A graduação de
um médico, no Brasil, leva, no mínimo, seis anos. Contando o tempo de
residência e especialização pode chegar a 10, numa conta nada exagerada.
Durante essa formação o sujeito convive com ciência o tempo todo, tem contato
com as mais avançadas pesquisas e estudos e, mesmo depois de formado, faz-se
necessário que ele se atualize periodicamente, não só na sua área de atuação,
mas também nas questões que envolvem remédios, exames, tratamentos e
equipamentos, tudo isso sem perder de vista os experimentos e as novidades
tecnológicas aplicadas à medicina.
Se antes da
pandemia de covid, eu escrevesse que no Brasil existem médicos que cultuam o
negacionismo, que não prestam obediência à ciência e não são a favor das
vacinas, o leitor da época teria duvidado da minha sanidade. Eu mesmo duvidei
dela quando soube, recentemente, da existência desses seres, quando os vi nos
jornais e na tevê proferindo barbaridades e insanidades, contrariando a sua
formação, sua universidade e seus professores.
Quase todos,
ali naquele contexto surreal, tinham, não a medicina, mas a política como
principal objetivo. Ou seja, almejavam cargos, posições e até ministérios e, em
troca disso, renegavam tudo o que até então tinham aprendido. A depender da sua
posição política, se eram de direita ou esquerda, a Terra podia ser plana ou
esférica, a vacina podia salvar vidas ou transformar a pessoa em jacaré.
Absurdo ainda
maior foi a constatação de que havia muita gente exercendo o negacionismo,
mesmo sem ter recebido nada em troca, nem cargos, tampouco vantagens, fossem
elas quais fossem. Muitos engenheiros, físicos, químicos, matemáticos, biólogos
e geólogos, entre outros, com anos de formação técnica, apoiavam esses médicos
anticiência com a maior naturalidade e desfaçatez. É claro que se esquivavam de
quaisquer conversas sobre o tema, ao menor sinal de surgimento delas. Mas no
seu cantinho, na sua bolha, nas sombras, era assim que pensavam e se
realimentavam.
Foi então que,
no momento em que o país começava a se recompor, a se livrar dos atrasos
civilizatórios em nome de um partidarismo ignorantemente evangelizado, a
Natália foi ao posto de saúde. Ela apresentava alguns sintomas que remetiam à
covid: uma tosse renitente e dor no corpo, junto a outros incômodos. Mas, com o
ciclo de vacinas completo, ela já sabia de antemão que não teria nada de mais
complicado.
Na sua
tranquilidade de cidadã vacinada, a necessidade da consulta era mais pra fazer
o teste e, enfim, se desse positivo, tomar as providências pra não propagar a doença
em outros ambientes, principalmente no trabalho.
Quando a
médica chamou o seu nome, na porta do consultório, já a recebeu com um sorriso
acolhedor. Ao mesmo tempo ela notou que a doutora olhava, com certa atenção,
para a sua camiseta, enquanto apontava o interior da sala. Sentadas, cada uma
em seu lugar, a médica começou a perguntar dos sintomas e os incômodos,
apalpando a sua garganta, puxando as pálpebras e também verificando, como de
praxe, a oxigenação pulmonar e a pressão arterial.
Na hora de fazer
a receita, a médica estancou com a caneta suspensa entre os dedos:
– Eu dou
graças a Deus quando o paciente é alguém assim como você. A gente passou um
período bem estranho aqui no Posto e tínhamos de ter cuidado com o remédio que
a gente ia receitar porque a diretoria é bem complicada e muitas vezes tentava
nos obrigar – a nós médicos – a prescrever os remédios que a gente sabia que
não eram os indicados.
– Deve ter
sido bem ruim trabalhar assim – comentou a Natália.
– Olha, sinceramente,
eu nem gosto de falar nisso. Essa direita aí não enxerga um palmo na frente do
nariz. Que pátria é essa que não cuida da saúde das pessoas? Das pessoas
doentes? E as pessoas doentes ainda aceitam tomar remédios que não curam e só
fazem mais mal a elas próprias. É em nome de quê? De quem? De Deus? Desse ex-presidente
boçal?
– Verdade. Eu
acho que deve ter ocorrido muitos casos assim, nos consultórios pelo país.
– Os chefes
vigiando os médicos, interferindo no nosso trabalho, no nosso diagnóstico. Foi
um período de trevas mesmo, sem igual.
Elas iam
conversando, a médica preenchendo a receita, oferendo alguns remédios que o
posto médico dispunha e, quase no final da consulta, a médica disse:
– E, olha,
parabéns pela sua camiseta. As pessoas têm mesmo de divulgar esses ícones
democráticos, esses líderes que nos ensinaram a combater as ditaduras, a lutar
pelo nosso futuro. E para a nossa sofrida América Latina esse foi um dos homens
mais importantes da história. Parabéns. Que Che Guevara nos inspire!
Meio sem
entender aquelas palavras, com a sensação de não ter respondido direito à
doutora na sua despedida, Natália foi saindo do postinho de saúde rememorando toda a conversa e seus desdobramentos.
Ia caminhando
pela rua e, de vez em quando, parava e olhava para a própria camiseta, toda vermelha, com
uma enorme silhueta do... Zico.
estou rindo aqui!
ResponderExcluirMuito grato por este testemunho de um período sombrio de nossa história
ResponderExcluirLírio, sem comentários dessa vez!
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