sábado, 13 de janeiro de 2024

Madadayo


Perto do ponto de ônibus tinha um supermercado e, ao lado dele, uma escola grande, dessas que possui curso técnico e profissionalizante, com mil alunos entrando e saindo, trânsito caótico e muito barulho.

O velho chega com sua sacola e senta no abrigo do ponto, só pra tomar um fôlego. Arruma alguns produtos na bolsa, o pão e o café, confere a chave de casa e o cartão de crédito e volta a pôr tudo de novo no bolso da camisa.

Ficou ali descansando um bom tempo. Tempo bastante pra perceber dois alunos que conversavam sem parar. Estranhou que eles não olhavam os números dos ônibus que passavam e não faziam sinal pra nenhum deles, dando a concluir que não estavam indo pra casa depois da aula.

Um outro aluno passou a caminho da escola:

– E aí galera, já estamos quase atrasados. Vamos juntos?

– A gente não vai não.

– Como assim? Hoje tem a rodada de matemática e vale ponto.

– Mas a gente não vai não. Vai indo você. Já tá quase na hora.

O jovem então arrumou a mochila nas costas, estendeu a palma da mão aos dois e se foi.

O velho ouviu toda a conversa e por um instante avaliou agir de modo diferente. Note o caro amigo leitor que, quase sem querer – eu disse quase – as palavras jovem e velho estão bem próximas ali nas linhas anteriores. Mas, contudo, perceba também o quão distantes estão, em razão de como cada um se envolverá com a situação. Enquanto o jovem vai-se embora, regando a própria vida, o outro, o velho, se interessa, estanca e procura, nos próprios bolsos, algum alento, alguma maneira de interceder, ajudar, agir em função de algo que um dia se chamou de empatia. Talvez seja por isso, justamente, que falaremos muito do velho, e nada mais do jovem.

Pois o velho, como adiantamos, foi pra perto dos estudantes.

– Não vão me dizer que vocês vão matar aula?

– Não é bem matar aula. A gente só não vai pra essa primeira, a de matemática. Na próxima aula a gente entra.

– E qual é o problema?

– Na verdade nem é comigo, moço. É com o meu amigo aqui – disse apontando o rapaz ao lado. Ele está numa enrascada com o professor.

– E seria muita intromissão minha se eu pedisse pra vocês me contarem?

O estudante, calado e cabisbaixo, deu um suspiro profundo e iniciou.

– É que teve um trabalho pra fazer e eu não fiz. Aí o professor combinou comigo que não ia tirar ponto, se eu tivesse uma boa participação na rodada, que é hoje. Só que eu não consegui estudar nada e tudo pode ser pior ainda se eu disser isso para ele.

– Mas, uma coisa: me explica o que é essa tal rodada de matemática.

– É uma aula bem maneira. Ele sorteia alguns exercícios, problemas matemáticos. Aí os grupos escolhem um deles e vão ao quadro pra resolver. Mas tem que resolver e explicar, como se estivesse dando uma aula pro resto da turma.

– Poxa, me parece muito bom isso.

– Sim, é muito bom. A gente simula os erros que as pessoas podem cometer ao resolver a questão e sempre tem alguém da turma que faz pergunta ou diz que não entendeu um pedaço e a gente é levado a explicar tudo certinho. Isso até nos ajuda a entender melhor a matéria. A turma adora a tal da rodada.

– Ok. Agora, por que você não quer ir pra aula?

– Ele não quer ir porque teve uma briga na casa dele. Aí ele tá um pouco triste – disse o colega, interrompendo.

– Acho que meus pais estão se separando. Eles brigam muito, todo dia. Eu não consigo estudar direito, não fiz o trabalho anterior e hoje não estudei o ponto novo, que tem um tipo de equação que tem uma fórmula. Então, não vou entrar porque vou passar vergonha. O professor é legal, a gente gosta dele. Sou eu que estou preferindo não participar.

O velho, de novo, ouviu tudo. Pensou uns instantes e depois olhou pra fachada do colégio, mediu o peso das duas sacolas que carregava e perguntou:

– Será que se eu falasse com o professor ele poderia compreender o seu problema?

– Mas, o que ele poderia fazer?

– Isso eu já não sei. Mas na nossa vida o primeiro passo é entender, compreender o outro, o próximo. Depois ele dirá o que pode ser feito. O que vocês acham?

– Mas o senhor está dizendo que iria lá na sala falar com o professor?

– Isso mesmo. Podemos ir os três.

Nem deu tempo de os meninos responderem e o velho já tinha levantado, pego as sacolas e seguido no rumo da escola, chamando os dois estudantes.

A surpresa foi tamanha que, ao verem o professor de matemática abraçar o velho e o acolher com tanta emoção, os rapazes estancaram na porta da sala diante da incrédula cena. A partir daí o diálogo era medido pelos gestos de ambos que ora apontavam o menino, ora faziam gestos de quem escreve no quadro de aula e alterna, com o dedo em riste, apontando para a própria cabeça ou para um livro imaginário estendido nas palmas das mãos. A turma toda ali assistindo, atônita, e a rodada de matemática suspensa, temporariamente.

– O senhor tem toda a razão, mestre – disse por fim o professor ao velho. Nós temos a obrigação de perceber nos nossos meninos a realidade da existência de cada um. Do mesmo modo que eu tenho aluno que não estuda por não ter dinheiro pra comprar o livro, outro não faz o trabalho por não ter paz em sua própria casa. Um ambiente doméstico favorável faz toda a diferença, como eu e o senhor sabemos.

– Eu fico muito feliz por revê-lo, professor, e mais ainda por sua empatia e sensibilidade para com o menino, seu aluno.

– A felicidade é toda minha, meu mestre. E obrigado por trazer o Júlio e o Henrique de volta pra sala. Vai com Deus e muita saúde para o senhor.

A despedida foi celebrada com um desarticulado bater de mãos entre os dois meninos e o velho. Talvez para celebrar algo que estamos propondo desde o início dessa crônica: um encontro próspero entre o velho e o novo, com tudo de positivo que isso pode proporcionar.

 

O velho, ao me contar esse episódio, bem na frente do grande colégio, aqui perto de casa, deixou escapar o quanto se orgulhava por ter tido o professor dos rapazes como seu aluno. “Em priscas eras”, sublinhou.

No prosseguimento da nossa conversa eu disse que tinha um blog e que certamente aquela história ia ser contada, ao que ele respondeu com alguma lisonja. Entretanto, a certa altura, quando já nos despedíamos, me veio uma memória cinematográfica:

– O senhor conhece um filme chamado Madadayo? Me lembrei dele agora, ao ouvir a sua história.

– Claro que eu conheço. Um legítimo Kurosawa e considero um dos melhores dele. Gosto muito de como o diretor narra a relação entre a turma de alunos e o professor. Um respeito e uma reverência, dignos do povo japonês.

– Exatamente. Acho então que já tenho o título da crônica. Vai ser Madadayo.

– É mesmo uma boa escolha. Pessoalmente, ter essa história associada ao memorável Akira Kurosawa é algo que me traz muita honra. A mim e a todo ex-professor. Obrigado.

– Obrigado ao senhor pela história, mestre.

 



3 comentários:

  1. Envolvente e emocionante, o velho e o novo aqui, em memória viva.

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  2. Muito interessante! Além de escritor, sempre Mestre, inclusive de direção de filmes

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  3. Parabéns, Anderson, mais uma excelente crônica!
    Com uma surpesa no meio, como compete a um filme!

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