Aquele bar era
famoso pela singularidade da sua clientela. Era o porto seguro, o ponto de
encontro dos jornalistas da cidade do Rio de Janeiro. Localizado na zona boêmia
do Centro, a famosa Lapa, o local exibia com orgulho, na tabuleta da entrada, o
seu horário de funcionamento. Estava lá escrito: Abertura - 18 horas. Fechamento:
Até o último cliente.
As grandes
redações de jornais, as principais, ficavam ali pelo Centro e era comum que as
equipes, após o fechamento da edição, antes de ir pra casa nas altas
madrugadas, fossem pro famoso bar, em busca de uma boa bebida ou, quem sabe,
uma boa conversa, regada a uma boa sopa ou, com sorte, a um bacalhau
tradicional, especialmente quando era início de mês.
Naquela época,
sem computador, era de fato uma equipe que se incumbia do fechamento do jornal.
Além do editor chefe e dos editores de área, como política, cidade, cultura,
internacional, esportes e polícia, havia os diagramadores e ainda o cara do arquivo de
imagens. Este último era o personagem que quase sempre era chamado pra fechar
algum buraco, ou seja, um espaço que não havia sido preenchido por notícias.
As noites de
quarta-feira eram as mais difíceis de dar por fechada a edição. Isso porque a
Editoria de Esportes tinha que esperar acabar todos os jogos da rodada pra
poder trazer os placares e as primeiras análises. Essa turma era bem unida. Saía
junta da redação e o papo lá no bar era só futebol até, digamos, o último
cliente.
Famoso por sua
frequência, como dito na abertura, aquele era um bar onde todos se conheciam,
ou melhor, onde todos já tinham trabalhado juntos, de alguma maneira, em alguma
ocasião. Tanto os jornalistas que iam e vinham das redações do próprio Rio de
Janeiro, como os que iam se aventurar em São Paulo ou Brasília, tão logo
pudessem, voltavam ali assiduamente para rever os amigos, os ex-chefes, os
estagiários e por aí vai.
A depender da
hora, o local também era oportuno para discussões as mais variadas possíveis.
Uma das mais famosas girava em torno da origem do costume pré-renascentista de
se brindar batendo os copos ou, para usar o termo corrente, golpear entre si as
grandes canecas. Aquele foi um debate interessante de se ver, ainda mais porque
não havia internet, como já dito, nem celular e tampouco as consultas ao oráculo,
o Google.
Foi então que
no meio da sopa de tomate com manjericão, surgiu o Fagundes. Já foi chegando e pegando
uma cadeira pra sentar junto dos seus. Depois, olhando os outros comerem, perguntou
qual era a boa da noite, se referindo à refeição que coloria os demais pratos.
Quando alguém respondeu tomate, entre uma e outra colherada, ele então chamou o
Osvaldo pra pedir a dele.
– Traz uma
dessa pra mim também, a jato, por favor, meu caro Wadão.
Nesse instante
todos na mesa levantaram os olhos e se deram conta de que o coitado do Fagundes
estava todo molhado, encharcado mesmo até os sapatos. Num segundo ele já tinha tirado
a jaqueta e apoiado a alça da bolsa nas costas da cadeira.
– Dia de chuva
até vai. Mas chover na hora exata em que você sai do prédio do jornal, aí já é
demais.
– Relaxa
rapaz. Pelo menos refresca e faz bem pras plantas, as florestas em geral.
– Falou o “do
contra”. Para com isso, Vavá. Chuva é boa para as plantas?
– Claro que é.
A gente tem sempre que buscar o outro lado das coisas. O que pode ser ruim pra
você, pode ser bom pra outro.
– Ah, tá... Se
a minha sopa vier fria, vai ser bom pra quem, ô Vavá?
– Assim, de
pronto eu não sei, mas em alguma situação pode ser. Nada é 100% unanimidade.
Nunca.
A sorte de
todos na mesa foi que a sopa do Fagundes chegou logo. E estava até quentinha, o
que valeu um alto e claro elogio ao Wadão, um português de bigode largo e bem
preto. Diziam que, pra ficar daquele jeito, o portuga passava uma mistura secreta,
que tinha até graxa de sapato. Jamais se comprovou tal suspeição e como era um
sujeito boa praça com todo mundo, ninguém queria aborrecer o gajo com perguntas sobre o seu bigode. Na certa ninguém queria arriscar ter de tomar uma
sopa fria, no meio da madrugada, ainda mais com chuva!
Depois do
jantar, já no degustar do cafezinho, que também era digno de nota, o homem que
veio da chuva resolveu verificar na sua bolsa o que havia sido salvo da
molhadela. Primeiro tirou uma caderneta e um livro. Abriu os dois, virou, assoprou
e fechou de novo. Depois tirou um maço de cigarros. Esse foi todo pro lixo no
ato. Por fim, sacou um estojo onde havia um conjunto de canetas, de três
cores, que ele usava pra fazer revisão dos textos da sua editoria.
Como ninguém
puxou conversa alguma, diante daquela ação toda de tira-e-põe as coisas
molhadas na bolsa, o silêncio deu margem pra que o provocador Fagundes surgisse
novamente das cinzas, ou das águas.
– Quer dizer
que tomar chuva depois do trabalho é bom, não é senhor Valfredo?
– Valfredo
porra nenhuma. Vavá, cacete. Não vem me irritar não...
– Calma, só
estou tentando entender. Achei que era fome. Mas mesmo agora, depois de matar
essa sopa deliciosa, ainda não faz sentido, rapaz.
– Eu não disse
que pegar chuva é bom. Só disse que para as plantas pode ser. Aliás...
– Vem cá, ô
Vavá, fora as plantinhas, as bromélias e as borboletinhas, me diz aí quem mais
gosta de dias de chuva?
– Você acha mesmo
que ninguém no mundo gosta quando está chovendo?
– O cara então
acorda, abre a janela e olha lá fora a maior chuva caindo e ele diz: que
beleza, que sorte, que dia lindo...
– Não é isso
que eu estou dizendo. Mas certamente há de ter gente que goste de dias
chuvosos, ué?
Metade da mesa
estava rindo, perscrutando onde aquela conversa ia dar. A outra parte, mais
ativa, estava de plateia, aplaudindo, grunhindo, dando impulso para os novos
argumentos que iam surgindo. A cada novo embate um dos dois se sagrava campeão
para, logo a seguir, ver o outro com a faixa e o troféu nas mãos.
Na mesa ao
lado, ouvindo tudo, estava o Ataíde, um conhecido jornalista já aposentado.
Todas as quartas-feiras ele ficava esperando o sobrinho, filho único do
falecido irmão, que vinha da faculdade e passava ali pra jantar com o tio. No
meio daquela madrugada, excepcionalmente, o rapaz vinha de uma festa e ia
dormir na casa do Ataíde.
Ao perceber
que o senhor olhava com curiosidade para a mesa ao lado, o Fagundes o convidou
para aderir à sua tese:
– Ouviu essa
Ataíde? O Vavá aqui tá dizendo que tem gente que adora dias de chuva? Acho que
o Wadão pôs alguma coisa na sopa dele, e não foi tomate! – disse o alegre
Fagundes, ante os aplausos dos colegas.
Demonstrando
mais uma vez aquela sua calma, típica dos homens experientes, que todos ali já conheciam
de outros embates, o jornalista respondeu:
– Para mim
tudo é uma questão de ponto de vista. Então, escute aqui meu caro, se eu te provar que
existe alguém nesse mundo, que gosta de dias de chuva e até prefere isso aos
dias normais de sol, que a maioria gosta, você se dá por convencido de que tudo é uma
questão de ponto de vista?
– Meu querido
Ataíde, dessa vez eu vou até o fim e vou continuar discordando de você. Me
desculpe, mas eu te desafio a me mostrar alguém que prefere um dia de chuva. Isso
é loucura. Não tem. Não tem mesmo! Tá feito o desafio.
– Então, pra
ficar mais emocionante, vai valer o quê?
– O que você
quiser. Pode ser um vinho, um champanhe. Pode escolher qualquer uma dessas aqui
– falou, apontando para as prateleiras cheias de garrafas ao redor do
restaurante.
– Certo. Um
Vinho do Porto então, que é doce e combina bem com os lindos dias de chuva em Lisboa.
– Ok. Um Vinho
do Porto pra você e pra mim um jantar de bacalhau. À Gomes de Sá, pra ser
exato.
A plateia se
pôs em polvorosa. Alguém disse que deviam cobrar ingresso para aquela noite.
Que o desafio estava lançado e aquilo ia ser melhor que a melhor das peças de
teatro em cartaz na cidade.
Neste momento,
adentra o recinto “O Sobrinho”, figura que tanto o tio Ataíde como este modesto
narrador esperavam ansiosos, e que faz por merecer, portanto, não só as aspas
como as letras maiúsculas.
Antes de se
sentar o rapaz beijou o rosto do tio, cumprimentou a todos na mesa ao lado e
apertou a mão do garçom, dizendo o nome dele – Seu Oswaldo, boa noite – com
toda a deferência.
Puxando a
cadeira pra ficar de lado para a mesa vizinha, o Fagundes disse esfregando as
mãos:
– E então, sou
todo ouvidos, senhor Ataíde.
O tio então
passou a explicar o desafio ao rapaz, sem dizer o cerne da questão, apenas
informando que estava em curso uma competição e que o desafiante deveria ser
convencido de um certo ponto em divergência. O sobrinho franziu a testa e deu
sinal de que não estava entendendo direito, mas que, até então, aquilo era o
suficiente. O tio então retomou:
– Eu vou te
fazer uma pergunta simples. Muito simples. E depois vou te pedir um
complemento, também simples. Ok?
– Ok. Ai, meu
Deus. Não sei onde eu fui me meter.
– Vamos lá. A
pergunta é: o que você gosta mais, ou melhor, o que você prefere, um dia de
chuva ou um dia de sol?
O rapaz olhou
para os lados, tentou perceber a estranheza do semblante de cada um e disparou:
– Eu prefiro
os dias de chuva. Muito mais.
– Não é
possível! – disse o Vavá, arrastando a cadeira.
– Ah, puta-que-pariu!
– socava a mesa o Fagundes.
– Espera.
Espera gente. Agora a segunda parte, o complemento da pergunta: e porque você
prefere os dias de chuva? Pode explicar com os melhores detalhes. Tens todo o
tempo do mundo, por favor.
– Eu sei que
parece estranho gostar de chuva, de preferir os dias de chuva aos de sol. Mas
meu tio sabe bem a razão disso. Eu trabalho num lava-carros que fica bem perto
de casa. Faço bico lá de dia e, de noite, vou pra faculdade. Então, a gente
sabe que as pessoas não gostam de lavar o carro quando está chovendo, né?
Lógico, porque senão vai sujar tudo de novo. Aí, quando chove, eu fico dentro
do quartinho que tem lá, fico vendo televisão, ouvindo música, leio as matérias da faculdade e,
dependendo do dia, eu até posso ir em casa almoçar com mais calma. O chefe paga a
diária da mesma forma, porque lá também é um estacionamento. Aí, ele só telefona de
vez em quando pra ver se a gente está lá na loja. É isso!
– Puta merda.
Que garoto esperto do cacete! Matou a charada!
– Agora sim,
eu entendi, cacete. Claro, o guarda-vidas deve ter o mesmo gosto. Que bosta.
– E além do guarda-vidas e do nosso garotão aqui, ainda tem as plantinhas, as borboletinhas...
– Ah, vai se
danar, Vavá! Que bosta. Já vou ter de pagar um Vinho do Porto pro mestre aqui.
Ô guri, eu acho que vou ligar pro teu chefe pra ele te pagar só a metade nos dias
de chuva. Onde já se viu? Que bosta.
Cada um que
complementava o comentário era motivo pra outra saraivada de risadas. Ao perceberem a movimentação, as pessoas das outras mesas vinham pra perto perguntar o que estava acontecendo e
todos saíam rindo depois da explicação.
O sobrinho
ganhou um belo jantar do tio, enquanto ouvia uma penca de elogios e incentivos
de todos, pra que estudasse forte e terminasse bem a faculdade.
Desde essa
noite eu nunca mais passei um dia de chuva sem pensar no garoto que trabalha no
lava-carro aqui da esquina. Pois que, enquanto todo mundo reclama do dia ruim,
para ele é um dia bom, jogando no seu celular, com o seu fone a todo volume, talvez trocando mensagens com sua galera
e quem sabe até estudando, o que seria o ideal.
Mas o ponto
final dessa história foi a despedida do seu Ataíde naquela noite do desafio.
Depois de pagar a conta, juntar as suas coisas e levar o sobrinho pelo braço
até a saída, o homem parou na porta e disse:
– Ô Fagundes,
agora me lembrei de uma coisa. Sabe quem também gosta de dias de chuva? O bom e velho Vinho
do Porto. Até outro dia pessoal – e saiu levantando a garrafa como se fosse um
troféu.