segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A Camisa


Durante a partida nenhum dos jogadores percebeu a presença da ilustre torcedora no setor reservado aos convidados. Ela e o marido vinham sendo ovacionados pelas organizadas e, só após o apito final, com a vitória do time, todos em campo puderam reverenciar a presença da Rita Lee no estádio.

Corria a década de 1980, época da famosa Democracia Corintiana, movimento político pelas eleições diretas no país, que levou vários artistas a abraçar a causa que pedia simplesmente o direito de votar.

Foi então que, nessa partida, a própria Rita Lee decidiu tornar público que se aliava à causa, pedindo junto com aquela equipe de futebol que a lei fosse alterada para que os brasileiros pudessem eleger os seus representantes políticos. Agradecidos, alguns jogadores foram falar com a cantora e receberam um convite especial para que fossem ver um show dela em São Paulo.

– Mas leva uma camisa do timão pra mim! – teria pedido a Rainha do Rock, o que logo foi aceito por eles.

Passaram alguns dias e três ícones desse histórico time corintiano resolveram aceitar o convite da cantora. Naquela noite, Sócrates e Casagrande, na companhia de outro craque do time, Wladimir, foram ao show da Rita Lee. Assim que viu o trio, uma produtora reservou um local especial pra eles e disse que criaria uma surpresa para a roqueira, quando então seria anunciada a presença deles no teatro.

Quase no final do show, a mesma produtora veio combinar com eles:

– Olha, vai ser um baita presente pra ela. O locutor vai anunciar os seus nomes e vocês sobem ao palco pra fazer a surpresa, ok? Fiquem ligados que vão chamar vocês ao palco.

Animados, os três mal podiam esperar pra abraçar a cantora e festejar com o público. Foi aí que o Doutor, como era chamado o Sócrates, lembrou de algo importante:

– Casão, você trouxe a camisa pra ela?

– Que camisa?

– Pô, não lembra que ela pediu uma camisa do timão pra gente?

– Minha nossa, esqueci completamente da camisa!

Olhando pra plateia próxima ao palco, um deles avistou um sujeito, dançando e cantando a plenos pulmões, vestindo uma camisa do Corinthians.

– Ó Casão, olha ali um cara com uma camisa. É a sua. A Nove. Certinho.

– Ai, Wladimir, quebra essa pra mim. Vai lá pedir pra ele a camisa?

– Cara, a camisa é a sua. Ele não vai querer dar pra mim, nem a pau, amigo. Mas pra você ele vai até tirar com prazer. Segura essa, respira fundo e vai com fé. Pensa na Rita.

E lá foi o Casagrande, todo sem jeito, falar com o tal corintiano. De longe os outros dois só viam ele gesticulando enquanto o cara o abraçava, botava as mãos na cabeça, até que, de repente, o homem tirou a camisa e beijou a mão do craque.

Quando retornou ao seu lugar, o Sócrates ainda comentou que o sujeito era um cara bacana, pois tinha ficado sem camisa no meio do show e que, sendo assim, iria voltar pra casa daquele jeito, de noite, e estava até meio frio lá fora. O Casão olhou pra trás e falou que, ao agradecer, disse que ele podia procurá-lo no centro de treinamento, pois ele ia ganhar uma camisa novinha do coringão. Mas, enfim, naquela noite não tinha jeito.

– Hoje ele vai voltar pra casa sem camisa mesmo. Fazer o quê? – disse o atacante.

Ao final do show todo o plano se concretizou da melhor forma. Os três subiram ao palco, deram a famigerada camisa nove de presente pra Rita Lee e ainda cantaram junto com ela uma música final, entoando com a plateia o célebre estribilho.

 

Eu vi o Casagrande contar esse episódio num programa de televisão, faz algum tempo. Imediatamente achei a história demais de boa e quis contar também aqui. Mas, como consta no manual de estilo da crônica, há sempre os bons desdobramentos que se seguem a uma boa história.

Foi então que eu passei a avaliar que a tal camisa doada devia estar suada, pra não dizer o pior, já que o cara a estava usando no meio de um show de rock. E quando a Rita a recebeu das mãos do artilheiro deve ter sentido na hora algo estranho e deve ter ficado muito desconfiada, se perguntando “como o cara me dá uma camisa assim, fedida?”

Depois foi a vez de eu pensar no próprio cara que doou a camisa. Ele indo pegar o metrô de volta pra casa, tarde da noite, as pessoas olhando pra ele, só de calças, e ele todo orgulhoso, com cara de felicidade, por ter dado a sua camisa pro seu grande ídolo Casagrande. Aquele risinho no rosto dele ninguém jamais entendeu.

Aí, quando ele chega em casa, a mulher pergunta o que aconteceu e ele, ainda sorrindo, explica:

– Amor, o Casão estava no show da Rita e do nada veio pedir a minha camisa.

– Ah, tá. O cara joga no time. Ele que devia te dar uma camisa. Mas vem pedir a sua? Essa é boa. Só falta você dizer que autografou pra ele também? Ah, conta outra Carlos Henrique!

– É sério, amor. Eu sei que parece coisa de maluco. Mas foi exatamente assim que aconteceu.

Por último, ainda seguindo o citado manual, talvez o sujeito tenha ido até o Parque São Jorge, local de treino do Corinthians, cheio de esperança. Todo animado, chegou pro segurança na portaria, contou a história de ter dado a camisa pro Casagrande, no show da Rita Lee, e afirmou que queria entrar pra falar com ele e ganhar uma camisa nova do craque. O guarda, por sua vez, deve ter olhado pra ele de cima a baixo, depois soltado uma risada contida e, pausadamente, foi explicando:

– Meu amigo, eu tenho 15 anos de portaria de clube. O que eu já ouvi de história nessa vida daria um livro. Um livro dos grossos, assim. Mas a sua situação realmente é criativa. Essa é boa demais. Então o Casagrande, o Casão, o goleador do time, pediu a sua camisa, a camisa do Corinthians, que ele tem aos montes aqui, mas ele queria justamente a sua. E ele disse que daria uma nova pra você? Olha, parabéns!

– Eu sei que é difícil de acreditar. Mas eu juro que é tudo verdade.

– Como eu fico agora? O que eu posso fazer por você é pedir a um rapaz da limpeza pra ir lá e dar o recado pra alguém da comissão técnica. Só isso. Faz assim: me dá o seu nome, eu repasso pra ele, digo que você está aqui e vamos ver o que acontece.

– Mas ele nem sabe o meu nome. Putz. Agora lembrei que nem disse o meu nome pra ele.

– Pois então, aí fica difícil, amigo. Concorda comigo?

 

O pobre rapaz já tinha contado essa aventura na pelada, no fim de semana. O trato com os amigos foi que eles até poderiam acreditar na história, mas só se ele realmente conseguisse uma camisa do Casagrande, autografada pelo atacante, como sinal de agradecimento. Aí, sim, a zoeira da qual ele era vítima toda semana cessaria por completo. O problema é que, como vimos anteriormente, a contar pelo diálogo com o segurança à frente do Centro de Treinamento, isso definitivamente não vai acontecer.

Provavelmente, o apelido de “Camisa do Casão” foi a mais branda das gozações que ele deve ter sofrido, vida afora, nas suas peladas de domingo.


 




Um comentário: