Perto do ponto
de ônibus tinha um supermercado e, ao lado dele, uma escola grande, dessas que
possui curso técnico e profissionalizante, com mil alunos entrando e saindo,
trânsito caótico e muito barulho.
O velho chega
com sua sacola e senta no abrigo do ponto, só pra tomar um fôlego. Arruma
alguns produtos na bolsa, o pão e o café, confere a chave de casa e o cartão de
crédito e volta a pôr tudo de novo no bolso da camisa.
Ficou ali
descansando um bom tempo. Tempo bastante pra perceber dois alunos que
conversavam sem parar. Estranhou que eles não olhavam os números dos ônibus que
passavam e não faziam sinal pra nenhum deles, dando a concluir que não estavam
indo pra casa depois da aula.
Um outro aluno
passou a caminho da escola:
– E aí galera,
já estamos quase atrasados. Vamos juntos?
– A gente não
vai não.
– Como assim?
Hoje tem a rodada de matemática e vale ponto.
– Mas a gente
não vai não. Vai indo você. Já tá quase na hora.
O jovem então
arrumou a mochila nas costas, estendeu a palma da mão aos dois e se foi.
O velho ouviu
toda a conversa e por um instante avaliou agir de modo diferente. Note o caro
amigo leitor que, quase sem querer – eu disse quase – as palavras jovem e velho
estão bem próximas ali nas linhas anteriores. Mas, contudo, perceba também o
quão distantes estão, em razão de como cada um se envolverá com a situação.
Enquanto o jovem vai-se embora, regando a própria vida, o outro, o velho, se
interessa, estanca e procura, nos próprios bolsos, algum alento, alguma maneira
de interceder, ajudar, agir em função de algo que um dia se chamou de empatia.
Talvez seja por isso, justamente, que falaremos muito do velho, e nada mais do
jovem.
Pois o velho,
como adiantamos, foi pra perto dos estudantes.
– Não vão me
dizer que vocês vão matar aula?
– Não é bem
matar aula. A gente só não vai pra essa primeira, a de matemática. Na
próxima aula a gente entra.
– E qual é o
problema?
– Na verdade
nem é comigo, moço. É com o meu amigo aqui – disse apontando o rapaz ao lado.
Ele está numa enrascada com o professor.
– E seria
muita intromissão minha se eu pedisse pra vocês me contarem?
O estudante,
calado e cabisbaixo, deu um suspiro profundo e iniciou.
– É que teve
um trabalho pra fazer e eu não fiz. Aí o professor combinou comigo que não ia
tirar ponto, se eu tivesse uma boa participação na rodada, que é hoje. Só que
eu não consegui estudar nada e tudo pode ser pior ainda se eu disser isso para ele.
– Mas, uma
coisa: me explica o que é essa tal rodada de matemática.
– É uma aula
bem maneira. Ele sorteia alguns exercícios, problemas matemáticos. Aí os grupos
escolhem um deles e vão ao quadro pra resolver. Mas tem que resolver e
explicar, como se estivesse dando uma aula pro resto da turma.
– Poxa, me parece
muito bom isso.
– Sim, é muito
bom. A gente simula os erros que as pessoas podem cometer ao resolver a questão
e sempre tem alguém da turma que faz pergunta ou diz que não entendeu um pedaço
e a gente é levado a explicar tudo certinho. Isso até nos ajuda a entender
melhor a matéria. A turma adora a tal da rodada.
– Ok. Agora,
por que você não quer ir pra aula?
– Ele não quer
ir porque teve uma briga na casa dele. Aí ele tá um pouco triste – disse o
colega, interrompendo.
– Acho que
meus pais estão se separando. Eles brigam muito, todo dia. Eu não consigo
estudar direito, não fiz o trabalho anterior e hoje não estudei o ponto novo,
que tem um tipo de equação que tem uma fórmula. Então, não vou entrar porque
vou passar vergonha. O professor é legal, a gente gosta dele. Sou eu que estou
preferindo não participar.
O velho, de
novo, ouviu tudo. Pensou uns instantes e depois olhou pra fachada do colégio,
mediu o peso das duas sacolas que carregava e perguntou:
– Será que se
eu falasse com o professor ele poderia compreender o seu problema?
– Mas, o que
ele poderia fazer?
– Isso eu já
não sei. Mas na nossa vida o primeiro passo é entender, compreender o outro, o
próximo. Depois ele dirá o que pode ser feito. O que vocês acham?
– Mas o senhor
está dizendo que iria lá na sala falar com o professor?
– Isso mesmo.
Podemos ir os três.
Nem deu tempo
de os meninos responderem e o velho já tinha levantado, pego as sacolas e seguido
no rumo da escola, chamando os dois estudantes.
A surpresa foi
tamanha que, ao verem o professor de matemática abraçar o velho e o acolher com
tanta emoção, os rapazes estancaram na porta da sala diante da incrédula cena.
A partir daí o diálogo era medido pelos gestos de ambos que ora apontavam o
menino, ora faziam gestos de quem escreve no quadro de aula e alterna, com o
dedo em riste, apontando para a própria cabeça ou para um livro imaginário
estendido nas palmas das mãos. A turma toda ali assistindo, atônita, e a rodada
de matemática suspensa, temporariamente.
– O senhor tem
toda a razão, mestre – disse por fim o professor ao velho. Nós temos a
obrigação de perceber nos nossos meninos a realidade da existência de cada um.
Do mesmo modo que eu tenho aluno que não estuda por não ter dinheiro pra
comprar o livro, outro não faz o trabalho por não ter paz em sua própria casa.
Um ambiente doméstico favorável faz toda a diferença, como eu e o senhor
sabemos.
– Eu fico
muito feliz por revê-lo, professor, e mais ainda por sua empatia e
sensibilidade para com o menino, seu aluno.
– A felicidade
é toda minha, meu mestre. E obrigado por trazer o Júlio e o Henrique de volta
pra sala. Vai com Deus e muita saúde para o senhor.
A despedida
foi celebrada com um desarticulado bater de mãos entre os dois meninos e o
velho. Talvez para celebrar algo que estamos propondo desde o início dessa
crônica: um encontro próspero entre o velho e o novo, com tudo de positivo que isso
pode proporcionar.
O velho, ao me
contar esse episódio, bem na frente do grande colégio, aqui perto de casa,
deixou escapar o quanto se orgulhava por ter tido o professor dos rapazes como
seu aluno. “Em priscas eras”, sublinhou.
No
prosseguimento da nossa conversa eu disse que tinha um blog e que certamente
aquela história ia ser contada, ao que ele respondeu com alguma lisonja. Entretanto,
a certa altura, quando já nos despedíamos, me veio uma memória cinematográfica:
– O senhor
conhece um filme chamado Madadayo? Me lembrei dele agora, ao ouvir a sua
história.
– Claro que eu
conheço. Um legítimo Kurosawa e considero um dos melhores dele. Gosto muito de como o
diretor narra a relação entre a turma de alunos e o professor. Um respeito e uma
reverência, dignos do povo japonês.
– Exatamente.
Acho então que já tenho o título da crônica. Vai ser Madadayo.
– É mesmo uma
boa escolha. Pessoalmente, ter essa história associada ao memorável Akira Kurosawa é algo que me traz muita honra. A mim e a todo ex-professor. Obrigado.
– Obrigado ao
senhor pela história, mestre.
Envolvente e emocionante, o velho e o novo aqui, em memória viva.
ResponderExcluirMuito interessante! Além de escritor, sempre Mestre, inclusive de direção de filmes
ResponderExcluirParabéns, Anderson, mais uma excelente crônica!
ResponderExcluirCom uma surpesa no meio, como compete a um filme!