Tão logo
marcou o compromisso na cidade vizinha, Seu Olívio já calculava o jeito que
tinha de dar pra vencer esse deslocamento. Sua esposa era professora nessa
época e ele sabia que o Uno, que era o carro deles, se fazia bem mais
necessário ao dia a dia dela, por conta do ir e vir nas várias escolas nas
quais lecionava.
Ele ficou
matutando por uma semana alguma saída para que a esposa não ficasse sem carro.
Foi então que se lembrou de um amigo que tinha uma mecânica, bem perto da sua
casa. Só depois de acertar o empréstimo do carro do amigo, um Fusca, foi que
ele contou todo o problema a mulher, uma vez que já tinha a solução para o
imbróglio.
Ela até ofereceu
o Uno, disse que iria de ônibus, de táxi, que dava um jeito, mas logo depois
agradeceu a insistência e o cuidado do marido em deixá-la tranquila pra cumprir
a sua jornada de professora, pois que já tinha os percalços naturais e estes eram bastante para a sua lida profissional.
Assim foi que
o Seu Olívio saiu de casa naquele dia, bem cedinho, para o compromisso na
cidade contígua. O Fusca era uma beleza de carro. Muito bem tratado pelo dono,
parecia novinho, tudo perfeito e funcionando, sem barulho algum, realmente
aquele era um item raro, coisa de colecionador mesmo. Ele ia dirigindo e
falando com o carro ao mesmo tempo, dizendo o quanto ele era bom de
estabilidade e de potência, entre outras qualidades.
A tal reunião
da qual ele ia participar tinha previsão de durar quase o dia todo. Por isso
ele já planejava deixar o Fusca num lugar seguro, coberto se possível, em um
estacionamento bacana. Quase na frente do prédio, entretanto, havia uma vaga bem
debaixo de uma árvore enorme. Era bem na esquina de uma rua quase sem
movimento, talvez até sem saída, calma e sem trânsito, que o levou a mudar de
ideia e decidir estacionar ali mesmo, mas com todo o cuidado, medindo a
distância da calçada e o paralelismo com o meio-fio, até se dar por satisfeito.
O dia de
reunião passou voando. Embora cansado, Seu Olívio ainda ficou ali um tempo, conversando
com alguns colegas, até resolver pegar a estrada de volta pra casa.
Do prédio até
o local onde havia estacionado, ele sentiu um estado de nervosismo ir crescendo.
Enquanto caminhava até a esquina, ele olhava os carros estacionados, que eram
vários, mas aos poucos ia percebendo, mesmo ainda de longe, que não tinha
nenhum Uno ali naquele pedaço.
Aqui, o leitor
mais atento já se deu conta de que o nosso protagonista, nervoso em razão exponencial,
estava procurando o seu próprio carro, o Uno, e não o carro do amigo, o Fusca,
com o qual ele veio até a sua reunião.
Isto posto,
sem outra alternativa possível, seguimos a narrativa, embora a nossa vontade –
a minha inclusive – seja parar tudo aqui mesmo e contar ao pobre motorista a
confusão que sua mente está prestes a fazer, refém de melhores juízos, o que
poderá levá-lo a consequências inesperadas. Mas, sigamos.
Andando de um
lado pro outro, Seu Olívio custou a tomar uma decisão, diante da dura realidade
que dizia que o seu Uno definitivamente não estava estacionado ali, como aliás já
sabemos. Depois de perguntar na padaria, no armazém e até na banca de jornais,
o diálogo inquisitivo se rendeu por completo quando alguém sentenciou que era o
caso de procurar uma delegacia policial.
Nesse exato
momento o mundo deu uma nova cambalhota dentro da cabeça do Seu Olívio, levando
o nosso herói distraído e sem saída a duvidar, não só da própria existência, mas
das coincidências fatalistas e, claro, do destino, sempre o destino a nos levar
como um flume inesgotável.
Na delegacia,
o escrivão pediu um minuto e foi até a sala ao lado buscar um café. Trouxe dois
e deu-lhe o outro, apontando o dedo em riste como se dissesse “só mais um
minutinho”, e cruzou a porta de vidro na lateral do balcão de entrada.
Desolado, o
homem esperava. E quando foi jogar o copinho do café no lixo, sentiu que o seu
telefone tocava ali no banco ao lado. O coração deu uma disparada e ele
suspirou fundo, dizendo um alô esmorecido à própria mulher.
– Oi, Bem. Já
está na estrada? Tô num intervalinho da aula aqui e liguei só pra saber de ti.
Deu tudo certo na reunião? Tá chovendo aí? Encontrou o Fernandes? Que horas
você prevê chegar em casa?
– Sim, tá
garoando aqui.
– Que voz é
essa? Eu fiz um monte de perguntas e você só falou da chuva!
– É que eu
estou na delegacia. Mas quando chegar eu te conto, tá?
– Como assim?
Olívio, como assim? Presta atenção. Você está numa delegacia e vai me contar
quando chegar em casa? Tá maluco? O que aconteceu? Fala. Fala logo. Ai, meu
Deus do céu!
– Não foi
nada, Bem. Fica calma.
– Como fica
calma? Olívio, me fala o que aconteceu. Me fala a-go-ra.
– Roubaram o
nosso carro. Eu estacionei na rua, na esquina. Devia ter botado no
estacionamento do prédio, como eu tinha pensado. Mas não, sou burro. O carro
ficou lá o dia todo e, claro, como eu dei mole ele foi roubado. A única vez que a
gente comprou um carro zero e deu nisso. Não sei como eu posso ser tão besta. E
tão azarado.
– Bem, calma.
Me fala uma coisa primeiro: de que carro nós estamos falando?
– Ô mulher, e
quantos carros a gente tem? Só um, né? O único, o Uno que agora está com um
ladrão qualquer.
– Olívio, esse
carro, o nosso carro, está aqui comigo! Você viajou com o carro do Baiano da
mecânica. Um Fusca! O nosso carro está aqui na escola, comigo.
Um silêncio incômodo foi se estendendo.
– Bem? Olívio? Bem, fala comigo. Fala.
– Acho que eu tô
ficando doido. Esqueci completamente que tinha viajado com o Fusca e não com o
Uno. Aí quando fui procurar por um, não achei. Claro, porque era o outro que eu
estacionei lá na calçada. Puta merda, que coisa de louco!
– Então, pensa comigo. Tá
tudo certo. Fica calmo e corre lá no lugar de novo e vê se o Fusca está lá. Pronto.
– Que lugar?
– O lugar que
você estacionou o carro, homem... Vai, corre lá!
Quando Seu
Olívio se levantou, correndo, quase esbarrou no escrivão que já vinha chamá-lo, finalmente.
Foi o tempo de dizer umas palavras sem nexo, frases inacabadas, mas que nessa
altura não iam fazer a menor diferença.
– O senhor me
desculpe, mas eu achei o meu carro. Não vou fazer mais o boletim. Que dizer,
não tinham roubado ele. Não o meu, o do meu amigo, o Baiano. Minha mulher está
com ele na escola. Quer dizer, ela está com o Uno, não com o Baiano. Entendeu? Entre
deixar num estacionamento ou na rua, na sombra da árvore, eu preferi a sombra. E
agora eu vou lá pegar o Fusca pra voltar pra casa. Não roubaram ele. Ufa, obrigado
pelo atendimento. E pelo café. Até.
A única perda concreta
que o Seu Olívio teve naquele dia foi não poder ver a cara do escrivão, rindo
daquela sua saída eufórica, apressada, sem dizer coisa com coisa. Sem entender
patavina, o funcionário ia apontando a esmo os dedos indicadores, como que mapeando
caminhos opostos, improváveis, em direções aleatórias, até que por fim se deu
por vencido, aquietou e balançou a cabeça lentamente:
– Que gente
doida essa que aparece por aqui!
Obrigado ao amigo Lírio, por me narrar essa crônica. (Anderson)
ResponderExcluirAhhh... Muito legal. Eu estava junto quando o Lírio narrou essa história. Mas que preciosidade de transcrição para o texto. Parabéns caro Anderson.
ResponderExcluirSensacional!! kkk...
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