Retomando,
ou melhor, finalizando a crônica anterior, eu até poderia contar agora como foi
a participação da delegação da Bahia no tal Congresso. Por exemplo, que o
pessoal dormiu por três dias em aposentos improvisados, debaixo das
arquibancadas do Mineirinho, um ginásio de esportes, ou que os banheiros
naquele local não tinham portas e, mesmo assim, a direção do Congresso deu
conta de organizar tudo certinho, de um modo que as mulheres os usassem
primeiro, tanto para a hora do banho como na parte da manhã, e assim tudo foi
se arranjando da melhor maneira possível. Uma pitada de boa vontade veio ao
nosso encontro, literalmente.
Porém,
assim como na ida, as ocorrências mais interessantes aconteceram tendo como
cenário o próprio caminho, o trajeto, e foi no retorno pra Salvador que o bicho
pegou, literalmente. A ver. Ou ler.
Os atrasos
de embarque, normalmente, são mais longos quando envolvem muitas pessoas.
Assim, até que todos estivessem dentro do ônibus, acomodados, com todos os seus
pertences devidamente acondicionados, levou um bom tempo. O motorista apressava
as despedidas com as delegações dos outros estados, alertando sobre a
precariedade da estrada e outros contratempos que certamente iriam surgir, o
que dizia muito sobre a experiência dele.
Fato é que,
no início do regresso, tudo estava tranquilo e calmo. Um cansaço que muitos
juravam que jamais ia chegar, bateu de vez. Com isso, o que se via na volta
eram poucas pessoas dispostas a conversar, mesmo em pequenos grupos que fosse,
criando um burburinho leve, que embalava o corpo, e o vento no rosto, por sua
vez, vinha prazeroso, com a janela aberta para o sol e aquela imensidão de
plantação de milho. Talvez milho. Vai saber.
Tudo ia
muito bem, obrigado. Mas o silêncio e a paz daquela viagem de volta foram
quebrados pelo grito estridente de uma senhora, sentada lá atrás.
–
Motorista pare o ônibus! Para, por favor. “Meu óculos” caiu pela janela. Ai,
meu Deus!
Na mesma
hora todo mundo levantou do seu lugar e foi em direção à tal mulher,
perguntando a mesmíssima coisa e a coitada sempre dando a mesma resposta.
Ninguém entendia nada direito e a pobre só gritava pra parar o ônibus de uma
vez, joça!
– Para
logo essa caceta – gritou alguém quando se deu um pequeno silêncio.
O
motorista até então tido como o vilão da coisa toda, foi logo esclarecendo:
– Ô essa
menina, eu já entendi que era pra parar. Mas eu não podia fazer isso em
qualquer lugar, no meio da estrada. Primeiro era preciso achar um acostamento, algo
seguro, num sabe? Se eu paro ali atrás é perigoso e ainda levo uma bela multa.
Agora pronto, parei.
– Fala aí
dona coisa, onde “o óculos” caiu? – começou um dos passageiros.
– Ah, foi logo
ali, depois daquela curva, acho que deu um vento, sei lá, e “o óculos” lascou
da minha testa e saiu pela janela, voando que nem passarinho.
Ficou um
certo estranhamento no ar. Ninguém sabia bem o que fazer. Até que um rapaz
tentou uma solução:
– Como que
a gente faz então, pessoal? Alguém desce comigo pra procurar?
Convidar baiano
pra alguma coisa é o troço mais fácil do mundo. Pois desceram bem umas 15
pessoas. Uns pra andar na estrada, uns pra fotografar, e outros só pra fumar
mesmo ou esticar as pernas, enquanto esperava. E o que tinha de sobra no
congresso, aqui nessa parada faltou: organização. Isso porque tinha
doido que ia andando pra frente do ônibus, olhando pro chão, procurando o tal
óculos que tinha caído lá atrás, perto da curva. Não fazia sentido aquilo e, na
tentativa de explicar o local onde procurar, um sujeito acabou chamando o outro
de burro, quase degringolando tudo de vez.
O consenso
então foi que esperássemos pela volta dos três, ou quatro, talvez cinco
companheiros que iniciaram as buscas e já estavam lá longe, quase chegando na
curva. Provavelmente eles iriam achar rápido os óculos e pronto, é viagem que
segue.
– Mas eles
já passaram daquela curva. E agora sumiram lá atrás, no capinzal da estrada –
disse um sujeito, tapando o sol com as mãos à frente dos olhos.
– Ok. Mas
vamos esperar por eles mesmo assim.
O tempo
passou e nada dos procuradores de óculos. Até que alguém disse que aquilo já
estava demorando demais e então anunciou que ia lá na famosa curva, chamar
todos de volta. E que se dane “o óculos” da dona coisinha.
– Tá, eu
vou com você e a gente ajuda a procurar também – disse um rapaz magrinho.
– Ô
jornalista, quer vir com a gente não?
Eu disse
vou, sem pensar. E desci as escadas atrás dos dois voluntários.
No caminho
a gente foi conversando sobre o perigo de andar nos acostamentos, pois mesmo naquela estrada vazia, qualquer
carro que passar pode esbarrar na gente e ali seria morte certa, dada a
velocidade dos motoristas, esses loucos. A gente admitiu que sentiu medo e até ria
um pro outro, nos dando conta da situação em que estávamos, no meio do nada
procurando três, ou quatro, ou talvez cinco companheiros, estes por sua vez à
procura de uns óculos do diabo, daquela dona coisa do capeta, uma doida que
devia era ficar cega pra aprender a não jogar a porra da cangalha pela porra da
janela!
E quanto
mais a gente ouvia as nossas próprias frases maldosas, mais a gente ria.
A gente
então ouviu um som alto, de um carro que vinha atrás da gente e nos viramos pra
olhar. Era um Fusca branco, todo arregaçado, sem farol e todo molengo das
rodas. O som alto era sinal de que nem cano de descarga o bicho tinha mais.
Chegando perto da gente o carro diminuiu a velocidade e o motorista perguntou
com um sonoro sotaque caipira mineiro:
– Boa
tarde. O que ocês tão fazendo aí? Cadê o carro enguiçado de ocês?
– A gente
está procurando uns amigos que estão andando aí na estrada, mais à frente!
– E porque
os amigos estão andando na estrada, sô?
– Eles
estão procurando os óculos da dona coisa e a gente veio chamar eles de volta.
– Mas é
muita procura nesse trem, não? Ocês entra aqui que eu levo ocês até encontrar
eles.
O problema
é que a gente, ao entrar no Fusca, percebeu que além do escapamento, não tinha também
o banco do carona, ao lado do motorista. No lugar do assento tinha umas latas, garrafas plásticas,
panos enrolados, ferramentas agrícolas e duas botas completamente cheias de
lama. Claro que não era o caso de a gente reclamar daquela ajuda. Então o
jeito foi entrar de qualquer modo e dois acabaram sentando no banco de trás e outro,
no caso, eu, fiquei acocorado ao lado da porta, segurando na maçaneta.
Deu uns
dois minutos de carro e logo vimos de longe os amigos na beira da estrada. Aí
falamos pro motorista, o mineirinho:
– Olha
eles lá na frente. São eles ali perto daquela cerca.
– São eles
ali? Então tá bom. Vou dar umas buzinadas pra chamar eles.
Estranhamente,
para nossa total surpresa, quando o Fusca foi diminuindo a velocidade,
encostando fora da estrada e buzinando pra chamar os rapazes, a gente percebeu
que eles saíram a correr como loucos pra dentro da plantação. Eram
cinco malucos em disparada pra dentro do mato e a gente gritando pra eles
pararem, numa confusão dos diabos que durou um bom tempo.
– Uai...
Eles não são amigos? E estão correndo de ocês, porquê?
Por muito
custo a gente assobiou, fez sinal, gritamos que estávamos no mesmo ônibus, o
que ia pra Salvador, e eles foram voltando aos poucos. Esbaforidos de tanto
correr e assustados pela aproximação do Fusca, mal conseguiam falar:
– Pô véio,
a gente achou que vocês iam atirar na gente. Achamos que eram bandidos de
estrada, pô.
– Mas como
bandidos? Vocês são malucos.
– Ah, um
carro vem devagar, buzinando, chamando a gente, e dentro vimos uns caras
agachados. Na hora pensamos: vem bala aí, vamos correr pro mato rapaziada! –
disse o coitado sem fôlego e a gente rindo à vontade dele.
Na volta
pro ônibus ainda fizemos muitas piadas, cada um tentando dizer como ia contar o
episódio do matagal. E a cada versão mais exagerada que a outra, mais a gente
ria. Um deles ainda falou que o mineirinho era o que tinha mais cara de
bandido, com aquele cavanhaque safado. E vinham mais risadas.
Quando
finalmente chegamos no ônibus, a decisão já estava tomada: a gente ia embora de
qualquer jeito, direto, e nada de perder mais tempo. Quem quiser ficar com a
janela aberta que tome cuidado com os óculos ou lá o que for, mas a gente não
vai parar mais pra nada. Agora é pé na estrada!
Ainda
lembro que, durante o retorno, quando se ouvia alguma gargalhada num grupinho, eu
olhava pra trás só pra conferir, mas já sabia que era alguém recontando a saga
da corrida do mato adentro, ou a epopeia do Fusca assassino, como também ficou
conhecido o ocorrido.
Depois da
parada pro jantar, uma das meninas, coordenadora do evento e diretora do
Sindicato, veio chamar o pessoal do grupo da organização.
– Cara,
vocês não vão acreditar no que eu vou contar. Eu fui conversar com a dona
coisa, a que perdeu os óculos. Bem, eu fui mais pra me solidarizar com ela pela
perda, pra consolar um pouco. Dizer que os óculos fazem falta, ainda mais com certa
idade, pra ler, trabalhar etc. Aí, com todo o cuidado, perguntei qual era o
grau dela, que a lente devia ser muito cara, e se ela afinal tinha condições de mandar
fazer um novo, né?
– Ahã, claro,
a gente pode até dar uma ajuda. Mas, e aí, qual é o grau?
–
Simplesmente ela disse que “o óculos” não tinha grau nenhum. Que era “um óculos”
de sol, sem grau, que ela comprou no camelô, em Feira de Santana.
–
Vagabunda!
– Caceta,
e a gente foi que nem besta procurar a porra dos óculos... de sol... Não
acredito!
– É uma “fila
de uma égua”!
– Que dona
coisinha mais escrota!
– Porque
ela não disse antes, painho?
– Pô, que
cachorrada da porra!
A pausa de
indignação foi se estendendo até que a coordenadora retomou a palavra, em tom
conciliador. Quase sussurrando ela recomeçou:
– Então,
prestem atenção aqui. Eu tive uma ideia. Nós vamos fazer o seguinte: vamos
chamar todo mundo, em segredo. Aí, vamos todos subir no ônibus, correndo, vamos
fechar a porta rápido e que se dane tudo. Vamos largar essa véia cega do caraio
aí na estrada pra ela aprender a não jogar nunca mais “o óculos” pra fora.
Depois de
um tempo olhando pra gente e segurando a fisionomia séria, ela deu um grito e soltou
uma sonora risada:
–
Hahaha... peguei vocês. Bora pra casa, moçada!
Claro,
depois que a gente viu que ela estava brincando, tirando sarro da cara de todo
mundo, acompanhamos com gosto a gargalhada dela e partimos todos pro ônibus. Ia
um empurrando o outro e repetindo a pegadinha da diretora.
E foi
assim até a chegada em Salvador!
Dona Jurema feliz
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