, numa vagarosidade peculiar, digna de efeito das câmeras de cinema. Ela conversava com a mocinha do caixa, parecia até que falava em segredo, olhava a validade de alguns produtos da sua sacola e depois tornava a se inclinar para a atendente, como que para ouvir melhor o que ela respondia.

O contraste entre a nossa disposição, ali na fila, e a paciência com que a funcionária atendia aquela senhora chegava rapidamente ao limite da irritação e todos ali em volta já se rendiam à sua coletiva má vontade, dando nomes aos culpados, conforme a crença de cada um.

– O gerente. Cadê o gerente que não vê isso?

– E os apoios de caixa, aquele pessoal que destrava as máquinas, que recolhe a féria e substitui as notas graúdas por miúdas, para fazer troco? Nessas horas eles não aparecem.

– Não pode abrir algum outro guichê?

– Concordo. Tem tantos fechados no lado de lá que era só abrir mais um dos rápidos aqui.

É impressionante como alguns tipos de sensações, mesmo não sendo genuinamente nossos, passam a fazer parte da nossa conduta, assim, quase sem explicação. Eu achei que nem estava tão incomodado antes, mas passei a ficar depois de ouvir todas aquelas reclamações juntas. Foi algo crescente que parecia que me lavava numa enxurrada, ou boiada, sem que eu me desse conta.

Tentando descobrir o que era afinal a conversa da tal senhora com a moça do caixa, de repente eu me dei conta de algo perturbador. Imediatamente então eu entendi tudo. Pelos gestos da senhora eu pude perceber que não era bem uma conversa amena que se desenrolava ali. Não era a validade dos itens que ela olhava, mas sim o preço deles. E para minha surpresa, na verdade ela estava indicando à moça alguns produtos que deveriam ser subtraídos das suas compras, deixando-os pra trás, simplesmente.

Muitas vezes eu tinha a nítida impressão de que ela olhava pro dinheiro que tinha nas mãos e voltava a apontar para um produto, decidindo o que ia levar e o que ficaria no supermercado. Só que era tudo muito sutil naquela cena, dado que, além de distante de mim, tanto a senhora como a moça procuravam de alguma forma ocultar, preservar o que estava realmente acontecendo.

Intuo aqui que, no mesmíssimo instante que a minha ficha caiu, a dos outros clientes também teve o mesmo destino. E no momento em que aquelas pessoas tomaram ciência do caso por completo, tudo mudou. Mudou radicalmente. Onde antes havia só egoísmo e irritação, de um segundo pro outro se tornou empatia, compaixão e, enfim, humanidade, algo raro nesse atual e estranho Brasil.

A pressa sumiu, a impaciência se foi, o egoísmo se esvaiu por completo. Até que o gerente da bateria de caixas se aproximou do guichê e todos nós pudemos notar o modo como ele gesticulava com a senhora, a ênfase que dava às próprias argumentações, chegando a apontar por vezes a fila onde estávamos, como que reclamando da demora no pagamento das compras.

A reação que surgiu foi imediata e surpreendente para todos nós, já por demais envolvidos com aquele episódio. O primeiro que levantou a voz em defesa da pobre senhora logo foi seguido pelos demais, cada qual com mais firmeza a reivindicar o respeito para com ela, ainda mais sendo uma senhora idosa. Outro pedia ao superior que a deixasse em paz, para que terminasse de decidir as suas compras com calma, cuidando para não fazer qualquer menção à falta de dinheiro.

O gerente, meio sem entender direito o que fazer ou mesmo qual seria o seu papel naquele cenário, fingiu estar sendo chamado em outro local da loja e saiu, cumprimentando a todos e recebendo como resposta o nosso aceno de assentimento.

Lentamente passamos a nos entreolhar ali na fila, talvez nos reconhecendo como gente, como brasileiros e como o povo fraterno que um dia fomos.

Um pouco de vergonha, misturada a um sentimento de indignidade pelo comportamento que tivemos, tomou conta de quase todos nós. Primeiro a má vontade, depois a impaciência, o egoísmo e a imperdoável ausência de empatia. A seguir, a verdade, a rudeza daquela existência, veio como um tapa na cara. Por fim, restava exposta a crueza da condição humana a se impor como triste realidade brasileira.

A nossa má vontade com a vida, com o outro, com aquela senhora e seu impreciso destino. É tudo muito difícil de ser explicado com palavras. Só mesmo os olhares das pessoas que viveram aquela mesma experiência comigo é que jamais vão sair da minha lembrança. Tenho plena certeza disso!

 

 


terça-feira, 22 de novembro de 2022

O Uno e o Fusca


Tão logo marcou o compromisso na cidade vizinha, Seu Olívio já calculava o jeito que tinha de dar pra vencer esse deslocamento. Sua esposa era professora nessa época e ele sabia que o Uno, que era o carro deles, se fazia bem mais necessário ao dia a dia dela, por conta do ir e vir nas várias escolas nas quais lecionava.

Ele ficou matutando por uma semana alguma saída para que a esposa não ficasse sem carro. Foi então que se lembrou de um amigo que tinha uma mecânica, bem perto da sua casa. Só depois de acertar o empréstimo do carro do amigo, um Fusca, foi que ele contou todo o problema a mulher, uma vez que já tinha a solução para o imbróglio.

Ela até ofereceu o Uno, disse que iria de ônibus, de táxi, que dava um jeito, mas logo depois agradeceu a insistência e o cuidado do marido em deixá-la tranquila pra cumprir a sua jornada de professora, pois que já tinha os percalços naturais e estes eram bastante para a sua lida profissional.

Assim foi que o Seu Olívio saiu de casa naquele dia, bem cedinho, para o compromisso na cidade contígua. O Fusca era uma beleza de carro. Muito bem tratado pelo dono, parecia novinho, tudo perfeito e funcionando, sem barulho algum, realmente aquele era um item raro, coisa de colecionador mesmo. Ele ia dirigindo e falando com o carro ao mesmo tempo, dizendo o quanto ele era bom de estabilidade e de potência, entre outras qualidades.

A tal reunião da qual ele ia participar tinha previsão de durar quase o dia todo. Por isso ele já planejava deixar o Fusca num lugar seguro, coberto se possível, em um estacionamento bacana. Quase na frente do prédio, entretanto, havia uma vaga bem debaixo de uma árvore enorme. Era bem na esquina de uma rua quase sem movimento, talvez até sem saída, calma e sem trânsito, que o levou a mudar de ideia e decidir estacionar ali mesmo, mas com todo o cuidado, medindo a distância da calçada e o paralelismo com o meio-fio, até se dar por satisfeito.

O dia de reunião passou voando. Embora cansado, Seu Olívio ainda ficou ali um tempo, conversando com alguns colegas, até resolver pegar a estrada de volta pra casa.

Do prédio até o local onde havia estacionado, ele sentiu um estado de nervosismo ir crescendo. Enquanto caminhava até a esquina, ele olhava os carros estacionados, que eram vários, mas aos poucos ia percebendo, mesmo ainda de longe, que não tinha nenhum Uno ali naquele pedaço.

Aqui, o leitor mais atento já se deu conta de que o nosso protagonista, nervoso em razão exponencial, estava procurando o seu próprio carro, o Uno, e não o carro do amigo, o Fusca, com o qual ele veio até a sua reunião.

Isto posto, sem outra alternativa possível, seguimos a narrativa, embora a nossa vontade – a minha inclusive – seja parar tudo aqui mesmo e contar ao pobre motorista a confusão que sua mente está prestes a fazer, refém de melhores juízos, o que poderá levá-lo a consequências inesperadas. Mas, sigamos.

Andando de um lado pro outro, Seu Olívio custou a tomar uma decisão, diante da dura realidade que dizia que o seu Uno definitivamente não estava estacionado ali, como aliás já sabemos. Depois de perguntar na padaria, no armazém e até na banca de jornais, o diálogo inquisitivo se rendeu por completo quando alguém sentenciou que era o caso de procurar uma delegacia policial.

Nesse exato momento o mundo deu uma nova cambalhota dentro da cabeça do Seu Olívio, levando o nosso herói distraído e sem saída a duvidar, não só da própria existência, mas das coincidências fatalistas e, claro, do destino, sempre o destino a nos levar como um flume inesgotável.

Na delegacia, o escrivão pediu um minuto e foi até a sala ao lado buscar um café. Trouxe dois e deu-lhe o outro, apontando o dedo em riste como se dissesse “só mais um minutinho”, e cruzou a porta de vidro na lateral do balcão de entrada.

Desolado, o homem esperava. E quando foi jogar o copinho do café no lixo, sentiu que o seu telefone tocava ali no banco ao lado. O coração deu uma disparada e ele suspirou fundo, dizendo um alô esmorecido à própria mulher.

– Oi, Bem. Já está na estrada? Tô num intervalinho da aula aqui e liguei só pra saber de ti. Deu tudo certo na reunião? Tá chovendo aí? Encontrou o Fernandes? Que horas você prevê chegar em casa?

– Sim, tá garoando aqui.

– Que voz é essa? Eu fiz um monte de perguntas e você só falou da chuva!

– É que eu estou na delegacia. Mas quando chegar eu te conto, tá?

– Como assim? Olívio, como assim? Presta atenção. Você está numa delegacia e vai me contar quando chegar em casa? Tá maluco? O que aconteceu? Fala. Fala logo. Ai, meu Deus do céu!

– Não foi nada, Bem. Fica calma.

– Como fica calma? Olívio, me fala o que aconteceu. Me fala a-go-ra.

– Roubaram o nosso carro. Eu estacionei na rua, na esquina. Devia ter botado no estacionamento do prédio, como eu tinha pensado. Mas não, sou burro. O carro ficou lá o dia todo e, claro, como eu dei mole ele foi roubado. A única vez que a gente comprou um carro zero e deu nisso. Não sei como eu posso ser tão besta. E tão azarado.

– Bem, calma. Me fala uma coisa primeiro: de que carro nós estamos falando?

– Ô mulher, e quantos carros a gente tem? Só um, né? O único, o Uno que agora está com um ladrão qualquer.

– Olívio, esse carro, o nosso carro, está aqui comigo! Você viajou com o carro do Baiano da mecânica. Um Fusca! O nosso carro está aqui na escola, comigo.

Um silêncio incômodo foi se estendendo.

– Bem? Olívio? Bem, fala comigo. Fala.

– Acho que eu tô ficando doido. Esqueci completamente que tinha viajado com o Fusca e não com o Uno. Aí quando fui procurar por um, não achei. Claro, porque era o outro que eu estacionei lá na calçada. Puta merda, que coisa de louco!

– Então, pensa comigo. Tá tudo certo. Fica calmo e corre lá no lugar de novo e vê se o Fusca está lá. Pronto.

– Que lugar?

– O lugar que você estacionou o carro, homem... Vai, corre lá!

Quando Seu Olívio se levantou, correndo, quase esbarrou no escrivão que já vinha chamá-lo, finalmente. Foi o tempo de dizer umas palavras sem nexo, frases inacabadas, mas que nessa altura não iam fazer a menor diferença.

– O senhor me desculpe, mas eu achei o meu carro. Não vou fazer mais o boletim. Que dizer, não tinham roubado ele. Não o meu, o do meu amigo, o Baiano. Minha mulher está com ele na escola. Quer dizer, ela está com o Uno, não com o Baiano. Entendeu? Entre deixar num estacionamento ou na rua, na sombra da árvore, eu preferi a sombra. E agora eu vou lá pegar o Fusca pra voltar pra casa. Não roubaram ele. Ufa, obrigado pelo atendimento. E pelo café. Até.

A única perda concreta que o Seu Olívio teve naquele dia foi não poder ver a cara do escrivão, rindo daquela sua saída eufórica, apressada, sem dizer coisa com coisa. Sem entender patavina, o funcionário ia apontando a esmo os dedos indicadores, como que mapeando caminhos opostos, improváveis, em direções aleatórias, até que por fim se deu por vencido, aquietou e balançou a cabeça lentamente:

– Que gente doida essa que aparece por aqui!