sexta-feira, 19 de maio de 2023

A Camiseta


A graduação de um médico, no Brasil, leva, no mínimo, seis anos. Contando o tempo de residência e especialização pode chegar a 10, numa conta nada exagerada. Durante essa formação o sujeito convive com ciência o tempo todo, tem contato com as mais avançadas pesquisas e estudos e, mesmo depois de formado, faz-se necessário que ele se atualize periodicamente, não só na sua área de atuação, mas também nas questões que envolvem remédios, exames, tratamentos e equipamentos, tudo isso sem perder de vista os experimentos e as novidades tecnológicas aplicadas à medicina.

Se antes da pandemia de covid, eu escrevesse que no Brasil existem médicos que cultuam o negacionismo, que não prestam obediência à ciência e não são a favor das vacinas, o leitor da época teria duvidado da minha sanidade. Eu mesmo duvidei dela quando soube, recentemente, da existência desses seres, quando os vi nos jornais e na tevê proferindo barbaridades e insanidades, contrariando a sua formação, sua universidade e seus professores.

Quase todos, ali naquele contexto surreal, tinham, não a medicina, mas a política como principal objetivo. Ou seja, almejavam cargos, posições e até ministérios e, em troca disso, renegavam tudo o que até então tinham aprendido. A depender da sua posição política, se eram de direita ou esquerda, a Terra podia ser plana ou esférica, a vacina podia salvar vidas ou transformar a pessoa em jacaré.

Absurdo ainda maior foi a constatação de que havia muita gente exercendo o negacionismo, mesmo sem ter recebido nada em troca, nem cargos, tampouco vantagens, fossem elas quais fossem. Muitos engenheiros, físicos, químicos, matemáticos, biólogos e geólogos, entre outros, com anos de formação técnica, apoiavam esses médicos anticiência com a maior naturalidade e desfaçatez. É claro que se esquivavam de quaisquer conversas sobre o tema, ao menor sinal de surgimento delas. Mas no seu cantinho, na sua bolha, nas sombras, era assim que pensavam e se realimentavam.

Foi então que, no momento em que o país começava a se recompor, a se livrar dos atrasos civilizatórios em nome de um partidarismo ignorantemente evangelizado, a Natália foi ao posto de saúde. Ela apresentava alguns sintomas que remetiam à covid: uma tosse renitente e dor no corpo, junto a outros incômodos. Mas, com o ciclo de vacinas completo, ela já sabia de antemão que não teria nada de mais complicado.

Na sua tranquilidade de cidadã vacinada, a necessidade da consulta era mais pra fazer o teste e, enfim, se desse positivo, tomar as providências pra não propagar a doença em outros ambientes, principalmente no trabalho.

Quando a médica chamou o seu nome, na porta do consultório, já a recebeu com um sorriso acolhedor. Ao mesmo tempo ela notou que a doutora olhava, com certa atenção, para a sua camiseta, enquanto apontava o interior da sala. Sentadas, cada uma em seu lugar, a médica começou a perguntar dos sintomas e os incômodos, apalpando a sua garganta, puxando as pálpebras e também verificando, como de praxe, a oxigenação pulmonar e a pressão arterial.

Na hora de fazer a receita, a médica estancou com a caneta suspensa entre os dedos:

– Eu dou graças a Deus quando o paciente é alguém assim como você. A gente passou um período bem estranho aqui no Posto e tínhamos de ter cuidado com o remédio que a gente ia receitar porque a diretoria é bem complicada e muitas vezes tentava nos obrigar – a nós médicos – a prescrever os remédios que a gente sabia que não eram os indicados.

– Deve ter sido bem ruim trabalhar assim – comentou a Natália.

– Olha, sinceramente, eu nem gosto de falar nisso. Essa direita aí não enxerga um palmo na frente do nariz. Que pátria é essa que não cuida da saúde das pessoas? Das pessoas doentes? E as pessoas doentes ainda aceitam tomar remédios que não curam e só fazem mais mal a elas próprias. É em nome de quê? De quem? De Deus? Desse ex-presidente boçal?

– Verdade. Eu acho que deve ter ocorrido muitos casos assim, nos consultórios pelo país.

– Os chefes vigiando os médicos, interferindo no nosso trabalho, no nosso diagnóstico. Foi um período de trevas mesmo, sem igual.

Elas iam conversando, a médica preenchendo a receita, oferendo alguns remédios que o posto médico dispunha e, quase no final da consulta, a médica disse:

– E, olha, parabéns pela sua camiseta. As pessoas têm mesmo de divulgar esses ícones democráticos, esses líderes que nos ensinaram a combater as ditaduras, a lutar pelo nosso futuro. E para a nossa sofrida América Latina esse foi um dos homens mais importantes da história. Parabéns. Que Che Guevara nos inspire!

Meio sem entender aquelas palavras, com a sensação de não ter respondido direito à doutora na sua despedida, Natália foi saindo do postinho de saúde rememorando toda a conversa e seus desdobramentos.

Ia caminhando pela rua e, de vez em quando, parava e olhava para a própria camiseta, toda vermelha, com uma enorme silhueta do... Zico.

 

 

3 comentários:

  1. Muito grato por este testemunho de um período sombrio de nossa história

    ResponderExcluir
  2. Lírio, sem comentários dessa vez!

    ResponderExcluir