terça-feira, 22 de novembro de 2022

O Uno e o Fusca


Tão logo marcou o compromisso na cidade vizinha, Seu Olívio já calculava o jeito que tinha de dar pra vencer esse deslocamento. Sua esposa era professora nessa época e ele sabia que o Uno, que era o carro deles, se fazia bem mais necessário ao dia a dia dela, por conta do ir e vir nas várias escolas nas quais lecionava.

Ele ficou matutando por uma semana alguma saída para que a esposa não ficasse sem carro. Foi então que se lembrou de um amigo que tinha uma mecânica, bem perto da sua casa. Só depois de acertar o empréstimo do carro do amigo, um Fusca, foi que ele contou todo o problema a mulher, uma vez que já tinha a solução para o imbróglio.

Ela até ofereceu o Uno, disse que iria de ônibus, de táxi, que dava um jeito, mas logo depois agradeceu a insistência e o cuidado do marido em deixá-la tranquila pra cumprir a sua jornada de professora, pois que já tinha os percalços naturais e estes eram bastante para a sua lida profissional.

Assim foi que o Seu Olívio saiu de casa naquele dia, bem cedinho, para o compromisso na cidade contígua. O Fusca era uma beleza de carro. Muito bem tratado pelo dono, parecia novinho, tudo perfeito e funcionando, sem barulho algum, realmente aquele era um item raro, coisa de colecionador mesmo. Ele ia dirigindo e falando com o carro ao mesmo tempo, dizendo o quanto ele era bom de estabilidade e de potência, entre outras qualidades.

A tal reunião da qual ele ia participar tinha previsão de durar quase o dia todo. Por isso ele já planejava deixar o Fusca num lugar seguro, coberto se possível, em um estacionamento bacana. Quase na frente do prédio, entretanto, havia uma vaga bem debaixo de uma árvore enorme. Era bem na esquina de uma rua quase sem movimento, talvez até sem saída, calma e sem trânsito, que o levou a mudar de ideia e decidir estacionar ali mesmo, mas com todo o cuidado, medindo a distância da calçada e o paralelismo com o meio-fio, até se dar por satisfeito.

O dia de reunião passou voando. Embora cansado, Seu Olívio ainda ficou ali um tempo, conversando com alguns colegas, até resolver pegar a estrada de volta pra casa.

Do prédio até o local onde havia estacionado, ele sentiu um estado de nervosismo ir crescendo. Enquanto caminhava até a esquina, ele olhava os carros estacionados, que eram vários, mas aos poucos ia percebendo, mesmo ainda de longe, que não tinha nenhum Uno ali naquele pedaço.

Aqui, o leitor mais atento já se deu conta de que o nosso protagonista, nervoso em razão exponencial, estava procurando o seu próprio carro, o Uno, e não o carro do amigo, o Fusca, com o qual ele veio até a sua reunião.

Isto posto, sem outra alternativa possível, seguimos a narrativa, embora a nossa vontade – a minha inclusive – seja parar tudo aqui mesmo e contar ao pobre motorista a confusão que sua mente está prestes a fazer, refém de melhores juízos, o que poderá levá-lo a consequências inesperadas. Mas, sigamos.

Andando de um lado pro outro, Seu Olívio custou a tomar uma decisão, diante da dura realidade que dizia que o seu Uno definitivamente não estava estacionado ali, como aliás já sabemos. Depois de perguntar na padaria, no armazém e até na banca de jornais, o diálogo inquisitivo se rendeu por completo quando alguém sentenciou que era o caso de procurar uma delegacia policial.

Nesse exato momento o mundo deu uma nova cambalhota dentro da cabeça do Seu Olívio, levando o nosso herói distraído e sem saída a duvidar, não só da própria existência, mas das coincidências fatalistas e, claro, do destino, sempre o destino a nos levar como um flume inesgotável.

Na delegacia, o escrivão pediu um minuto e foi até a sala ao lado buscar um café. Trouxe dois e deu-lhe o outro, apontando o dedo em riste como se dissesse “só mais um minutinho”, e cruzou a porta de vidro na lateral do balcão de entrada.

Desolado, o homem esperava. E quando foi jogar o copinho do café no lixo, sentiu que o seu telefone tocava ali no banco ao lado. O coração deu uma disparada e ele suspirou fundo, dizendo um alô esmorecido à própria mulher.

– Oi, Bem. Já está na estrada? Tô num intervalinho da aula aqui e liguei só pra saber de ti. Deu tudo certo na reunião? Tá chovendo aí? Encontrou o Fernandes? Que horas você prevê chegar em casa?

– Sim, tá garoando aqui.

– Que voz é essa? Eu fiz um monte de perguntas e você só falou da chuva!

– É que eu estou na delegacia. Mas quando chegar eu te conto, tá?

– Como assim? Olívio, como assim? Presta atenção. Você está numa delegacia e vai me contar quando chegar em casa? Tá maluco? O que aconteceu? Fala. Fala logo. Ai, meu Deus do céu!

– Não foi nada, Bem. Fica calma.

– Como fica calma? Olívio, me fala o que aconteceu. Me fala a-go-ra.

– Roubaram o nosso carro. Eu estacionei na rua, na esquina. Devia ter botado no estacionamento do prédio, como eu tinha pensado. Mas não, sou burro. O carro ficou lá o dia todo e, claro, como eu dei mole ele foi roubado. A única vez que a gente comprou um carro zero e deu nisso. Não sei como eu posso ser tão besta. E tão azarado.

– Bem, calma. Me fala uma coisa primeiro: de que carro nós estamos falando?

– Ô mulher, e quantos carros a gente tem? Só um, né? O único, o Uno que agora está com um ladrão qualquer.

– Olívio, esse carro, o nosso carro, está aqui comigo! Você viajou com o carro do Baiano da mecânica. Um Fusca! O nosso carro está aqui na escola, comigo.

Um silêncio incômodo foi se estendendo.

– Bem? Olívio? Bem, fala comigo. Fala.

– Acho que eu tô ficando doido. Esqueci completamente que tinha viajado com o Fusca e não com o Uno. Aí quando fui procurar por um, não achei. Claro, porque era o outro que eu estacionei lá na calçada. Puta merda, que coisa de louco!

– Então, pensa comigo. Tá tudo certo. Fica calmo e corre lá no lugar de novo e vê se o Fusca está lá. Pronto.

– Que lugar?

– O lugar que você estacionou o carro, homem... Vai, corre lá!

Quando Seu Olívio se levantou, correndo, quase esbarrou no escrivão que já vinha chamá-lo, finalmente. Foi o tempo de dizer umas palavras sem nexo, frases inacabadas, mas que nessa altura não iam fazer a menor diferença.

– O senhor me desculpe, mas eu achei o meu carro. Não vou fazer mais o boletim. Que dizer, não tinham roubado ele. Não o meu, o do meu amigo, o Baiano. Minha mulher está com ele na escola. Quer dizer, ela está com o Uno, não com o Baiano. Entendeu? Entre deixar num estacionamento ou na rua, na sombra da árvore, eu preferi a sombra. E agora eu vou lá pegar o Fusca pra voltar pra casa. Não roubaram ele. Ufa, obrigado pelo atendimento. E pelo café. Até.

A única perda concreta que o Seu Olívio teve naquele dia foi não poder ver a cara do escrivão, rindo daquela sua saída eufórica, apressada, sem dizer coisa com coisa. Sem entender patavina, o funcionário ia apontando a esmo os dedos indicadores, como que mapeando caminhos opostos, improváveis, em direções aleatórias, até que por fim se deu por vencido, aquietou e balançou a cabeça lentamente:

– Que gente doida essa que aparece por aqui!

 


3 comentários:

  1. Obrigado ao amigo Lírio, por me narrar essa crônica. (Anderson)

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  2. Ahhh... Muito legal. Eu estava junto quando o Lírio narrou essa história. Mas que preciosidade de transcrição para o texto. Parabéns caro Anderson.

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