quarta-feira, 31 de maio de 2023

Netos


Depois de muito insistirem a filha concordou em deixar os netos na casa dos avós, enquanto ela ia participar de um seminário que aconteceria justamente num sábado.

Compromissos aos sábados são sempre complicados para os pais. Não tem escola, as crianças estão com todo o gás pelo próprio fim de semana e, na prática, fica aquela ansiedade pra chegar logo o dia e poder passar boas horas na casa dos vovôs já que, sempre que vão lá, as visitas são um tanto rápidas, quase que de passagem, entre uma saída e outra do shopping, do cinema ou de alguma festinha.

Os avós estavam, há algum tempo, pressionando a filha e o genro sobre o assunto, já que sempre que esses sábados surgiam a opção era normalmente deixar as crianças com os outros avós, um pouco mais moços, o que os indignava ainda mais por estarem impedidos de demonstrar, na prática, que eles poderiam ficar com os netos, sem problema, mesmo tendo, digamos, só um pouco mais de idade do que os avós da genealogia paterna.

E assim foi. Concordando com o projeto dos avós, o planejamento da família estava em curso bem antes, já na terça-feira anterior. E quando eu digo planejamento, quero dizer separar os jogos, os brinquedos, as roupas e acessórios, os blocos de desenho e os lápis de cor, com as canetas, claro, as máscaras, bolas, espadas, chapéus e tudo o mais que se possa imaginar de um dia inteiro só de brincadeiras na casa dos vôs.

Depois da festa pela chegada do grande dia, no momento em que descarregavam as sacolas do carro e iam empilhando tudo na sala, todos pararam par ouvir as recomendações da mãe, que foram apenas três: comer direito, obedecer sempre e juntar todos os brinquedos, tudo o que levaram, na hora de ir embora, pra não esquecer nada.

– Tem uns remédios de alergia na mochila deles e qualquer coisa, qualquer emergência, papai, pode ligar pro Álvaro. Ele vai me levar no seminário e, como é um pouco longe, vai ficar por lá mesmo até acabar. Eu vou estar ocupada o dia todo, então qualquer coisa pode ligar pra ele, ok?

Tudo certo, tudo combinado, as mãos se esfregando nas palmas umas das outras e pronto. Quando o carro desapareceu na esquina, ouviu-se um grito de uuhuuu que ecoou pela casa toda.

No segundo seguinte cada neto foi correndo buscar um brinquedo e o primeiro voltou com uma espécie de tapete. Sob os olhos atentos da vó eles o desenrolaram, esticaram na frente da tevê e de repente a imagem do tal tapete apareceu na tela. A menina explicou que era tipo um tapete eletrônico. Então, disse que ia tocar uma música e eles tinham que pisar nos círculos que iam acender, no ritmo da música, simulando uma dança.

O avô disse que já tinha visto aquilo uma vez, mas que não sabia como funcionava e por isso ia ver primeiro os netos dançarem, pra depois se aventurar. Em poucos minutos estavam todos se revezando no tal tapete, marcando os pontos, música após música, e resfolegando na medida do possível, do jeito que dava. Os netos não paravam de rir vendo o desequilíbrio da avó e a performance desajeitada do avô.

Tinha também uma bola, que eles pegaram no fundo da sacola, que fazia barulhos diversos quando quicava e, com ela, eles criaram um pique, um pega-pega, mas arremessando a bola. Todos corriam pela casa e quem estava com a bola tinha de acertar o outro, que ficava com a mesma tarefa depois de ser alvejado. Os sons que abola fazia eram realmente muito engraçados: ora era um mugido, outra um latido, uma sirene, um ronco de avião e por aí vai. E toca de correr pela casa, sem destino, fugindo da bola estridente.

É claro que, de quando em sempre – construção frasal que só os avós vão entender – a brincadeira dava uma parada pra todos tomarem um fôlego, uma água, um remedinho pra pressão, um oxigênio hospitalar 100% puro, coisa básica, e logo tudo recomeçava.

Quando se entreolhavam, fosse no meio de uma carreira pela escada ou saindo pela porta da cozinha, ambos os avós tinham a impressão de que o outro estava pedindo arrego, que os olhos arregalados eram um sinal de socorro, uma parada pra ligar pro pai e sugerir talvez um passeio de carro, um sorvete na beira-mar ou algo do gênero, contando que não precisasse correr, pular, esticar ou abaixar.

Mas, no minuto seguinte, voltava a reinar o pensamento de provar pra toda a família que eles eram mais velhos, sim, mas não estavam mortos. E brincar com os netos, no fundo, no fundo, era bom demais, uuhuuu...

A parada pro almoço foi salvadora. Não só por baixar a adrenalina, mas por proporcionar um tempo de espera reparadora. O fogão lá preparando tudo e eles desenhando, conversando, finalmente sentados e quietos, graças a Deus.

Depois do almoço um filme, uma pipoca, uma preguiça danada e a neta, de repente gritou:

– Vamos brincar de pique esconde?

– Vamoooos – respondeu o neto, pulando do sofá.

– Vamos, vô, pique esconde não precisa correr tanto. É bem tranquilo e nem cansa.

O avô olhou pra avó, sentiu que ela estava com pena dele, mas, no mesmo instante ela suspendeu os ombros, como quem diz: nos salve o Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao que ele respondeu baixinho: Amém.

Enquanto a vó fazia a contagem regressiva, os netos foram se esconder junto com o vô. Coitado do vô. Entraram no quarto e o menino foi logo dizendo:

– Ali, mana, se esconde dentro daquele armário. Vai.

E a irmã subiu pelas gavetas e ficou quietinha, sentada na pilha de toalhas.

O menino então deu uma olhada geral pelo quarto e decidiu:

– Vô, rápido, vamos nos esconder debaixo da cama. Vem comigo.

– Não, eu não consigo entrar debaixo da cama não, filho.

– Claro que consegue, vô. A cama é alta. Eu te ajudo. Vamos?

– Faz assim, você vai e eu fico ali atrás da porta.

– Mas, vô, é que eu tenho medo de ficar sozinho ali debaixo. Entra comigo, entra!

E o avô foi descendo, acolchoando o joelho com uma almofada, até conseguir deitar no chão e se arrastar pra debaixo da cama. O neto era só felicidade. Às vezes, ria, e abraçava o vô, como se espantasse todo o medo com a presença dele.

A sorte foi que a avó, finalmente, entrou no quarto e achou todo mundo bem rapidinho, cada um no seu esconderijo. Quando viu o vô debaixo da cama, ela logo previu o perigo e tratou de convocar os netos pra que todos juntos o ajudassem a sair de lá e a se levantar. Todo mundo segurando o vô, dando o braço como apoio, Uuhuuu... aquilo foi uma festa. Menos para o vovô.

De noitinha, quando os pais chegaram, cada neto queria contar qual foi a brincadeira que mais tinha gostado, como foi o dia, o almoço, o filme, enfim, tudo. A mãe ficou contente por tudo ter saído muito bem naquele dia e ainda constatou nos pais um sentimento de orgulho, pelo fato de terem dado conta do recado.

Por fim, quem ficou mesmo satisfeito por ter passado aquele grande dia com os netos foram os avós. Esses, mal cabiam em si de tanto contentamento. A prova disso é que, já bem mais tarde, depois do jantar, os gritos de guerra voltaram a ecoar pela casa, como que para celebrar aquele dia. Eles eram até bem parecidos com os gritos que vibraram mais cedo, só que um pouquinho diferente, principalmente quando vinha na voz do vô:

– Uuhuuuu... ai que dor nas costas... Nem lembro mais quando foi a última vez que eu entrei debaixo de uma cama. Ai que dor... ai as minhas costas!

– Uuhuuuu pra você também – respondeu a avó. – Agora espera aí, meu velho, que eu tô indo buscar o frasco de Arnica lá no banheiro.




sexta-feira, 19 de maio de 2023

A Camiseta


A graduação de um médico, no Brasil, leva, no mínimo, seis anos. Contando o tempo de residência e especialização pode chegar a 10, numa conta nada exagerada. Durante essa formação o sujeito convive com ciência o tempo todo, tem contato com as mais avançadas pesquisas e estudos e, mesmo depois de formado, faz-se necessário que ele se atualize periodicamente, não só na sua área de atuação, mas também nas questões que envolvem remédios, exames, tratamentos e equipamentos, tudo isso sem perder de vista os experimentos e as novidades tecnológicas aplicadas à medicina.

Se antes da pandemia de covid, eu escrevesse que no Brasil existem médicos que cultuam o negacionismo, que não prestam obediência à ciência e não são a favor das vacinas, o leitor da época teria duvidado da minha sanidade. Eu mesmo duvidei dela quando soube, recentemente, da existência desses seres, quando os vi nos jornais e na tevê proferindo barbaridades e insanidades, contrariando a sua formação, sua universidade e seus professores.

Quase todos, ali naquele contexto surreal, tinham, não a medicina, mas a política como principal objetivo. Ou seja, almejavam cargos, posições e até ministérios e, em troca disso, renegavam tudo o que até então tinham aprendido. A depender da sua posição política, se eram de direita ou esquerda, a Terra podia ser plana ou esférica, a vacina podia salvar vidas ou transformar a pessoa em jacaré.

Absurdo ainda maior foi a constatação de que havia muita gente exercendo o negacionismo, mesmo sem ter recebido nada em troca, nem cargos, tampouco vantagens, fossem elas quais fossem. Muitos engenheiros, físicos, químicos, matemáticos, biólogos e geólogos, entre outros, com anos de formação técnica, apoiavam esses médicos anticiência com a maior naturalidade e desfaçatez. É claro que se esquivavam de quaisquer conversas sobre o tema, ao menor sinal de surgimento delas. Mas no seu cantinho, na sua bolha, nas sombras, era assim que pensavam e se realimentavam.

Foi então que, no momento em que o país começava a se recompor, a se livrar dos atrasos civilizatórios em nome de um partidarismo ignorantemente evangelizado, a Natália foi ao posto de saúde. Ela apresentava alguns sintomas que remetiam à covid: uma tosse renitente e dor no corpo, junto a outros incômodos. Mas, com o ciclo de vacinas completo, ela já sabia de antemão que não teria nada de mais complicado.

Na sua tranquilidade de cidadã vacinada, a necessidade da consulta era mais pra fazer o teste e, enfim, se desse positivo, tomar as providências pra não propagar a doença em outros ambientes, principalmente no trabalho.

Quando a médica chamou o seu nome, na porta do consultório, já a recebeu com um sorriso acolhedor. Ao mesmo tempo ela notou que a doutora olhava, com certa atenção, para a sua camiseta, enquanto apontava o interior da sala. Sentadas, cada uma em seu lugar, a médica começou a perguntar dos sintomas e os incômodos, apalpando a sua garganta, puxando as pálpebras e também verificando, como de praxe, a oxigenação pulmonar e a pressão arterial.

Na hora de fazer a receita, a médica estancou com a caneta suspensa entre os dedos:

– Eu dou graças a Deus quando o paciente é alguém assim como você. A gente passou um período bem estranho aqui no Posto e tínhamos de ter cuidado com o remédio que a gente ia receitar porque a diretoria é bem complicada e muitas vezes tentava nos obrigar – a nós médicos – a prescrever os remédios que a gente sabia que não eram os indicados.

– Deve ter sido bem ruim trabalhar assim – comentou a Natália.

– Olha, sinceramente, eu nem gosto de falar nisso. Essa direita aí não enxerga um palmo na frente do nariz. Que pátria é essa que não cuida da saúde das pessoas? Das pessoas doentes? E as pessoas doentes ainda aceitam tomar remédios que não curam e só fazem mais mal a elas próprias. É em nome de quê? De quem? De Deus? Desse ex-presidente boçal?

– Verdade. Eu acho que deve ter ocorrido muitos casos assim, nos consultórios pelo país.

– Os chefes vigiando os médicos, interferindo no nosso trabalho, no nosso diagnóstico. Foi um período de trevas mesmo, sem igual.

Elas iam conversando, a médica preenchendo a receita, oferendo alguns remédios que o posto médico dispunha e, quase no final da consulta, a médica disse:

– E, olha, parabéns pela sua camiseta. As pessoas têm mesmo de divulgar esses ícones democráticos, esses líderes que nos ensinaram a combater as ditaduras, a lutar pelo nosso futuro. E para a nossa sofrida América Latina esse foi um dos homens mais importantes da história. Parabéns. Que Che Guevara nos inspire!

Meio sem entender aquelas palavras, com a sensação de não ter respondido direito à doutora na sua despedida, Natália foi saindo do postinho de saúde rememorando toda a conversa e seus desdobramentos.

Ia caminhando pela rua e, de vez em quando, parava e olhava para a própria camiseta, toda vermelha, com uma enorme silhueta do... Zico.