sexta-feira, 27 de outubro de 2023

O Abraço


Depois de muito insistir, eu consegui convencer minha mãe a ir assistir comigo a um dos eventos dos Jogos Panamericanos, que estavam sendo disputados no Rio de Janeiro.

O público desse tipo de evento, mesmo que o estádio seja o Maracanã, não é aquele dos jogos de futebol.  Reinava uma tranquilidade geral no entorno do complexo esportivo. Algo, digamos, bem mais saudável do que o normal, com mais crianças, mulheres, famílias inteiras inclusive.

Outro aspecto interessante daquele Pan é que não havia torcida contrária, violenta ou tóxica. Assim, mesmo quem não torcia para o Brasil vinha assistir com o espírito olímpico, imbuído do mais legítimo fair play, que é o mínimo que se pode esperar de alguém que, em algum tempo da vida, recebeu alguma educação.

No entorno do Maracanã, naquela tarde, todo mundo cumprimentava todo mundo, falava com quem não conhecia, um dava informação ao outro, indicava o local do assento, uma maravilha. Em cada esquina, nas imediações do estádio, havia grupos de dança e música se apresentando, confraternizando, fazendo referência a alguma região do Brasil ou mesmo a algum outro país.

Além da minha mãe, estávamos eu, minha irmã e meu filho. Quando a gente parou pra tirar fotos, bem em frente ao maior ponto de encontro do Maracanã, a estátua do Bellini, minha mãe avistou um rapaz com um enorme cartaz nas mãos. Era a entrada principal e por isso estava mais cheia que as demais. Nós custamos a entender o que estava escrito. Foi só mesmo depois, quando ele se virou que, finalmente, a gente conseguiu visualizar toda a frase que dizia: “Abraços Grátis pelo PAN”.

Eu lembrei que já tinha lido alguma coisa nos jornais sobre aquele movimento, que tinha sido criado na Austrália, mas nunca tinha visto pessoalmente como aquela novidade se desenvolvia. Para a minha mãe, entretanto, aquilo era pura mágica. Ela sempre fazia questão de abraçar a gente, os filhos, os netos, os amigos, os amigos dos filhos, e sempre dizia algo positivo sobre o gesto de abraçar: que era muito bom pelas trocas de energias; que tirava a negatividade que ficava presa nos corpos; que era um gesto de fraternidade entre as pessoas e que, em certas ocasiões, era capaz de mudar até o estado de espírito e o humor.

Com tudo isso aqui narrado, não preciso dizer que minha mãe foi a primeira a se manifestar ao ver aquele cartaz.

– Claro que eu vou lá abraçar o menino! Não tenham a menor dúvida.

Fomos. Não só fomos acompanhá-la, como ainda ouvimos novamente todos aqueles motivos que ela se divertia em elencar sobre os benefícios terapêuticos dos abraços. O menino, por sua vez, ficou realizado por encontrar alguém que “entendia” o que era aquela inovação e ainda confirmava a prática e tudo que ele mesmo receitava às pessoas mais incrédulas.

Por pouco minha mãe não desistiu de ver o jogo pra ficar ali com ele, a distribuir abraços a torto e a direito. Ainda mais quando ele fez um histórico da mobilização, dos eventos em outros países e pelo mundo afora. Aí ela teve mais certeza ainda de que suas intuições tinham o respaldo de muito mais gente no planeta.

Foi difícil a gente se despedir do rapaz e entrar no estádio. Com muito custo achamos os nossos assentos e pudemos presenciar o futebol feminino do Brasil ganhar a medalha de ouro panamericana, com Marta e companhia dando show em campo.

Ao final, demos uma volta pelas dependências do Maracanã, que tinha sido reformado para os Jogos, e como estava tudo já meio vazio, ainda paramos pra comer um belo de um cachorro-quente. Não me lembro quem iniciou a suspeita mas, ao voltar do banheiro, alguém perguntou:

– Eu estou doido de vez ou nós não tiramos uma única foto com o Marcelo, o garoto dos abraços?

– É mesmo, acho que não tiramos. Putz.

– Depois das fotos, ali no Bellini, nós entramos direto. Estranho. E que pena!

Foi quando minha mãe tratou logo de resolver a questão:

– Que pena nada, gente. Vamos lá fora procurar o Marcelo que eu quero tirar uma foto com ele.

Foi um tremendo aperto no coração. Quando chegamos lá fora estava tudo já bem vazio. Nem pipoqueiro, nem sorveteiro, nem o Marcelo dos abraços. Cada um foi até uma esquina pra verificar, perguntar para algumas pessoas, e nada do rapaz. A gente ficou triste, lamentando o esquecimento de tirar a foto? “Puxa vida”, disse alguém. “Ninguém se deu conta”, lamentou outro.

Nesse ínterim o Deco, meu filho, na intenção de levantar o astral de todos nós, pegou a câmera e foi olhar as fotos que a gente tinha tirado até então. Tinha fotos em frente ao Bellini, com a linda pira panamericana ao fundo, com os painéis dos mascotes, além de outras tantas imagens que a gente fez dentro do estádio, durante o jogo e também na hora da premiação. Ele mostrava as fotos na tela da câmera e a gente ia olhando, meio sem animação.

Depois de um tempo ali, passando as fotos pra frente e pra trás, de repente ele levantou rápido os olhos e veio na minha direção. Com a tela da câmera virada pra mim ele falou:

– Pai, olha essa foto aqui que eu achei.

Eu olhei, pisquei algumas vezes, esfreguei os olhos e mesmo assim não acreditei. Era a foto da minha mãe com o rapaz dos abraços, o Marcelo. Os dois em pose, segurando o cartaz de abraços grátis.

– Incrível!

– Ué, de onde essa foto saiu?

Mostramos pra minha mãe e ela disse um “como assim?”, meio sem jeito. Quando ouvimos isso todos nós começamos a rir junto com ela, sem acreditar na imagem que a câmera mostrava.

O fato é que nenhum de nós lembrava daquela foto ou sequer sabe dizer quem a tirou.

É que a felicidade pode estar nas grandes coisas da vida. Pode.

Mas também pode estar na simplicidade de um abraço.

No abraço de um desconhecido.

Em uma foto achada ao acaso, sem explicação.

E pode estar no sorriso da nossa mãe!

 









domingo, 15 de outubro de 2023

O Regresso


Retomando, ou melhor, finalizando a crônica anterior, eu até poderia contar agora como foi a participação da delegação da Bahia no tal Congresso. Por exemplo, que o pessoal dormiu por três dias em aposentos improvisados, debaixo das arquibancadas do Mineirinho, um ginásio de esportes, ou que os banheiros naquele local não tinham portas e, mesmo assim, a direção do Congresso deu conta de organizar tudo certinho, de um modo que as mulheres os usassem primeiro, tanto para a hora do banho como na parte da manhã, e assim tudo foi se arranjando da melhor maneira possível. Uma pitada de boa vontade veio ao nosso encontro, literalmente.

Porém, assim como na ida, as ocorrências mais interessantes aconteceram tendo como cenário o próprio caminho, o trajeto, e foi no retorno pra Salvador que o bicho pegou, literalmente. A ver. Ou ler.

Os atrasos de embarque, normalmente, são mais longos quando envolvem muitas pessoas. Assim, até que todos estivessem dentro do ônibus, acomodados, com todos os seus pertences devidamente acondicionados, levou um bom tempo. O motorista apressava as despedidas com as delegações dos outros estados, alertando sobre a precariedade da estrada e outros contratempos que certamente iriam surgir, o que dizia muito sobre a experiência dele.

Fato é que, no início do regresso, tudo estava tranquilo e calmo. Um cansaço que muitos juravam que jamais ia chegar, bateu de vez. Com isso, o que se via na volta eram poucas pessoas dispostas a conversar, mesmo em pequenos grupos que fosse, criando um burburinho leve, que embalava o corpo, e o vento no rosto, por sua vez, vinha prazeroso, com a janela aberta para o sol e aquela imensidão de plantação de milho. Talvez milho. Vai saber.

Tudo ia muito bem, obrigado. Mas o silêncio e a paz daquela viagem de volta foram quebrados pelo grito estridente de uma senhora, sentada lá atrás.

– Motorista pare o ônibus! Para, por favor. “Meu óculos” caiu pela janela. Ai, meu Deus!

Na mesma hora todo mundo levantou do seu lugar e foi em direção à tal mulher, perguntando a mesmíssima coisa e a coitada sempre dando a mesma resposta. Ninguém entendia nada direito e a pobre só gritava pra parar o ônibus de uma vez, joça!

– Para logo essa caceta – gritou alguém quando se deu um pequeno silêncio.

O motorista até então tido como o vilão da coisa toda, foi logo esclarecendo:

– Ô essa menina, eu já entendi que era pra parar. Mas eu não podia fazer isso em qualquer lugar, no meio da estrada. Primeiro era preciso achar um acostamento, algo seguro, num sabe? Se eu paro ali atrás é perigoso e ainda levo uma bela multa. Agora pronto, parei.

– Fala aí dona coisa, onde “o óculos” caiu? – começou um dos passageiros.

– Ah, foi logo ali, depois daquela curva, acho que deu um vento, sei lá, e “o óculos” lascou da minha testa e saiu pela janela, voando que nem passarinho.

Ficou um certo estranhamento no ar. Ninguém sabia bem o que fazer. Até que um rapaz tentou uma solução:

– Como que a gente faz então, pessoal? Alguém desce comigo pra procurar?

Convidar baiano pra alguma coisa é o troço mais fácil do mundo. Pois desceram bem umas 15 pessoas. Uns pra andar na estrada, uns pra fotografar, e outros só pra fumar mesmo ou esticar as pernas, enquanto esperava. E o que tinha de sobra no congresso, aqui nessa parada faltou: organização. Isso porque tinha doido que ia andando pra frente do ônibus, olhando pro chão, procurando o tal óculos que tinha caído lá atrás, perto da curva. Não fazia sentido aquilo e, na tentativa de explicar o local onde procurar, um sujeito acabou chamando o outro de burro, quase degringolando tudo de vez.

O consenso então foi que esperássemos pela volta dos três, ou quatro, talvez cinco companheiros que iniciaram as buscas e já estavam lá longe, quase chegando na curva. Provavelmente eles iriam achar rápido os óculos e pronto, é viagem que segue.

– Mas eles já passaram daquela curva. E agora sumiram lá atrás, no capinzal da estrada – disse um sujeito, tapando o sol com as mãos à frente dos olhos.

– Ok. Mas vamos esperar por eles mesmo assim.

O tempo passou e nada dos procuradores de óculos. Até que alguém disse que aquilo já estava demorando demais e então anunciou que ia lá na famosa curva, chamar todos de volta. E que se dane “o óculos” da dona coisinha.

– Tá, eu vou com você e a gente ajuda a procurar também – disse um rapaz magrinho.

– Ô jornalista, quer vir com a gente não?

Eu disse vou, sem pensar. E desci as escadas atrás dos dois voluntários.

No caminho a gente foi conversando sobre o perigo de andar nos acostamentos, pois mesmo naquela estrada vazia, qualquer carro que passar pode esbarrar na gente e ali seria morte certa, dada a velocidade dos motoristas, esses loucos. A gente admitiu que sentiu medo e até ria um pro outro, nos dando conta da situação em que estávamos, no meio do nada procurando três, ou quatro, ou talvez cinco companheiros, estes por sua vez à procura de uns óculos do diabo, daquela dona coisa do capeta, uma doida que devia era ficar cega pra aprender a não jogar a porra da cangalha pela porra da janela!

E quanto mais a gente ouvia as nossas próprias frases maldosas, mais a gente ria.

A gente então ouviu um som alto, de um carro que vinha atrás da gente e nos viramos pra olhar. Era um Fusca branco, todo arregaçado, sem farol e todo molengo das rodas. O som alto era sinal de que nem cano de descarga o bicho tinha mais. Chegando perto da gente o carro diminuiu a velocidade e o motorista perguntou com um sonoro sotaque caipira mineiro:

– Boa tarde. O que ocês tão fazendo aí? Cadê o carro enguiçado de ocês?

– A gente está procurando uns amigos que estão andando aí na estrada, mais à frente!

– E porque os amigos estão andando na estrada, sô?

– Eles estão procurando os óculos da dona coisa e a gente veio chamar eles de volta.

– Mas é muita procura nesse trem, não? Ocês entra aqui que eu levo ocês até encontrar eles.

O problema é que a gente, ao entrar no Fusca, percebeu que além do escapamento, não tinha também o banco do carona, ao lado do motorista. No lugar do assento tinha umas latas, garrafas plásticas, panos enrolados, ferramentas agrícolas e duas botas completamente cheias de lama. Claro que não era o caso de a gente reclamar daquela ajuda. Então o jeito foi entrar de qualquer modo e dois acabaram sentando no banco de trás e outro, no caso, eu, fiquei acocorado ao lado da porta, segurando na maçaneta.

Deu uns dois minutos de carro e logo vimos de longe os amigos na beira da estrada. Aí falamos pro motorista, o mineirinho:

– Olha eles lá na frente. São eles ali perto daquela cerca.

– São eles ali? Então tá bom. Vou dar umas buzinadas pra chamar eles.

Estranhamente, para nossa total surpresa, quando o Fusca foi diminuindo a velocidade, encostando fora da estrada e buzinando pra chamar os rapazes, a gente percebeu que eles saíram a correr como loucos pra dentro da plantação. Eram cinco malucos em disparada pra dentro do mato e a gente gritando pra eles pararem, numa confusão dos diabos que durou um bom tempo.

– Uai... Eles não são amigos? E estão correndo de ocês, porquê?

Por muito custo a gente assobiou, fez sinal, gritamos que estávamos no mesmo ônibus, o que ia pra Salvador, e eles foram voltando aos poucos. Esbaforidos de tanto correr e assustados pela aproximação do Fusca, mal conseguiam falar:

– Pô véio, a gente achou que vocês iam atirar na gente. Achamos que eram bandidos de estrada, pô.

– Mas como bandidos? Vocês são malucos.

– Ah, um carro vem devagar, buzinando, chamando a gente, e dentro vimos uns caras agachados. Na hora pensamos: vem bala aí, vamos correr pro mato rapaziada! – disse o coitado sem fôlego e a gente rindo à vontade dele.

Na volta pro ônibus ainda fizemos muitas piadas, cada um tentando dizer como ia contar o episódio do matagal. E a cada versão mais exagerada que a outra, mais a gente ria. Um deles ainda falou que o mineirinho era o que tinha mais cara de bandido, com aquele cavanhaque safado. E vinham mais risadas.

Quando finalmente chegamos no ônibus, a decisão já estava tomada: a gente ia embora de qualquer jeito, direto, e nada de perder mais tempo. Quem quiser ficar com a janela aberta que tome cuidado com os óculos ou lá o que for, mas a gente não vai parar mais pra nada. Agora é pé na estrada!

Ainda lembro que, durante o retorno, quando se ouvia alguma gargalhada num grupinho, eu olhava pra trás só pra conferir, mas já sabia que era alguém recontando a saga da corrida do mato adentro, ou a epopeia do Fusca assassino, como também ficou conhecido o ocorrido.

Depois da parada pro jantar, uma das meninas, coordenadora do evento e diretora do Sindicato, veio chamar o pessoal do grupo da organização.

– Cara, vocês não vão acreditar no que eu vou contar. Eu fui conversar com a dona coisa, a que perdeu os óculos. Bem, eu fui mais pra me solidarizar com ela pela perda, pra consolar um pouco. Dizer que os óculos fazem falta, ainda mais com certa idade, pra ler, trabalhar etc. Aí, com todo o cuidado, perguntei qual era o grau dela, que a lente devia ser muito cara, e se ela afinal tinha condições de mandar fazer um novo, né?

– Ahã, claro, a gente pode até dar uma ajuda. Mas, e aí, qual é o grau?

– Simplesmente ela disse que “o óculos” não tinha grau nenhum. Que era “um óculos” de sol, sem grau, que ela comprou no camelô, em Feira de Santana.

– Vagabunda!

– Caceta, e a gente foi que nem besta procurar a porra dos óculos... de sol... Não acredito!

– É uma “fila de uma égua”!

– Que dona coisinha mais escrota!

– Porque ela não disse antes, painho?

– Pô, que cachorrada da porra!

A pausa de indignação foi se estendendo até que a coordenadora retomou a palavra, em tom conciliador. Quase sussurrando ela recomeçou:

– Então, prestem atenção aqui. Eu tive uma ideia. Nós vamos fazer o seguinte: vamos chamar todo mundo, em segredo. Aí, vamos todos subir no ônibus, correndo, vamos fechar a porta rápido e que se dane tudo. Vamos largar essa véia cega do caraio aí na estrada pra ela aprender a não jogar nunca mais “o óculos” pra fora.

Depois de um tempo olhando pra gente e segurando a fisionomia séria, ela deu um grito e soltou uma sonora risada:

– Hahaha... peguei vocês. Bora pra casa, moçada!

Claro, depois que a gente viu que ela estava brincando, tirando sarro da cara de todo mundo, acompanhamos com gosto a gargalhada dela e partimos todos pro ônibus. Ia um empurrando o outro e repetindo a pegadinha da diretora.

E foi assim até a chegada em Salvador!