sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O Procedimento


Foi pura sorte eu ter entrado no banco exatamente na hora que começava a chover. Estava tudo muito vazio, já que atualmente todo mundo resolve as coisas pela internet, pelo aplicativo do banco etc. No meu caso, eu só queria fazer um depósito, em dinheiro, e não havia alternativa, a não ser ir até a agência. Portanto, já que eu estava lá, optei pelo caixa mesmo, ao invés de usar aqueles envelopinhos do autoatendimento.

Junto comigo entraram também algumas pessoas, somente com o motivo de fugir da chuva que apertava. Ficamos todos um tempo ali na entrada, sacudindo as roupas ainda úmidas. Só depois disso que eu fui pra porta giratória, a caminho do caixa.

Ao me ver, o guarda fez sinal pra eu passar e perguntou:

– Onde o senhor vai?

– No caixa. Fica no segundo andar, né?

– Mas e o guarda-chuva?

– Não tenho guarda-chuva não.

– Mas nós vimos pela câmera o senhor mexendo na sua mochila e botando alguma coisa dentro dela. E parecia um guarda-chuva.

– Eu nem tenho mochila, moço. Estou só com esse envelope na mão.

– Tinha uma arma na sua mochila?

– Como assim, que arma rapaz? Eu nem estou com mochila alguma.

– O senhor pode ter botado a mochila, com a arma, no armário de guarda-volumes ali fora.

– Ok. E do que me adianta uma arma dentro da mochila, fechada no armário do lado de fora? Você acha que se eu fosse fazer um assalto ou qualquer coisa, ia deixar a arma lá fora?

– Eu não sei de nada. O senhor é que está dizendo. Eu estou só perguntando.

Uma atendente, que talvez estivesse percebendo o diálogo surreal, veio me ajudar. Fez um sinal para o guarda pavonesco e me levou a uma baia de atendimento, daquelas onde ficam os gerentes.

– O senhor quer ir até o caixa pra quê?

– Pra fazer um depósito. Em dinheiro.

– Humm... Mas... Esse montante é seu mesmo? O senhor pode comprovar a origem desses valores? São notas numeradas em sequência? Têm alguma marca de tinta nelas?

– Marcas de tinta? São só 300 reais em notas de 50. Não tem nada de montante.

– O senhor vai depositar lá com a dona Marízia? O senhor é amigo dela?

– Não sou amigo não. Eu nem a conheço.

– O senhor já trabalhou neste banco?

– Nunca trabalhei em banco. Só vim fazer um depósito. Eu raramente venho a agência.

– Fique tranquilo. Está tudo bem. Fique calmo. Eu vou providenciar os papéis para o senhor assinar.

Olhando pros lados, eu notei que o saguão de atendimento dos gerentes estava igualmente vazio. Só havia as mesas, os computadores, nada de gerente, uns carimbos, alguns copos e umas canetas e só. E também não tinha cliente algum esperando, a não ser eu.

A moça voltou com uns papéis e foi logo botando os óculos, enquanto se sentava ao meu lado. Notei que ela não ficou na cadeira do outro lado da mesa, como seria normal em um atendimento. Mas, normalidade era o que eu menos tinha visto até então.

– Pelos nossos registros a sua conta é originária do Rio de Janeiro. O senhor confirma?

– Sim, eu fiz a transferência da conta pra cá quando vim morar aqui.

– E qual foi o motivo?

– É isso que estou dizendo: porque vim residir aqui.

– Eu pergunto porque o senhor veio residir aqui? Houve alguma ocorrência na antiga agência, no Rio?

– Não senhora. Eu vim trabalhar aqui. Eu pedi transferência do meu trabalho.

– Qual é a senha do seu e-mail? É do Yahoo não é mesmo?

– Não. Não vou te dar senha alguma. Que isso agora?

– Ok. Então qual é mesmo o valor do consignado que o senhor deu entrada? E o senhor lembra qual o tempo total do contrato?

– Olha, eu não pedi empréstimo nenhum. Verifica aí que deve ter algum erro.

– Outro ponto: qual o dedo que o senhor costuma usar no leitor digital no caixa eletrônico?

Nisso se aproximou o mesmo guarda da entrada e ficou de pé ao meu lado. Às vezes ele tirava o cassetete do cinto e batia na palma da mão, depois guardava de novo. Incomodado com a minha demora em responder ele falou:

– Olha, as câmeras gravam sempre o dedo que o senhor usa para os saques. Tem uma câmera acima de cada caixa eletrônico. Então, não adianta mentir porque está tudo gravado lá.

– Gente, eu uso o indicador, como todo mundo.

– Que todo mundo?

– Eu sei lá.

– Onde o senhor guarda dinheiro em casa? O senhor tem um cofre na parede? – retomou a atendente manuseando a caneta e apontando para o formulário.

– Claro que não. Não guardo dinheiro nenhum em casa. Aliás, nem tenho dinheiro suficiente pra guardar. Nem em casa, nem em lugar algum.

– E as joias? Onde ficam?

– Nada de joias. Eu tinha um único cordão de ouro, mas dei pro meu filho já faz um tempão.

– Qual o número do cofre pessoal que o senhor aluga aqui no banco?

– Não alugo cofre nenhum.

– E sobre o seu consignado, como seriam os juros caso...

– Já disse que não fiz pedido de consignado nenhum.

– Mas o senhor não veio aqui pra falar com a dona Marízia?

– Eu disse que ia no caixa fazer um raio de um depósito. E só!

– Depois que o senhor sacar o seu consignado, no caixa da dona Marízia, qual o ônibus que o senhor vai pegar pra voltar pra casa?

– Nem vou responder. Já chega.

– É no bolso da frente ou de trás da bermuda que o senhor costuma levar o dinheiro sacado?

– Tsc... tsc... Deixa pra lá, acho que vou embora.

– Uma última pergunta: o senhor pode deixar umas folhas de cheques em branco, assinadas, com a gente? Vai ficar aos cuidados da sua gerente, tá? E somente ela vai ter acesso ao seu talão, ok?

Antes que eu respondesse, incrédulo com a própria calma que eu vinha demonstrando até então, aparece do nada uma outra gerente. De longe era possível ouvir o barulho dos saltos dela e a sua caminhada firme em nossa direção. Nesse momento eu, o guarda e a atendente já estávamos todos voltados para aquela figura que se aproximava. Quando eu me preparei para uma nova sessão de contratempos e insanidades, em forma de perguntas toscas e descabidas, ela se apresentou:

– Bom dia, eu sou a Camila Parker, a sua gerente de conta. Tudo bem com o senhor?

Minha vontade estava um tanto confusa nesse momento. Não sei se eu queria denunciar pra ela o guarda que achou que eu era assaltante, se pedia a demissão sumária daquela atendente doida ou se o caso era de detonar uma bomba em tudo e ficar do lado de fora, só apreciando o estilhaçar dos vidros da fachada da agência. Nossa, ia ser demais aquilo. Mas enquanto eu organizava os meus pensamentos ela me interrompeu de novo:

– Quero lhe dar uma informação importante. Primeiramente, o senhor nos desculpe por tudo o que aconteceu aqui há pouco, mas esse é o novo procedimento desenvolvido para os nossos correntistas aposentados. É que, estatisticamente, eles são sempre as principais vítimas dos golpistas, dentro e fora da agência. Pensando nisso, e no bem estar dos nossos clientes, o banco tomou as providências devidas e resolveu fazer esta experiência, digamos, uma jornada educativa, um procedimento especialmente elaborado pelo CEO internacional global do banco, para que os idosos não caiam mais nesses golpes infames.

– E o senhor se saiu muito bem – murmurou a atendente sorridente, seguida pelo aceno de cabeça do guarda, já mostrando uma fisionomia bem mais amigável, sem o cassetete na mão.

Do nada, sem nenhum aviso, uma sensação estranha foi surgindo em mim. Aos poucos foi me dando um alívio e eu fui rememorando todo o ocorrido, avaliando os absurdos em sequência. Uns barulhos indecifráveis também foram aumentando, acho que da oficina mecânica que fica ao lado do meu prédio. Junto a isso, uma luz branca veio bater acima da cama e, por fim, toda essa conjunção de fatores me fez acordar.

Eu olhei devagar pra todos os cantos do quarto, depois alcancei o celular, desativei o despertador e puxei o bloquinho que fica na cabeceira, pra começar a anotar todo aquele sonho, antes que eu me esquecesse de tudo.

Mas que porra de procedimento!




segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A Camisa


Durante a partida nenhum dos jogadores percebeu a presença da ilustre torcedora no setor reservado aos convidados. Ela e o marido vinham sendo ovacionados pelas organizadas e, só após o apito final, com a vitória do time, todos em campo puderam reverenciar a presença da Rita Lee no estádio.

Corria a década de 1980, época da famosa Democracia Corintiana, movimento político pelas eleições diretas no país, que levou vários artistas a abraçar a causa que pedia simplesmente o direito de votar.

Foi então que, nessa partida, a própria Rita Lee decidiu tornar público que se aliava à causa, pedindo junto com aquela equipe de futebol que a lei fosse alterada para que os brasileiros pudessem eleger os seus representantes políticos. Agradecidos, alguns jogadores foram falar com a cantora e receberam um convite especial para que fossem ver um show dela em São Paulo.

– Mas leva uma camisa do timão pra mim! – teria pedido a Rainha do Rock, o que logo foi aceito por eles.

Passaram alguns dias e três ícones desse histórico time corintiano resolveram aceitar o convite da cantora. Naquela noite, Sócrates e Casagrande, na companhia de outro craque do time, Wladimir, foram ao show da Rita Lee. Assim que viu o trio, uma produtora reservou um local especial pra eles e disse que criaria uma surpresa para a roqueira, quando então seria anunciada a presença deles no teatro.

Quase no final do show, a mesma produtora veio combinar com eles:

– Olha, vai ser um baita presente pra ela. O locutor vai anunciar os seus nomes e vocês sobem ao palco pra fazer a surpresa, ok? Fiquem ligados que vão chamar vocês ao palco.

Animados, os três mal podiam esperar pra abraçar a cantora e festejar com o público. Foi aí que o Doutor, como era chamado o Sócrates, lembrou de algo importante:

– Casão, você trouxe a camisa pra ela?

– Que camisa?

– Pô, não lembra que ela pediu uma camisa do timão pra gente?

– Minha nossa, esqueci completamente da camisa!

Olhando pra plateia próxima ao palco, um deles avistou um sujeito, dançando e cantando a plenos pulmões, vestindo uma camisa do Corinthians.

– Ó Casão, olha ali um cara com uma camisa. É a sua. A Nove. Certinho.

– Ai, Wladimir, quebra essa pra mim. Vai lá pedir pra ele a camisa?

– Cara, a camisa é a sua. Ele não vai querer dar pra mim, nem a pau, amigo. Mas pra você ele vai até tirar com prazer. Segura essa, respira fundo e vai com fé. Pensa na Rita.

E lá foi o Casagrande, todo sem jeito, falar com o tal corintiano. De longe os outros dois só viam ele gesticulando enquanto o cara o abraçava, botava as mãos na cabeça, até que, de repente, o homem tirou a camisa e beijou a mão do craque.

Quando retornou ao seu lugar, o Sócrates ainda comentou que o sujeito era um cara bacana, pois tinha ficado sem camisa no meio do show e que, sendo assim, iria voltar pra casa daquele jeito, de noite, e estava até meio frio lá fora. O Casão olhou pra trás e falou que, ao agradecer, disse que ele podia procurá-lo no centro de treinamento, pois ele ia ganhar uma camisa novinha do coringão. Mas, enfim, naquela noite não tinha jeito.

– Hoje ele vai voltar pra casa sem camisa mesmo. Fazer o quê? – disse o atacante.

Ao final do show todo o plano se concretizou da melhor forma. Os três subiram ao palco, deram a famigerada camisa nove de presente pra Rita Lee e ainda cantaram junto com ela uma música final, entoando com a plateia o célebre estribilho.

 

Eu vi o Casagrande contar esse episódio num programa de televisão, faz algum tempo. Imediatamente achei a história demais de boa e quis contar também aqui. Mas, como consta no manual de estilo da crônica, há sempre os bons desdobramentos que se seguem a uma boa história.

Foi então que eu passei a avaliar que a tal camisa doada devia estar suada, pra não dizer o pior, já que o cara a estava usando no meio de um show de rock. E quando a Rita a recebeu das mãos do artilheiro deve ter sentido na hora algo estranho e deve ter ficado muito desconfiada, se perguntando “como o cara me dá uma camisa assim, fedida?”

Depois foi a vez de eu pensar no próprio cara que doou a camisa. Ele indo pegar o metrô de volta pra casa, tarde da noite, as pessoas olhando pra ele, só de calças, e ele todo orgulhoso, com cara de felicidade, por ter dado a sua camisa pro seu grande ídolo Casagrande. Aquele risinho no rosto dele ninguém jamais entendeu.

Aí, quando ele chega em casa, a mulher pergunta o que aconteceu e ele, ainda sorrindo, explica:

– Amor, o Casão estava no show da Rita e do nada veio pedir a minha camisa.

– Ah, tá. O cara joga no time. Ele que devia te dar uma camisa. Mas vem pedir a sua? Essa é boa. Só falta você dizer que autografou pra ele também? Ah, conta outra Carlos Henrique!

– É sério, amor. Eu sei que parece coisa de maluco. Mas foi exatamente assim que aconteceu.

Por último, ainda seguindo o citado manual, talvez o sujeito tenha ido até o Parque São Jorge, local de treino do Corinthians, cheio de esperança. Todo animado, chegou pro segurança na portaria, contou a história de ter dado a camisa pro Casagrande, no show da Rita Lee, e afirmou que queria entrar pra falar com ele e ganhar uma camisa nova do craque. O guarda, por sua vez, deve ter olhado pra ele de cima a baixo, depois soltado uma risada contida e, pausadamente, foi explicando:

– Meu amigo, eu tenho 15 anos de portaria de clube. O que eu já ouvi de história nessa vida daria um livro. Um livro dos grossos, assim. Mas a sua situação realmente é criativa. Essa é boa demais. Então o Casagrande, o Casão, o goleador do time, pediu a sua camisa, a camisa do Corinthians, que ele tem aos montes aqui, mas ele queria justamente a sua. E ele disse que daria uma nova pra você? Olha, parabéns!

– Eu sei que é difícil de acreditar. Mas eu juro que é tudo verdade.

– Como eu fico agora? O que eu posso fazer por você é pedir a um rapaz da limpeza pra ir lá e dar o recado pra alguém da comissão técnica. Só isso. Faz assim: me dá o seu nome, eu repasso pra ele, digo que você está aqui e vamos ver o que acontece.

– Mas ele nem sabe o meu nome. Putz. Agora lembrei que nem disse o meu nome pra ele.

– Pois então, aí fica difícil, amigo. Concorda comigo?

 

O pobre rapaz já tinha contado essa aventura na pelada, no fim de semana. O trato com os amigos foi que eles até poderiam acreditar na história, mas só se ele realmente conseguisse uma camisa do Casagrande, autografada pelo atacante, como sinal de agradecimento. Aí, sim, a zoeira da qual ele era vítima toda semana cessaria por completo. O problema é que, como vimos anteriormente, a contar pelo diálogo com o segurança à frente do Centro de Treinamento, isso definitivamente não vai acontecer.

Provavelmente, o apelido de “Camisa do Casão” foi a mais branda das gozações que ele deve ter sofrido, vida afora, nas suas peladas de domingo.